Estado da Economia

Benefício financeiro da tarifa social de energia de consumidores de baixa renda

Autor

  • José Maria Arruda de Andrade

    é professor associado de Direito Econômico e Economia Política da Universidade de São Paulo (USP) livre-docente e doutor pela mesma instituição professor do programa master de pós-graduação em Finanças e Economia da Escola de Economia de São Paulo Fundação Getulio Vargas (FGV EESP) foi secretário-adjunto da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda e pesquisador visitante no Instituto Max-Planck de Inovação e Concorrência em Munique (Alemanha).

4 de setembro de 2016, 12h22

Spacca
Conforme tratado em nossos textos anteriores, os benefícios de natureza tributária e fiscal podem ser desdobrados em (i) gastos tributários indiretos (benefícios tributários) e (ii) benefícios creditícios e financeiros.

Os benefícios (ou subsídios) financeiros são transferências correntes ou desembolsos efetivos realizados pelo governo federal para equalizar juros ou preços ou para a assunção das dívidas decorrentes de saldos de obrigações de responsabilidade do Tesouro Nacional.

Temos como exemplos de benefícios financeiros (i) a equalização de juros do Programa de Sustentação do Investimento (PSI) e do Programa de Apoio ao Setor Sucroalcooleiro (PASS) e a (ii) equalização de preços do Programa Garantia e Sustentação de Preços na Comercialização de Produtos Agropecuários e a Subvenção a Consumidores de Energia Elétrica da Subclasse Baixa Renda.

Nossa intenção é chamar a atenção para o uso deste instrumental de natureza financeira como forma de implementar uma política econômica (intervenção sobre o domínio econômico por meio de indução). Contudo, não se deve esquecer que, em virtude do elevado valor destes gastos (ou renúncias, a depender do caso), deve-se sempre reforçar a necessidade e dever de profundo estudo ao se (i) elaborar a medida, (ii) implementá-la; (iii) cuidar de sua governança dinâmica (durante sua vigência) e (iv) avaliar a eficiência e efetividade no alcance dos resultados esperados.

Tenho trabalhado há um tempo com essa classificação dos momentos de criação e avaliação de políticas econômicas como forma de sistematizar e auxiliar no processo de governança em sentido amplo (controle de legalidade, transparência fiscal, segurança jurídica e boa Administração Pública).

Em 2014, as renúncias federais totais chegaram em um montante (projetado) de R$ 302,3 bilhões, dos quais 58,6 bilhões correspondem a esses benefícios creditícios e financeiros (sendo, os demais, gastos tributários indiretos)[1]. Em 2015, o valor desses benefícios chegou a R$ 107,7 bilhões.

No texto de hoje, gostaríamos de estudar uma dessas políticas econômicas, que se vale da técnica de benefício financeiro, explícito no orçamento, mediante a equalização de preços. Trata-se da Tarifa Social de Energia Elétrica (TSEE), prevista na Lei 10.438, de 26 de abril de 2002, complementada pela Lei 12.212, de 20 de janeiro de 2010, e regulamentada pelo Decreto nº 7.583, de 13 de outubro de 2011.

Basicamente, a medida caracteriza-se pela concessão de descontos incidentes sobre a tarifa aplicada pelas distribuidoras aos consumidores de energia da subclasse residencial de baixa renda.

Antes, contudo, convém lembrar que, em nossa ordem constitucional econômica, o fornecimento e os serviços correlatos de energia elétrica são dever da União Federal (art. 21, XX, b), na modalidade de serviço público. Em outros termos, como sempre lembra Eros Roberto Grau, em nossa carta constitucional, pode-se falar em atividade econômica em sentido amplo, envolvendo o fornecimento e produção de bens e utilidades econômicas necessárias às pessoas.

De acordo com os fatores sociais característicos de cada sociedade, parcela desta atividade em sentido amplo é direcionada ao Estado, que passa a ter o dever de fornecê-las à sociedade, a partir de regime jurídico próprio, baseado na noção de serviço público como atividade indispensável à consecução da coesão e interdependência sociais. O Estado, ou quem atue em seu nome, promove o interesse social ao prestar serviço público.

Avançando nesse ponto, além da própria ideia de dever de concretizar a coesão e interesse sociais (algo desenvolvido em Leon Duguit, Ruy Cirne Lima e Eros Grau), deve-se lembrar que a nossa ordem econômica não apenas recepciona uma situação fática socioeconômica; ela busca transformar, estruturalmente, nossa nação, almejando objetivos nada triviais.

