Opinião

PL 2.451 visa combater corrupção médica, mas fere Constituição e afeta tratamentos

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5 de setembro de 2016, 16h24

Não é novidade alguma a falência do sistema único de saúde do nosso país. Também não é surpresa que, para determinados tratamentos de saúde os valores envolvidos são vultosos e apenas parcela ínfima da população pode ter acesso. Somado a tudo isso, existe um total descontrole e, sobretudo, falta de fiscalização séria por parte da administração pública e regras rígidas de integridade. Assim, surge um campo fértil para a atuação de oportunistas, corruptos e estelionatários, como a chamada "Máfia das Órteses e Próteses", que envolvia médicos, fabricantes e distribuidores de próteses e órteses, inclusive com a utilização de documentos falsos e a indicação de cirurgias que sequer seriam necessárias.

Este esquema ilegal e ultrajante foi primeiramente denunciado pelo programa “Fantástico”, da Rede Globo de Televisão, e culminou na criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito na Câmara dos Deputados e na apresentação do Projeto de Lei 2.451, pelos deputados federais Geraldo Resende (PMDB-MS) e André Fufuca (PEN-MA), já aprovado pela Comissão de Seguridade Social e Família, e que hoje aguarda designação de relator na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, como forma de “mitigar” os riscos do mau uso das liminares por essa minoria criminosa.

Referido projeto de lei tem por intuito “disciplinar a concessão de tutela de urgência em demandas judiciais que envolvam o fornecimento de medicamentos e dispositivos médicos”, impondo importante alteração no procedimento de requerimento e concessão das tutelas de urgência disciplinado pelo recém entrado em vigor Código de Processo Civil, sob a justificativa de que um maior subsídio de informação ao magistrado, sobre a necessidade, imprescindibilidade e urgência do procedimento, evitaria a tomada de uma decisão equivocada e, consequentemente, a continuidade das práticas delitivas da chamada máfia das órteses e próteses.A prática delitiva deve ser combatida pela autoridade policial, não pelos magistrados.

Sob esse pretexto, e fazendo letra morta do disposto no artigo 9, parágrafo único, inciso I, do Novo CPC, o referido projeto de lei pretende alterar a sistemática das tutelas de urgência que envolvam o fornecimento de medicamentos e dispositivos médicos implantáveis, determinando a prévia citação ou intimação do réu para que, no prazo de cinco dias úteis, se manifeste sobre a tutela de urgência requerida, e ainda orientando para que o juiz, previamente à análise do pedido de urgência, ainda requeira parecer elaborado por profissional da saúde integrante da câmara técnica de que disponha o tribunal ou de entidade conveniada.

Sem ignorar a evidente necessidade de inibir a perpetuação de tais fraudes, não se pode perder de vista que o direito de acesso à justiça (artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal) implica o direito do jurisdicionado à tutela adequada, tempestiva e útil.

Ainda que o Projeto de Lei 2.451 traga a intenção de evitar fraudes na concessão de liminares envolvendo tratamentos médicos, ele desvirtua o processo civil, utilizando-o não como meio para disciplinar o exercício da jurisdição civil, mas burocratizando o procedimento de concessão da tutela de urgência ante a ineficácia dos meios internos e externos de controle do Poder Executivo e, consequentemente, ferindo de morte os princípios que nortearam a elaboração do Novo CPC, especificamente a celeridade, proporcionalidade, razoabilidade e eficiência. Isso sem se falar na afronta à própria Constituição Federal que garante o direito à saúde e à dignidade.

Desataca-se que a utilização de órteses e próteses pelo paciente lhe confere, além da sobrevida (no caso, por exemplo, de marca-passos), um aumento na perspectiva de independência e inclusão social, respeitando e reforçando sua liberdade e dignidade.

Assim sendo, a concessão desses equipamentos insere-se dentro do direito fundamental à saúde, previsto no artigo 196 da Constituição Federal, e intimamente ligado ao princípio da dignidade da pessoa humana, elencado como fundamento do ordenamento constitucional brasileiro, em seu artigo 1º, III.

Não por outro motivo, a concessão de liminares que versam sobre direito à saúde é tema muito debatido, que ganhou nos últimos anos, tanto pelo Supremo Tribunal Federal, como pelo Conselho Nacional de Justiça, parâmetros para balizar a atuação do magistrado diante de tais questões de suma relevância para a sociedade.

A título de exemplo, o STF, no julgamento de pedido de suspensão de tutela antecipada 175, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, discorreu sobre os possíveis parâmetros a serem observados pelos magistrados na análise dos pedidos antecipatórios de tutela sobre direito à saúde, tais como a existência, ou não, de política estatal que abranja a prestação de saúde pleiteada pela parte e de registro do produto na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Já o CNJ, em sua I Jornada Nacional da Saúde, realizada em 2014, editou enunciados interpretativos a fim de auxiliar os magistrados na verificação dos requisitos necessários à concessão das tutelas antecipadas que versem sobre o direito à saúde, inclusive no que se refere ao fornecimento de órteses e próteses (vide Enunciados 28, 29, 30).

O Projeto de Lei 2.451 mostra-se, além de inconstitucional, mais um exemplo de legislação anômala, afastada da realidade tanto judicial como médica do país, e que apenas procrastinará a concessão de decisões caras ao cidadão que delas necessita e que ademais, por se tratar de matéria de saúde, pode lhe custar a vida e a dignidade.

Como ilustra o eminente ministro Carlos Ayres Brito, em sua obra O Humanismo como Categoria Constitucional, “entre o texto legislado e a decisão judicial navega o sentido”.

Assim, não há como concluir de forma diversa da já consolidada pelo STF: “Entre proteger a inviolabilidade do direito à vida, que se qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado pela própria Constituição da República (artigo 5º, caput), ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo – uma vez configurado esse dilema – que razões de ordem ético-jurídica impõem ao julgador uma só e possível opção: o respeito indeclinável à vida”(STA 50/PA).

Não se combate a corrupção, corrompendo os direitos fundamentais do cidadão, mas, sim, com fiscalização e meios eficazes de controle.

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