Opinião

Lei sobre abuso de autoridade é mais uma retaliação política

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31 de outubro de 2016, 10h58

Protagonizado pelas inúmeras ações do Ministério Público, conjuntamente com o Poder Judiciário, os brasileiros e até mesmo a comunidade internacional vêm acompanhando um momento histórico — que se espera de transformação — em nosso país, no combate a um câncer social.

Inúmeros estudiosos afirmam existir uma corrupção endêmica nos vários setores do Estado e da própria sociedade brasileira. Efetivamente, segundo o Índice de Percepção de Corrupção (IPC-2015), da Transparência Internacional, o Brasil ocupa apenas a inglória 76º posição. Com uma queda significativa de pontuação em comparação ao ano anterior do IPC, o abismo que separa o Brasil da Dinamarca — líder do ranking — é consideravelmente maior que a diferença de pontuação entre Brasil e Somália — o país que pior resultado apresenta nessa matéria.

A Ação Penal 470 — o processo do "mensalão” — e a operação “lava jato”, em curso na Justiça Federal de Curitiba — com desdobramentos em outros estados — e no Supremo Tribunal Federal, expôs para a sociedade o grau de putrefação da política nacional, comprometendo parlamentares, governantes e grandes “empresários do crime”.

Temos como certo que as instituições que protagonizam neste cenário, contrariando grandes interesses econômicos e pessoas com poder politico, passam a ser alvo de medidas de retaliações com o propósito de desestabilizar o sistema de justiça, visando arrefecer e frear as referidas ações, inviabilizando a repressão da corrupção.

Nesse contexto, para ficar no passado recente, destacam-se medidas legislativas como, por exemplo, a “Lei da Mordaça” e a PEC 37 — a famigerada “PEC da Impunidade”. Atualmente, a sanha desestruturante do sistema republicano tem crescido naqueles que estão sendo diretamente alcançados pelas mãos da Justiça, que utilizando (ou abusando) do seu poder legiferante, tentam subjugar o Judiciário e o Ministério Público.

Com certa habilidade, usando frases de efeito e a visibilidade dos meios de comunicação, algumas personalidades tentam passar para a sociedade a ideia do cometimento de abusos e desrespeitos aos direitos fundamentais. Atualmente, a estratégia é aprovar uma nova legislação intitulada de “Lei de Abuso de Autoridade”, contra juízes e membros do Ministério Público, e retomar o curso da Proposta de Emenda Constitucional que trata das punições destas autoridades.

Especificamente quanto à PEC que pretende acabar com a pena de aposentadoria compulsória, o discurso tem levado alguns desavisados a acreditar que isso traria avanços para o sistema de repressão e combate aos atos de improbidade e corrupção. Ledo e gravíssimo engano.

O que se pretende com esta PEC nada mais é do que suprimir do texto constitucional uma garantia do Poder Judiciário e do Ministério Público. Conforme asseguram vários juristas[1], trata-se de uma garantia da sociedade e da independência dos Poderes: a vitaliciedade.

Os magistrados, enquanto integrantes de Órgãos de Soberania, devem estar protegidos de ataques e retaliações de outros segmentos da sociedade, inclusive de outros poderes. Um Estado de Direito não se sustenta sem uma clara independência e separação horizontal de poderes. Os tratados internacionais convergem neste sentido, como os que tratam das estruturas dos Estados para o enfrentamento da corrupção[2] e aqueles que asseguram direitos fundamentais. A título de exemplo, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, no seu artigo X, dispõe que “Todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir sobre seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele”.

A evolução dos sistemas constitucionais e das democracias trouxe como garantia irreversível um modelo de separação e independência dos três poderes. A autonomia do poder judicial assume-se como corolário de um longo processo histórico, no âmbito do qual foram sendo instituídas prerrogativas a fim de limitar o exercício de poderes e assegurar aos cidadãos um julgamento justo. Com caráter precursores, assim fizeram a Magna Carta de 1215, na Inglaterra, e posteriormente, em 1689, a Bill of Rights, naquela que é a maior democracia do mundo ocidental.

