Opinião

Governança corporativa no contexto das práticas tributárias

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5 de setembro de 2016, 9h37

A operação conjunta deflagrada pela Polícia Federal e pela Controladoria Geral da União faz referência à uma expressão comum, utilizada para classificar eventos onde come-se e bebe-se de graça — operação boca livre. Seu objeto, o uso fraudulento da Lei Rouanet, que entrou em vigor em 1991 para fomentar a cultura nacional através da dedução do imposto de renda das empresas que investem em projetos culturais[1]. A ação investiga indícios de desvio de recursos da ordem de R$ 180 milhões, pulverizados em mais de 250 projetos aprovados sob a égide da Lei Rouanet pelo Ministério da Cultura e patrocinados por cerca de 10 empresas.

Segundo noticiado na imprensa, a investigação identificou empresas que apresentavam projetos ao Ministério da Cultura, obtinham autorização para captar recursos e posteriormente recebiam investimentos de outras empresas, que ao fazê-lo ganhavam o direito de deduzir os respectivos valores no cálculo do imposto de renda. Pela captação dos recursos, intermediários recebiam 25% do valor de cada projeto. As investigações buscam constatar se houve desvio de recursos nos projetos, através de práticas ilícitas como superfaturamento, notas fiscais de serviços que nunca foram prestados, projetos simulados e duplicados. De acordo com a Polícia Federal, integrantes do Ministério da Cultura podem ter facilitado o esquema de fraudes. Os artistas contratados pelas empresas não estão sendo investigados[2].

A operação boca livre diz respeito a um aspecto subliminar de fundamental importância na gestão das empresas, mas que não raro é deixado em segundo plano: governança corporativa no contexto das práticas tributárias.

Para situarmos adequadamente o tema, convém mencionar inicialmente que governança corporativa é o sistema pelo qual as empresas e demais organizações são dirigidas, monitoradas e incentivadas, envolvendo os relacionamentos entre sócios, conselho de administração, diretoria, órgãos de fiscalização e controle e demais partes interessadas ou stakeholders[3]. Tal sistema se sustenta em quatro princípios básicos, que norteiam as políticas e práticas de gestão de todas as áreas das organizações: transparência, equidade, prestação de contas (accountability) e responsabilidade corporativa.

Transparência é a divulgação aberta, tempestiva e honesta das informações financeiras e não-financeiras aos públicos internos e externos.[4] Já prestação de contas ou accountability significa que os agentes de governança devem prestar contas de sua atuação de modo claro, conciso, compreensível e tempestivo, assumindo integralmente as consequências de seus atos e omissões e atuando com diligência e responsabilidade no âmbito dos seus papeis[5]. O princípio da equidade caracteriza-se pelo tratamento justo e isonômico de todos os sócios e demais partes interessadas (stakeholders), levando em consideração seus direitos, deveres, necessidades, interesses e expectativas.[6] Por fim, por responsabilidade corporativa entende-se o zelo pela viabilidade econômico-financeira das organizações no amplo contexto de suas operações e influências na comunidade, reduzindo externalidades negativas e aumentando as positivas.

A operação boca livre revela a magnitude dos impactos adversos que podem se abater sobre as organizações, quando as práticas de governança corporativa não forem efetivas no âmbito tributário, mais especificamente no tocante ao princípio da responsabilidade corporativa.  A expressão deste princípio preza pelo entendimento do contexto das operações que as organizações praticam, que devem ser conduzidas com obediência às leis e cumprimento tempestivo e preciso das obrigações, a fim de evitar custos com penalidades, garantias e eventuais débitos tributários. O administrador deve atuar com responsabilidade atendendo, a um só tempo, ao propósito da lei, às finalidades da sociedade e às obrigações de cada contrato firmado[7] com terceiros.

