Processo familiar

Os mistérios da paternidade — diversas interpretações e imprecisões

Autor

  • Giselle Câmara Groeninga

    é psicanalista doutora em Direito Civil pela USP diretora da Comissão de Relações Interdisciplinares do IBDFAM vice-presidente da Sociedade Internacional de Direito de Família professora da Escola Paulista de Direito.

30 de outubro de 2016, 13h16

Spacca
Giselle Groeninga [Spacca] Grande foi, e maior será, a repercussão do Recurso Extraordinário 898.060/SC, objeto de deliberação do pleno do Supremo Tribunal Federal em 21/9/2016, que enfrentou, em nome dos direitos da personalidade, um tema extremamente complicado e delicado: o do conflito entre paternidades socioafetiva e biológica.

Intrincado o exame das relações familiares, fundadas na biologia e na afetividade. E este é o desafio do trabalho interdisciplinar que temos em tempos de relações plurais, múltiplas e inclusivas.

Estamos em meio à uma natural confusão dada a transição entre o conceito reducionista da família, como se as relações fossem quase que naturalmente definidas de forma mais objetiva pela biologia, para as famílias fundadas no afeto. Este passou a ser considerado como fundamental — um importantíssimo avanço. E as questões trazidas pelas famílias plurais lançaram ainda mais luz ao componente afetivo.

Já na ementa do RE 898.060/SC observamos quantos temas tiveram que ser examinados para a construção da tese de que: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com todas as suas consequências patrimoniais e extrapatrimoniais”.[i]

A tese representa uma evolução mas não deixa de ser polêmica. Para além dos avanços, ela anuncia questões e dificuldades a serem enfrentadas pelas instâncias inferiores e pela doutrina.

Em todos os aspectos, objetivos e subjetivos, do meu ponto de vista o conflito entre paternidade socioafetiva e biológica não se esclarece apenas com a não hierarquização, correndo-se o risco de quase que uma homogeneização quanto às consequências das diferenças entre os dois tipos de paternidade.

As questões devem ser enfrentadas com coragem, e mesmo com a humildade em não deixar no limbo as incertezas que sabemos existir. Melhor admiti-las do que forçar certezas que, inevitavelmente, trarão confusões. Assim, proporcional à ampliação da definição jurídica da família, aos novos avanços das ciências, às modificações nas formas de organização social, e ao valor dado ao afeto, está a necessidade em tentar definir conceitos.

Recorto aqui para exame dois pontos: uma questão e um alerta conceitual. A questão é a de que a tese teria ido além do importante reconhecimento da paternidade socioafetiva como não inferior à biológica, acabando indiretamente por emprestar a esta um caráter socioafetivo. E o segundo ponto, o alerta conceitual, diz respeito à confusão entre paternidade e parentalidade, entre o vínculo paterno-filial e materno-filial e aquele existente entre o casal parental e deste com os filhos.

Quanto ao primeiro ponto, o da não hierarquização, indago se não houve não só a equiparação da paternidade socioafetiva à biológica, mas também o efeito inverso. Os primeiros questionamentos que têm surgido dizem respeito às consequências patrimoniais, e outros inevitavelmente surgirão.

A atribuição de consequências não só patrimoniais mas extrapatrimoniais à paternidade biológica transcende o direito da personalidade em conhecer a identidade genética, um dos 3 pilares sobre os quais se forma a identidade, abarcando os outros 2: a pertinência genealógica e a familiar.

Aponto que o exercício da responsabilidade, ao lado do conhecimento da origem genética e da pertinência genealógica e familiar, são a base formadora dos vínculos afetivos. E se a paternidade biológica vai além do reconhecimento quanto à identidade genética e quanto à responsabilidade patrimonial — questões mais objetivas —, com “consequências extrapatrimoniais”, não teria havido no espírito do legislador a presunção de que outros vínculos, os afetivos, acabarão necessariamente por se formar pelo exercício da responsabilidade por parte do pai dito biológico? Do meu ponto de vista, impossível o exercício da responsabilidade independente das emoções, mesmo que estas sejam negativas. E, neste caso, talvez venha a ser pior a emenda do que o soneto.