Temos, por escolha do legislador constitucional, verdadeiros objetivos que visam transformar as estruturas sociais. O art. 3º é a cláusula representativa dessa ideia: “Artigo 3º: Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I– construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

Trata-se de eleger os fundamentos da República. Não há espaço aqui para os que gostam de ponderar ilimitadamente em torno de princípios jurídicos importados para impor sua ideologia ou interesses profissionais. A república brasileira busca desenvolver econômica, social e culturalmente o país (arts. 170 e 219 da CF/1988) e prescreve a superação das desigualdades regionais e sociais.

Serviços públicos com preços distintos para famílias de baixa renda configuram, exatamente, uma medida redistributiva salutar e podem concretizar aqueles preceitos constitucionais acima mencionados.

Afirmada a relevância da medida e a sua adesão à ordem econômica vigente, não se deve esquecer a sua materialidade financeira e as dificuldades de eleição do público-alvo.

O volume dos gastos pode ser acompanhado abaixo (em R$ mil):

Ano

Norte

Nordeste

Centro-Oeste

Sudeste

Sul

Total

2015

225.710

1.063.053

113.234

581.381

158.505

2.141.884

2014

198.732

1.213.273

119.305

591.408

154.810

2.277.529

2013

124.176

1.160.305

95.548

496.182

122.830

1.999.041

2012

70.086

1.164.027

45.391

288.006

29.672

1.597.181

Fonte: SPE: Demonstrativo de Benefícios Financeiros e Creditícios[2].

Sobre a dificuldade de identificação dos beneficiários da subvenção, no início da medida, a eleição do público alvo desta política econômica era o consumidor que, atendido por circuito monofásico, tinha consumo mensal inferior a 80 kWh/mês ou cujo consumo situava-se entre 80 e 220 kWh/mês[3]. Essa definição, todavia, apresentava o inconveniente de calibrar a eleição do público-alvo pelo consumo e não pela renda, ainda que facilitasse a operacionalidade na determinação dos beneficiados.

A medida foi objeto de auditoria pelo Tribunal de Contas da União (TCU), cujo resultado foi publicado em 2004[4]. Na avaliação daquele órgão, haveria a necessidade de adequação dos critérios legais de enquadramento de consumidores de baixa renda, assim como o enfrentamento de vários desafios, entre eles:

— aprofundar os estudos relacionados ao público-alvo da medida (e as possíveis variáveis socioeconômicas;

— valer-se de critérios adicionais para conseguir beneficiar, efetivamente, os domicílios de baixa renda;

— evitar que o subsídio fosse suportado pelos demais consumidores da própria concessionária, para não se onerar os consumidores residenciais de estados pouco industrializados e com percentual elevado de consumidores enquadrados na subclasse baixa renda.

Com vistas ao aperfeiçoamento da focalização da política econômica, a Lei nº 12.212/2010 redefiniu o público-alvo da medida, determinando uma forma de desconto calculada de modo cumulativo, apresentando valores escalonados, conforme a faixa da parcela de consumo associada.

Desconto aplicado à tarifa social

Parcela do consumo de energia elétrica (kWh/mês)

Desconto aplicado

De 0 a 30

65%

De 31 a 100

40%

De 101 a 220

10%

Superior a 220

0%

Além de estar classificada na subclasse residencial baixa renda, a unidade consumidora (apenas uma por família) precisa atender a pelo menos um dos seguintes requisitos:

i) seus moradores deverão pertencer a uma família inscrita no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico), com renda familiar mensal per capita menor ou igual a meio salário mínimo nacional;

ii) um de seus moradores deve receber o Benefício de Prestação Continuada da Assistência Social – BPC, nos termos dos arts. 20 e 21 da Lei nº 8.742/1993[5]; ou

iii) a família deve estar inscrita no CadÚnico e ter renda mensal de até três salários mínimos, desde que tenha, entre seus membros, indivíduo portador de doença ou deficiência cujo tratamento, procedimento médico ou terapêutico requeira o uso continuado de aparelhos, equipamentos ou instrumentos que, para o seu funcionamento, demandem consumo de energia elétrica, nos termos da regulamentação[6].

