Diário de Classe

O impeachment, o fatiamento e o quanto de República de bananas há em nós

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3 de setembro de 2016, 8h00

Spacca
O longo e enfadonho processo de impeachment de Dilma Rousseff chegou ao final. Assim, com menos de 30 anos de experiência democrática sob o manto da Constituição de 1988, já contabilizamos dois presidentes da República que perderam o cargo no decorrer do mandato pela via desse amargo remédio constitucional. Ao longo desses oito meses, a pergunta que mais ouvi, por parte de alunos ou amigos, foi sobre qual era a minha posição a respeito do resultado do impeachment, se a favor ou contra. Minha resposta quase sempre deixava perplexa a audiência: “O jogo político no Brasil é muito mais complexo do que ser contra ou a favor deste dado processo”.

Com essa assertiva, não queria eu contornar a questão, permanecendo neutro, como que a lembrar o imortal Odorico Paraguaçu, personagem de O Bem Amado, de Dias Gomes, que afirmava não ser ele nem de direita, nem de esquerda, mas muralista: quando as questões políticas aguçavam-se em demasia, ficava ele sempre “em cima do muro”.

Na verdade, essa resposta queria indicar apenas que minha maior preocupação era compreender o todo desse processo e projetá-lo no modo de se fazer política no Brasil, em vez de simplesmente fazer um ato de guerra alimentado pela munição argumentativa vinda de um dos lados da contenda. Ou seja, nesse emaranhado de questões sobre contabilidade pública e direito financeiro, preocupava-me mais perceber o que se passava no pano de fundo. Afinal, se quisermos compreender de forma correta como funciona a máquina política tupiniquim, precisamos, neste caso em específico, resistir à tentação de fazer uma metafísica do impeachment. Quero dizer: não é possível afirmar o que é o impeachment no Brasil ou quais são as hipóteses que o justificam a partir da pura abstração, ou de uma espécie de essência de impeachment. É preciso conquistar uma situação hermenêutica que esteja, desde já, assentada na concretude, nas evidências da vida fática. E, neste caso, essas evidências estão todas aí, diante de nós, no mundo, uma vez que já percorremos e concluímos dois processos que, em largas linhas, mantêm um modos operandi comum.

Sem entrar nas particularidades de cada caso (já que Dilma não é Collor, e Collor não é Dilma), a estrutura presente que condiciona a ação dos agentes que protagonizaram o processo pode ser descrita a partir de alguns elementos compartilhados.

Vamos dizer, então, que esses dois processos produziram um núcleo de informações que refletem comportamentos, sentimentos e opiniões que poderiam gerar uma espécie de — peço aqui uma licença poética — jurisprudência do impeachment.

Essa jurisprudência poderia ser apresentada a partir da reunião de fatores externos e fatores internos, assim postos:  

Como fatores externos, podemos mencionar, em primeiro lugar, o rápido desgaste do Executivo com relação à opinião pública (algo que o excesso de personalismo do sistema presidencialista tende a agigantar) redundando em queda brusca de popularidade em curtos períodos de tempo. Por outro lado, existem condições econômicas desfavoráveis que produzem, em diferentes patamares no caso de Collor e no caso de Dilma, descontrole inflacionário e recessão.

Já do ponto de vista interno, com relação ao funcionamento do próprio sistema político, é possível destacar três aspectos comuns: primeiro, o isolamento do Executivo com relação do Congresso Nacional e a gradativa degradação da qualidade do diálogo interinstitucional. Como consequência, e em segundo lugar, há o esfarelamento da base de apoio do Executivo, gerando dispersão da coalizão e o consequente aparecimento de problemas para gerir o “condomínio político” que viabiliza a ação do governo. Por fim, diante desses dois fatores, o terceiro elemento seria a perda da governabilidade, acabando por desidratar, perto de patamares mínimos, o apoio do executivo no âmbito do Congresso Nacional.

Os presidentes que, de 1989 até 2016, terminaram seus mandatos nos termos assinalados pela Constituição podem até ter enfrentado, em algum momento de seu governo, um ou mais desses elementos. Mas, em nenhum dos casos — inclusive no que tange ao primeiro mandato de Dilma — houve a conjunção de todos eles. Quando há, ou seja, quando todos estes fatores, externos e internos, se alinham e se aplicam à conjuntura política, temos como resultado o impeachment do presidente.

