Opinião

Impeachment e a perda do diálogo de coalizão no presidencialismo

Autor

  • Francisco Soares Campelo Filho

    é advogado e professor da Escola Superior da Magistratura do Estado do Piauí (Esmepi). Doutorando em Direito e Políticas Publicas pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB) mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro da Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.

5 de setembro de 2016, 15h51

Vivemos nestes últimos dias, por ocasião do julgamento da então presidente eleita Dilma Rousseff, um momento da história do Brasil que será objeto de discussão e análise através dos séculos. O debate jurídico-político e socioeconômico que envolve a questão deverá permear os discursos, desde as conversas do senso comum, nas mesas de botequins, aos bancos de defesas de teses das Universidades mais conceituadas. O certo, porém, é que, enfim, descobrimos em toda a sua plenitude o funcionamento do sistema presidencialista, edificado sob a égide de uma Constituição Federal de um Estado Democrático de Direito.

A história do processo de impeachment da presidente Dilma pode ser divida em cinco Atos, tal qual uma tragédia shakespeariana, todos entrelaçados, todavia, por uma variante que denominamos perda do diálogo de coalizão, a qual, ao nosso sentir, foi a principal responsável pelo desfecho final. Como é sabido, por expressa previsão legal, a pena capital para a condenação por crime de responsabilidade é a perda do mandato e a declaração de inelegibilidade para cargos públicos.

Dois momentos podem figurar como pontos centrais do primeiro Ato: a situação econômica do país, que atravessa a pior crise de toda a sua história, o que fez com a que a presidente encerrasse o primeiro ano de seu segundo mandato com uma reprovação de 70%, conforme pesquisa do IBOPE, e a falta de apoio político expressivo no Congresso Nacional, tanto na Câmara quanto no Senado.    

Quanto ao primeiro aspecto, diversas foram as manifestações populares que eclodiram por todo o país, dando sinais claros de que parte considerável da população não acreditava mais na política econômica e social do governo, aliado ao fato da operação "lava jato" ter deflagrado a prisão de pessoas ligadas ao partido da presidente, gerando dúvidas, incertezas e insegurança, que são aspectos desalinhados de uma democracia constituída sob o amparo de uma Constituição forte, demandando profundas mudanças na condução da nação.

No que tange ao Congresso Nacional, diferentemente do que ocorrera em seu primeiro mandato, a coligação da presidente não possuía maioria absoluta nas duas casas, o que dificultava uma aprovação de mudanças na Constituição Federal, por exemplo, sem contar que mesmo para manter esta maioria simples, havia a necessidade de que não houvesse deserções em sua base aliada. Uma vida nada fácil para quem já enfrentou dificuldades para aprovar alguns projetos, mesmo tendo maioria nas duas casas, como ocorreu no primeiro mandato.

Toda esta conjuntura política, social e econômica fez com que vários pedidos de impeachment fossem protocolados na Câmara dos Deputados, cerca de 50 pedidos entre fevereiro de 2015 e abril de 2016, um número assustador, considerando que entre 2010 e 2013 houve apenas três pedidos.

O segundo Ato também pode ser dividido em dois momentos: o primeiro, consistente na reprovação das contas da presidente da República pelo Tribunal de Contas da União, fato que não ocorria desde 1937, e o segundo corresponde justamente ao recebimento pelo então presidente da Câmara Federal, deputado Eduardo Cunha, de um dos pedidos de impeachment, que se baseava justamente naquela decisão.

A partir daí temos o terceiro Ato, que é o processamento do impeachment na Câmara dos Deputados, culminando com o julgamento e deliberação de que o processo fosse remetido ao Senado.

O quarto Ato, que a esta altura já identifica a crônica de uma tragédia anunciada, divide-se em duas partes. Na primeira os senadores decidem pelo afastamento da presidente, ocasião em que assume o seu vice Michel Temer. Na segunda fase, sob a presidência do ministro Ricardo Lewandowiski, presidente da Suprema Corte brasileira, o Senado julga definitivamente a presidente Dilma Rousseff e a condena pela prática de crime de responsabilidade, aplicando-lhe a pena de perda do mandato de presidente da República, para o qual fora eleita.