Contemporaneamente, diversos tratados internacionais são responsáveis por nortear as Nações no sentido de introduzir e garantir regras de independência e autonomia do Judiciário na estrutura do Estado[3]. Indo além dos níveis nacionais, também o sistema de justiça organizado no âmbito da integração europeia refere a exigência de independência dos juízes e advogados-gerais do Tribunal de Justiça da União Europeia[4].

As indagações que devemos fazer e tentar responder satisfatoriamente para a sociedade são as seguintes: no que consiste a vitaliciedade?; será que os juízes, promotores e procuradores do Ministério Público somente estão sujeitos a pena máxima de aposentadoria compulsória?; a vitaliciedade é uma garantia que está inserida somente no nosso ordenamento jurídico?; e, finalmente, devemos mudar esta regra constitucional?

Quanto à primeira, por força constitucional[5], todo servidor público que ingresse por concurso, após o estágio probatório, adquire estabilidade. Esta consiste na garantia de que seu desligamento da administração somente pode ocorrer após um procedimento administrativo disciplinar por cometimento de falta grave, assegurando-se a ampla defesa e o contraditório. Relativamente aos juízes e membros do Ministério Público, que têm assegurados pela Constituição a vitaliciedade[6], significa isto que somente podem perder o cargo por decisão judicial, também se garantindo a ampla defesa e o contraditório.

Do exposto, resulta, portanto, que a distinção entre as noções de vitaliciedade e estabilidade prende-se com o meio processual pelo qual cada uma das duas pode ser posta em causa. Enquanto a primeira é objeto de um processo judicial, a segunda é tratada pela via administrativa.

Para a segunda pergunta a resposta não tem sido repassada para a sociedade de forma completa. Na verdade, o que se tem dito não representa a correta interpretação do texto constitucional. A perfeita hermenêutica do sistema de garantias não tem sido divulgada na sua integralidade. Devido as recentes punições aplicadas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) a alguns magistrados, a imprensa tem sido o canal para críticas que afirmam ser a aplicação dessas sanções um “prêmio” para os magistrados, uma vez que passam a ser remunerados sem exercer funções.

Todavia, deve ser dito que, naturalmente, não se trata de um “prêmio” e muito menos da única pena a que estão submetidos os juízes, promotores e procuradores. As sanções aplicadas tanto no CNJ como no CNMP[7] são de natureza administrativa e não inviabilizam as outras penas que podem derivar da responsabilidade penal e da ação civil para perda do cargo ou da aposentadoria — estas de natureza judicial. Com efeito, estas últimas soluções produzirão a quebra de qualquer relação jurídica dessas autoridades com a instituição que integrarem, deixando de receber qualquer subsídio ou remuneração.

Portanto, devemos ressaltar que, pelo princípio da independência das instâncias de responsabilidade, os juízes, promotores e procuradores do MP, quando envolvidos em ilícitos graves, estão sujeitos às mesmas sanções a que é susceptível qualquer servidor público.

Passando para a terceira indagação, de forma objetiva, podemos afirmar, seguramente, que a vitaliciedade não é invenção dos brasileiros e tampouco está inserida somente em nosso ordenamento jurídico. A vitaliciedade, como afirmado acima, é uma garantia de um sistema de justiça independente, comum aos Estados democráticos. Trata-se de uma prerrogativa que assegura a imparcialidade dos membros do poder judiciário, teoricamente, tornando-os imunes às intervenções de outros poderes[8].

Qualquer Nação moderna, que se assuma como um Estado de Direito, observando regras internacionais e padrões de independência dos órgãos de soberania, mantêm em suas leis fundamentais a vitaliciedade dos integrantes do Poder Judiciário e do Ministério Público. Vejamos o que diz a Constituição Alemã, fonte de inspiração de outros sistemas:

“Artigo 97, II – Os juízes titulares e nomeados definitivamente com caráter permanente não poderão, contra a sua vontade, ser destituídos antes de terminado o prazo de exercício das suas funções, ser suspensos dos seus cargos definitiva ou temporariamente, transferidos para outro posto ou aposentados, salvo em virtude de uma decisão judicial e exclusivamente por motivos e formas prescritos nas leis. A legislação pode fixar limites etários, passados os quais serão aposentados os juízes nomeados com caráter vitalício. Ao modificar-se a organização dos tribunais ou suas jurisdições, os juízes poderão ser transferidos para outro tribunal ou afastados do cargo, desde que continuem recebendo seus vencimentos integrais.”