Além disso, há que se colocar para aquecer, nesse caldinho político, o fator acordão, que, desde a constituinte de 1988 tende a acomodar as disputas políticas mais intensas que existem no Brasil. Este fator acordão pode ser mencionado, de um modo mais simplório, como um conchavo, que, a rigor, pode ocorrer em qualquer regime democrático, mas que, no caso brasileiro, tem o adicional capilarizador que é o jogo de sombras da política: a velha costura de bastidores (na qual nunca fica exatamente esclarecido quem é o alfaiate que pregou os pontos no tecido).

Esse aspecto torna extremamente difícil um controle que, na falta de uma melhor palavra, podemos chamar de jurídico-racional. Daí aquela sensação estranha que se instala quando um presidente é apeado do poder por algum motivo contábil que nem sempre é tão contundente assim (como disse o jornalista Elio Gaspari, parece que é “pouco crime para muita responsabilidade”); mas, no fundo, sabe-se que os motivos determinantes são outros, muito mais amplos e complexos do que a pretensa linguagem técnica pode abarcar. Do mesmo modo, quando se decide fatiar a votação das “penas” como se fossem alternativas ou gradativas, em gritante desacordo com o que enuncia a Constituição, também temos, lá ao fundo, algum agente das sombras tramando algo que funcione como um pequeno extintor, para acalmar ânimos mais exaltados.

No fundo, o que está em caso, tanto no início como no fim de todo esse processo, é de que modo o acordo pode ser costurado. E os argumentos? Esses engendraremos depois e, até lá, tudo estará disperso na fumaça em que se perde a opinião pública. Há vários momentos desse processo de impeachment que soa como algo bananesco. O mais escandaloso, certamente, é o fatiamento da votação das penas, como se a Constituição estabelecesse uma escala gradativa (do tipo, há crimes de responsabilidade e crimes com mais responsabilidade ainda: para os primeiros, a pena é a perda do mandato e, se o réu reúne condições subjetivas favoráveis, ficamos por aqui; para os segundos, há a perda da função mais a inabilitação por oito anos para o exercício de função pública). O pior é que, a rigor, mas com o sinal trocado, o mesmo fatiamento teve lugar quando do julgamento de Collor. Isso porque, com a renúncia, não havia mais, a rigor, cargo para ser perdido. O destino do processo deveria ser, portanto, o arquivo. Todavia, o entendimento que predominou à época — depois chancelado pelo STF em apertada votação que contou, inclusive, com ministros convocados do STJ para que pudesse haver o desempate — foi no sentido de que, além da perda da função, tinha o Senado que deliberar sobre a inabilitação. O resto é história. Em comum, ambos os procedimentos são, no mínimo, heterodoxos (para não dizer inconstitucionais).

Sem embargo, não se trata de saber se é bom ou ruim. Por tudo que estamos assistindo, o que podemos dizer é que o impeachment, no Brasil, apresenta esse tipo de colorido. Temos sempre que conviver, por um motivo ou outro, com essa sensação bananesca que a liturgia do acordão propicia. Talvez ele seja o resultado de um processo cultural antropofágico: quando se importa um mecanismo criado em outras culturas, cada povo o incorpora ao modo de sua vivência habitual. No entanto, é preciso que ele seja assimilado a partir de um processo crítico, baseado em uma antropologia fundamental. E, neste caso, se não estamos satisfeitos com essa realidade, temos agora que reconhecer que, depois de Collor, esse tema permaneceu dormente no campo político-jurídico. Se agora reclamamos das bananagens que ocorreram em algum momento deste longo processo, temos que reconhecer que, na comunidade jurídica, todo mundo se comportou como se este instituto fosse um velho instrumento esquecido no sótão constitucional. Portanto, passado todo esse novo processo, penso que seja essa a chance de efetuarmos algum tipo de reconfiguração que depende, a toda evidência, de um enfrentamento diante do que temos de concreto e não das ideias que projetamos sobre o instituto.

Evidentemente, a persistência disso que aqui chamei de jurisprudência do impeachment será catastrófica. Não porque nos transformará em algum tipo de “parlamentarismo branco” ou “pseudosemipresidencialismo”. Pelo contrário. O problema é exatamente que, para o bem e para o mal, continuaremos um sistema presidencialista. Porém, altamente instável. Teremos tudo de ruim que um presidencialismo tem, sem nada de bom que ele pode gerar (uma perspectiva maior de estabilidade institucional).        

O caso do impeachment de Dilma nos deve fazer refletir, desde o seu início duvidoso até o patético fatiamento do final, sobre até que ponto nossos mecanismos jurídico-institucionais conseguem limitar essa dimensão do acordão, do jogo de sombras, que parece caracterizar as práticas políticas no Brasil.

Enfim, é imperioso respondermos à pergunta: quanto de República de bananas há em nós? 

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