Durante toda a tragédia, a protagonista, a ex-presidente Dilma, bradou aos quatro cantos que seu algoz foi justamente o então presidente da Câmara, deputado Eduardo Cunha, que determinou o processamento do pedido de impeachment. Reclamou que tudo fez parte de um golpe orquestrado para derruba-la do poder, para o qual havia sido legitimamente eleita, defendo, no mérito, que não praticara crime de responsabilidade algum, e que por isso mesmo, a sua condenação, caso fosse efetivada, como de fato o foi, seria eivada de vícios, uma injustiça e um crime que se cometia.

Eis aí, contudo, o erro da presidente, e o quinto Ato, magistralmente construído, como só Shakespeare em sua genialidade poderia conceber, exsurge para espanto de todos, inesperadamente, servindo de exemplo para a própria presidente apenada! E aqui fazemos uma pausa para que o gran finale possa descortinar-se com uma anunciação!

De fato, a ex-presidente adotou uma linha de defesa na lógica do tudo-ou-nada, ela e seus aliados não conseguiram enxergar (ou compreender) o verdadeiro cerne do problema. Era preciso que compreendessem o funcionamento do sistema presidencialista, que é pautado, se se quer que funcione adequadamente, no diálogo de coalizão. Sem ele não há como governar. O governo da ex-presidente perdeu esse diálogo de coalizão e não conseguiu vislumbrar que ali perdera também a governabilidade, e sem esta, neste sistema, é o mesmo que andar em um carro desgovernado ladeira abaixo: não se sabe onde irá parar e tampouco em que momento.

A defesa com base no tudo-ou-nada apenas acentuou a perda do diálogo de coalizão, uma vez que, ao invés de buscar uma (re)aproximação da base e uma (re)união de todos, afastava ainda mais, cada vez mais.

No sistema presidencialista é preciso habilidade para saber ouvir e saber calar. É preciso humildade (que não significa subserviência) para reconhecer erros, voltar atrás, andar de lado, parar, enfim, é preciso realizar o diálogo de coalizão!

Salvo se tiver uma maioria absolutamente tranquila de aliados no Congresso, pode o presidente querer enfrenta-lo com arrogância e destemor, o que ainda assim, em alguns momentos, não evitará possíveis dissabores.

A ex-presidente já havia vivenciado essa experiência no primeiro mandato, quando mesmo com a maioria absoluta no Congresso, teve dificuldades, por exemplo, com o projeto dos royalties do petróleo e com a medida provisória do Código Florestal. E o que dizer se, em seu segundo mandato, a situação era deveras mais difícil?

Abrem-se as cortinas e o final, quinto e último Ato, exsurge com uma lição, justamente no ponto em que a presidente Dilma pecou. O Senado, com o conhecimento de que no sistema presidencialista atual é condição sine qua non da governabilidade a existência do diálogo de coalizão, como quem age com benevolência e misericórdia, deixa de execrar da vida pública a apenada, para conceder-lhe um paliativo, uma espécie de salvo conduto, desmembrou a punição máxima em duas distintas e a absolveu da mais branda. A ex-presidente não se tornaria mais inelegível, apenas perderia o seu mandato! Uma sinalização para abertura do diálogo futuro dentro do Congresso com o novo presidente, uma demonstração de que no atual modelo não se pode radicalizar se se quer manter-se dentro dele.

A tragédia se encerra, pois, com uma punição à protagonista que não soube respeitar o sistema, e com uma lição que aponta para qual deveria ter sido a conduta. 

Agora não há mais o que fazer senão aprender definitivamente a lógica desse Sistema e a discussão, doravante, deve ser sobre se este é o modelo ideal para o Brasil!

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    é advogado, mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (RS). Membro da Comissão Nacional de Educação Jurídica do Conselho Federal da OAB. Professor da Escola Superior da Magistratura do Estado do Piauí (ESMEPI).

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