Assim, trago como questão: não seria consequente à tese uma hierarquização implícita da paternidade socioafetiva como superior à biológica?

Do lado da paternidade socioafetiva, inegável o avanço em dar-lhe um lugar de importância, e em recepcionar o efeito fundante do afeto na formação identidade, na personalidade e na construção dos vínculos, garantindo-se os direitos da personalidade — não só o dos filhos — mas o dos pais. Mas, se necessário foi nos despirmos de preconceitos e pseudo certezas para chegar a enfatizar a importância do afeto, necessário agora se faz não mistificar o afeto e tentar definir conceitos, lugares, funções e quais responsabilidades cabem ser exercidas, ou não, por cada qual na família.

Aponto que estas dificuldades conceituais e quanto às responsabilidades que cabem aos participantes das relações familiares em nada são exclusivas do direito pátrio, mas fruto do estágio de construção de conhecimento e de entendimento dos vários tipos de vínculos, estágio em que nos encontramos nas diversas áreas do saber.

O outro ponto que levanto, diz respeito à confusão terminológica. Falamos hoje quase com naturalidade em paternidade biológica, presumida, socioafetiva, parentalidade, multiparentalidade e multipaternidade, função materna e paterna, casal conjugal e parental. Dentre estes, sobretudo os termos parentalidade e parental ganharam sentido polissêmico. Remetem a parente, à paternidade, e por analogia à maternidade, e ao casal de pais.

A leitura do voto demonstra a imprecisão conceitual que, repito, não é exclusiva do direito. Assim, lê-se termos usados como se sinônimos fossem: paternidade socioafetiva e parentalidade socioafetiva; dupla paternidade, dupla parentalidade e pluriparentalidade; paternidade responsável e manifestações da parentalidade; vínculo parental referindo-se ao vínculo paterno-filial; parentalidade presuntiva referindo-se à paternidade presumida.

Aponto que a própria definição de família implica necessariamente em diferenças entre seus membros e quanto aos tipos de vínculos. E o norte é o de buscar, tanto quanto possível, clareza quanto aos lugares e funções exercidas por cada qual nas relações familiares. O percurso a ser doravante seguido é o de se examinar alguns fundamentos psicológicos e conceituais dos vínculos. E no aqui buscarei, sobretudo, a distinção entre termos que são utilizados como se sinônimos fossem — paternidade e parentalidade.

A família se define como uma estrutura em que cada um ocupa um lugar e exerce uma função, com vínculos formados sobre uma base biológica e emocional. A família é uma entidade de comunhão de vidas. Comunhão que não se rompe com o fim da relação conjugal, não se dissolvendo o vínculo entre o casal parental e deste com os filhos e, obviamente, também não os materno-filial e paterno-filial.

A família é uma estrutura marcada pelas diferenças e pela complementaridade entre as funções. É um lugar de realização das possibilidades de nossa humanidade, de realização com limites. E o limite se dá pela lei básica de constituição da família — o interdito do incesto.

O interdito do incesto não diz respeito somente à uma questão concreta de impedimento de relações sexuais que não entre o casal conjugal, mas tem, sobretudo, um caráter simbólico — o de marcar as diferenças entre as funções e as relações que definem a identidade de cada um dos integrantes da família.

O interdito do incesto tem o caráter simbólico, humanizante, de marcar as diferenças e possibilidades de realização e atendimento de demandas físicas e emocionais. A diferença entre as gerações, entre o conjugal e o filial demarca o que cada um deva dar e receber de acordo com o que se necessita em termos físicos, mentais e espirituais. É a lei de constituição da família que implica em dar a cada um o que é seu.