Perceba-se que, atualmente, o critério de focalização (direcionamento do público-alvo) privilegia o fator renda das famílias, ainda que o mescle com o volume consumido de energia elétrica, já que não há incidência de desconto para consumo superior a 220 Wh/mês. Como qualquer critério de seleção, este pode significar alguma dificuldade ao excluir potenciais famílias numerosas ou de pessoas que dependam do uso intensivo de equipamentos elétricos (incluindo aqueles de manutenção da saúde)

Em termos geográficos, já que a Constituição Federal determina o dever de avaliar a medida por região do país, a tabela a seguir apresenta o consumo assim segregado. Observa-se grande concentração do consumo de energia na região Sudeste (52,5%, em 2012), embora as maiores taxas de crescimento, em 2012, sejam verificadas nas regiões Nordeste e Centro-Oeste.

Consumo de Energia Elétrica (por região, em GWh)

Região

2008

2009

2010

2011

2012

Δ % (2012/11)

Part. 2012 (%)

Norte

23.873

24.083

26.237

27.777

29.049

4,6

6,5

Nordeste

65.103

65.244

71.197

71.914

75.610

5,1

16,9

Sudeste

209.944

204.555

222.005

230.668

235.237

2,0

52,5

Sul

65.900

65.528

69.934

74.470

77.503

4,1

17,3

Centro-Oeste

23.652

24.896

26.310

28.205

30.718

8,9

6,9

Brasil

388.472

384.306

415.683

433.034

448.117

3,5

100

Fonte: Aneel e BEN (2013). Elaboração: SPE/MF. Nota Técnica 119/2013.

Essas são as características básicas desse programa de benefício financeiro do Estado. Como mencionado em outra oportunidade, o Acórdão nº 1.718/2005, do TCU, determinou, em seu item 9.3.2, que a Secretaria de Política Econômica (SPE) do Ministério da Fazenda elaborasse uma metodologia de avaliação de eficiência, eficácia e efetividade dos programas ou projetos que utilizam recursos renunciados em decorrência de benefícios financeiros e creditícios, haja vista o disposto no art. 165, § 6º, da Constituição Federal.

Em nosso próximo texto trataremos da avaliação de eficiência e eficácia desta medida, sobretudo em relação ao seu ponto mais problemático, o de sua focalização.


[1] http://portal.tcu.gov.br/tcu/paginas/contas_governo/contas_2014/index.html.  Convém anotar que os números do TCU são sempre um pouco distintos dos da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda, que leva em conta todos os valores, incluindo os negativos (em geral, quando o retorno do programa superou o custo de oportunidade do Governo e, portanto, não houve efetivo subsídio), ao passo em que os números do TCU levam em conta apenas aqueles programas em que houve valor a ser renunciado/gasto. Dessa forma, em geral, os números da SPE são um pouco menores, já que levam em conta também todos os programas, independente se o resultado do calculo do subsídio foi positivo ou negativo. Veja os valores da SPE em http://www.spe.fazenda.gov.br/assuntos/politica-fiscal-e-tributaria/beneficios-financeiros-e-crediticios
[2] http://www.spe.fazenda.gov.br/assuntos/politica-fiscal-e-tributaria/beneficios-financeiros-e-crediticios/demonstrativo2015_sitespe_v3.pdf.  Dados de 2012 presentes em http://www.spe.fazenda.gov.br/assuntos/politica-fiscal-e-tributaria/beneficios-financeiros-e-crediticios/demonstrativo2014.pdf.
[3] Neste caso desde que observe o máximo regional compreendido na faixa e não seja excluído da subclasse por outros critérios de enquadramento a serem definidos pela ANEEL
[4] http://portal2.tcu.gov.br/portal/pls/portal/docs/2058976.PDF.
[5] O Benefício de Prestação Continuada é a garantia de um salário-mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com sessenta e cinco anos ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família. E considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a um quarto do salário-mínimo (Lei nº 8.742/1993).
[6] As famílias indígenas e quilombolas inscritas no CadÚnico que atendam ao disposto nos itens i ou ii têm direito ao desconto de 100% até o limite de consumo de 50 kWh/mês. E sobre o consumo excedente a esse limite se aplica o desconto sobre a tarifa conforme parcelas do consumo.

Autores

  • Brave

    é professor associado de Direito Econômico e Economia Política da USP, livre-docente e doutor pela FDUSP, sócio da Gaia, Silva, Gaede & Associados. Foi secretário-adjunto da secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda e pesquisador visitante no Instituto Max-Planck de Inovação e Concorrência em Munique (Alemanha).

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