Na França não é diferente. Embora tratada terminologicamente como inamovibilidade, esta deve ser entendida, igualmente, como uma das garantias de imparcialidade que conferem segurança e estabilidade diferenciada dos demais servidores públicos aos magistrados judiciais e do parquet [9].

A Espanha, para garantir a independência do Poder Judiciário, preserva as prerrogativas de seus membros dispondo no Capitulo VI da Constituição que:

“Artículo 117 – 1. La justicia emana del pueblo y se administra en nombre del Rey por Jueces y Magistrados integrantes del poder judicial, independientes, inamovibles, responsables y sometidos únicamente al imperio de la ley.”

À semelhança da legislação francesa, inamovibles constante do artigo acima, confere segurança e estabilidade ao membro do judiciário.

Com sistema semelhante ao nosso, Portugal assegurou aos seus magistrados a vitaliciedade, regulamentando no artigo 216º da Constituição:

“1. Os juízes são inamovíveis, não podendo ser transferidos, suspensos, aposentados ou demitidos senão nos casos previstos na lei.”[10]

O Estatuto dos Magistrados Judiciais de Portugal, Lei 21/85, em seu artigo 6º, assevera:

“Os magistrados judiciais são nomeados vitaliciamente, não podendo ser transferidos, aposentados ou demitidos ou por qualquer forma mudados de situação, senão nos casos previstos neste Estatuto.”

Concluindo, em resposta a quarta questão, temos como certo que retirar a garantia da vitaliciedade dos juízes, promotores e procuradores do texto constitucional, além de caracterizar uma grave violação de cláusula pétrea, ferindo de morte a independência dos poderes, tornaria o Judiciário e o Ministério Público excessivamente permeáveis ao poder político, impediria o combate eficiente da corrupção e levaria o Estado para absoluto descrédito social.

1 Citando posicionamento nesse sentido, vide infra.

2 Veja-se a Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção, Artigo 11, que trata das Medidas relativas ao Poder Judiciário e ao Ministério Público e a Convenção Interamericana Contra a Corrupção.

3 Vide a Convenção Europeia de Direitos Humanos, de 1950, assinada em Roma, Artigo 6º, que trata do direito ao processo equitativo; e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, no Art. 14º, item 1, segundo o qual “Toda pessoa terá o direito de ser ouvida publicamente e com devidas garantias por um tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido por lei, na apuração de qualquer acusação de caráter penal formulada contra ela ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil”.

4 Assim, o art. 253º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e, mais especificamente, os artigos do Protocolo relativo ao Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia.

5 Artigo 37º da CF.

6 Artigo 95º, inciso I, da CF.

7 Também os Tribunais e Ministérios Públicos podem aplicar penas administrativas aos seus integrantes, concorrentemente, respeitando o non bis in idem.

8 Nesta linha, Alexandre de Moraes, citando Eugenio Raúl Zaffaroni e Carl Schimitt, destaca a vitaliciedade como garantida da sociedade e do Estado de Direito, sendo meio de assegurar a independência do Poder Judiciário. Veja-se MORAES, Alexandre de, Direito Constitucional.

9 A Constituição da República Francesa, no art. 64º, sob a epígrafe “De L’autorité judiciaire”, prescreve: “Le Président de la République est garant de l’indépendance de l’autorité judiciaire. Il est assisté par le Conseil supérieur de la magistrature. Une loi organique porte statut des magistrats. Les magistrats du siège sont inamovibles.” Assim, ainda a Ordonnance n.º 58-1270 du 22 décembre 1958, Loi Organique Relative au Statut de La Magistrature, art. 4º: “Les magistrats du siège sont inamovibles. En conséquence, le magistrat du siège ne peut recevoir, sans son consentement, une affectation nouvelle, même en avancement.”

10 Sobre essa norma constitucional, Gomes Canotilho afirma se tratar da manifestação de uma “dimensão insubstituível” da independência pessoal dos juízes. Ver CANOTILHO, José Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição.

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