As boas práticas associadas ao princípio da responsabilidade corporativa em matéria tributária repercutem no mundo empresarial de várias formas. Uma delas é a recente inclusão no Índice Dow Jones de Sustentabilidade de um item denominado “estratégia tributária”, através do qual se verifica o envolvimento em situações de cunho tributário que podem gerar dano reputacional à empresa. Através de respostas a algumas questões, o índice serve de referência para a alocação de recursos por parte dos gestores, estimula a responsabilidade corporativa e, consequentemente, ajuda a promover o desenvolvimento sustentável da organização. Algumas dessas perguntas envolvem indagações sobre políticas fiscais e abordagem tributária, disponibilização periódica de informações-chave de natureza tributária, transparência na carga tributária efetiva e razões para sua diminuição, bem como avaliação profunda de riscos tributários.

Sobre o tema riscos tributários, é importante ressaltar a importância de práticas robustas de cumprimento e controle abrangente de atividades fiscais (compliance na função fiscal) para afastá-los e, quando ocorrido, para adequadamente geri-los. Superficialmente entendido como cumprimento de obrigações acessórias e principais, o compliance na função fiscal deve ser compreendido de forma muito mais ampla: como ferramenta para cumprimento de leis, de regulamentos e de padrões de conduta definidos pelas organizações, com o objetivo de evitar, detectar e cuidar de desvios e inconformidades. Mecanismos de compliance norteiam a condução dos negócios e evitam riscos reputacionais às organizações, garantindo sua continuidade.

Empresas que adotam práticas efetivas de compliance no contexto da função fiscal se cercam de cuidados importantes na forma de se relacionar com terceiros: executam pesquisas específicas em determinados órgãos nacionais e internacionais de crédito, requerem o preenchimento de formulários e assinatura de declarações em que os contratados se comprometem a cumprir todas as leis brasileiras, inclusive as que versam sobre anticorrupção, dentre outras cautelas.  Infere-se, desta forma, que o planejamento da contratação em qualquer processo interno vinculado à função fiscal, inclusive no que tange ao assessoramento em incentivos fiscais, requer atividades específicas, inspiradas e orientadas nas práticas e governança corporativa e compliance dedicadas à área tributária das organizações. E a contratação de um terceiro para viabilizar vantagens fiscais, na forma da lei, traz consigo considerações ainda mais sensíveis na dimensão da responsabilidade corporativa, não apenas por envolver recursos cuja destinação é gerenciada pelo Poder Público, mas sobretudo porque diz respeito a interesses de toda a Sociedade.

A operação boca livre fez soar um sinal de alerta, impulsionando a governança corporativa tributária a assumir, enfim, a condição de política fundamental e prioritária nas organizações, devendo ser aplicada em todos os processos e rotinas que envolvam a função fiscal.  Atitudes, comportamentos, contexto de negócios, observância de leis e forma de se relacionar com players internos e externos são aspectos que devem ser considerados a todo instante por todos os integrantes da organização e, em particular, pelos operadores da função fiscal, sendo o tone at the top a abordagem mais adequada para que tais aspectos sejam permeados pela ética em todas as ações praticadas, garantindo a eficácia e vivência das boas práticas de governança corporativa.


[1] Art. 26. O doador ou patrocinador poderá deduzir do imposto devido na declaração do Imposto sobre a Renda os valores efetivamente contribuídos em favor de projetos culturais aprovados de acordo com os dispositivos desta Lei, tendo como base os seguintes percentuais: (Vide arts. 5º e 6º, Inciso II da Lei nº 9.532 de, 1997)

I – no caso das pessoas físicas, oitenta por cento das doações e sessenta por cento dos patrocínios;

II – no caso das pessoas jurídicas tributadas com base no lucro real, quarenta por cento das doações e trinta por cento dos patrocínios.

§ 1º. A pessoa jurídica tributada com base no lucro real poderá abater as doações e patrocínios como despesa operacional.

[3] Código das melhores práticas de governança corporativa. 5.ed. / Instituto Brasileiro de Governança Corporativa. – São Paulo, SP: IBGC, 2015.

[4] SILVEIRA, Alexandre Di Micelli da. Governança Corporativa no Brasil e no Mundo: teoria e prática.  2ª ed. São Paulo, SP: Elsevier, 2015

[5] IBGC, pág 20.

[6] IBGC, pág 20.

[7] BIFANO (2007, p. 69)

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