As relações de possibilidade de atendimento das necessidades físicas e das demandas e afetivas são de duas ordens — a conjugal e a filial. Há, assim, dois sub conjuntos que definem os vínculos e o parentesco.

Um formado pelo casal conjugal: as relações de conjugalidade, consideradas atualmente de forma inclusiva e independentes do sexo biológico e do gênero.

O outro subconjunto é formado pelas relações de filiação, o que envolve a paternidade, a maternidade e a parentalidade propriamente dita. No entanto, ao utilizarmos o termo parental indistintamente para as relações entre pais e filhos, corremos o risco de borrar as necessárias diferenças entre o vínculo materno-filial, paterno-filial, entre o casal parental e deste com os filhos, acabando por ferir direitos e obrigações.

Em suma temos, assim, os vínculos do pai com os filhos, as relações de paternidade, com referência aos vínculos biológicos e afetivos. Há os vínculos da mãe com os filhos, as relações de maternidade, também com referência aos vínculos biológicos e afetivos. E há um terceiro tipo de vínculo, aquele entre o casal de pais e deste casal com os filhos: as relações de parentalidade.

Acredito que muito teríamos a ganhar se reservássemos o termo paternidade para a paternidade tanto biológica como socioafetiva, cabendo a especificação no caso de paternidade dual — dois pais. Da mesma forma, mas menos polêmica, é a delimitação do termo maternidade como reservado à biológica e à socioafetiva, cabendo a especificação no caso de maternidade dual.

E o termo parentalidade deveria ser utilizado para referir-se ao casal parental, conforme a origem do termo, da psicanálise, fazendo referencia ao casal de pais, à relação necessariamente complementar entre estes, e à relação deste casal com os filhos.


i EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. DIREITO CIVIL E CONSTITUCIONAL. CONFLITO ENTRE PATERNIDADES SOCIOAFETIVA E BIOLÓGICA. PARADIGMA DO CASAMENTO. SUPERAÇÃO PELA CONSTITUIÇÃO DE 1988. EIXO CENTRAL DO DIREITO DE FAMÍLIA: DESLOCAMENTO PARA O PLANO CONSTITUCIONAL. SOBREPRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA (ART. 1o, III, DA CRFB). SUPERAÇÃO DE ÓBICES LEGAIS AO PLENO DESENVOLVIMENTO DAS FAMÍLIAS. DIREITO À BUSCA DA FELICIDADE. PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL IMPLÍCITO. INDIVÍDUO COMO CENTRO DO ORDENAMENTO JURÍDICO-POLÍTICO. IMPOSSIBILIDADE DE REDUÇÃO DAS REALIDADES FAMILIARES A MODELOS PRÉ-CONCEBIDOS. ATIPICIDADE CONSTITUCIONAL DO CONCEITO DE ENTIDADES FAMILIARES. UNIÃO ESTÁVEL (ART. 226, § 3o, CRFB) E FAMÍLIA MONOPARENTAL (ART. 226, § 4o, CRFB).VEDAÇÃO À DISCRIMINAÇÃO E HIERARQUIZAÇÃO ENTRE ESPÉCIES DE FILIAÇÃO (ART. 227, § 6o, CRFB). PARENTALIDADE PRESUNTIVA, BIOLÓGICA OU AFETIVA. NECESSIDADE DE TUTELA JURÍDICA AMPLA. MULTIPLICIDADE DE VÍNCULOS PARENTAIS. RECONHECIMENTO CONCOMITANTE. POSSIBILIDADE. PLURIPARENTALIDADE. PRINCÍPIO DA PATERNIDADE RESPONSÁVEL (ART. 226, § 7o, CRFB). RECURSO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. FIXAÇÃO DE TESE PARA APLICAÇÃO A CASOS SEMELHANTES.

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    é psicanalista, doutora em Direito Civil pela USP, diretora da Comissão de Relações Interdisciplinares do IBDFAM, vice-presidente da Sociedade Internacional de Direito de Família, professora da Escola Paulista de Direito.

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