Academia de Polícia

O sistema de justiça criminal precisa superar a fantasia dogmática

Autor

  • Leonardo Marcondes Machado

    é delegado de polícia em Santa Catarina doutorando e mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná pós-graduado em Raciocínio Probatório pela Universidade de Girona (Espanha) especialista em Direito Penal e Criminologia pelo ICPC e professor em cursos de graduação e pós-graduação.

25 de outubro de 2016, 10h57

Spacca
Preliminarmente, algumas considerações possíveis a respeito do atual cenário do saber jurídico. O campo do direito parece ainda imerso na busca por um pretenso “saber puro” e, ao mesmo tempo, que fosse capaz de regular por completo a vida em sociedade.

Vive-se um permanente endeusamento dogmático,[1] talvez legatário do ideal positivista oitocentista que (ainda) domina o campo jurídico e cujos efeitos (reais) são flagrantes na sua práxis, especialmente no sistema de justiça criminal. Dentre as várias instâncias do jurídico, sem dúvida alguma é na esfera penal que o (ab)uso do poder fundado na (ir)racionalidade conservadora produz os efeitos mais trágicos à subjetividade.

Desse modo, a empreitada crítica pela superação da “fantasia dogmática”[2] não constitui tarefa fácil, principalmente porque coloca muita gente em posição desconfortável, na medida em que problematiza discursos, lugares e sujeitos nas diversas relações de poder. E, claro, ninguém quer correr o risco de perder assento nas instâncias de controle; quanto mais os fascistas do cotidiano[3].

No entanto, esse tipo de desvelamento das aparências é indispensável a todo e qualquer jurista que, na contramão do autoritarismo do sistema penal[4], pretenda estabelecer diálogos democráticos na construção de utopias possíveis[5].

Em suma, há urgência em se (re)discutir as questões criminais por meio de uma perspectiva diversa da instância de conhecimento servil, buscando superar o atual contexto epistemológico marcado pelo “reforço do dogmatismo, o isolamento científico e o natural distanciamento dos reais problemas da vida”.[6]

Com efeito, a partir de novas lentes para análise e discussão do fenômeno jurídico, imperioso levar em consideração (i) a limitação do conhecimento, (ii) a salutar prática metodológica interdisciplinar e (iii) a razão empírica segundo os dados da realidade.

Quanto à fragilidade ou à precariedade do conhecimento, parece-nos que a “atitude epistemocrática”, referida por Cadermatori e Amorim, pode funcionar como mecanismo de grande valia. Assim deve ser entendida aquela postura capaz de reconhecer a imperfeição do acesso ao conhecimento. Segundo os autores, nenhum pensamento, como é o caso do direito, pode ser eficaz e ter validade universal, já que deve considerar a falibilidade humana, na perspectiva do homem como um ser demasiadamente humano, como diria Nietzsche. O que nos conduz a uma compreensão no sentido da parcialidade ou incompletude, contingenciamento e constante transformação dos saberes.[7]

A desconfiança quanto ao conhecimento produzido e a consciência a respeito de sua limitação é fundamental para todo agente do sistema jurídico, especialmente na esfera criminal. Toda vez que autoridades se arvoraram a conferir selo de certeza ou chancela de infalibilidade nas suas apurações fizeram história, marcaram lugar na seção de tragédias e abusos do poder punitivo.   

No tocante à prática interdisciplinar, deve ser lida e estimulada a partir das indispensáveis lições do professor Álvaro Pires. O autor destaca a relevância de uma postura interdisciplinar criativa pelo pesquisador. Sublinha a necessidade de contato com outras disciplinas, para além do campo de especialização, como forma de aumento da criatividade e aprimoramento da qualidade do “produto fabricado”.[8] O que, sem dúvida, aplica-se também ao campo do direito, o qual carece (e muito) de uma metodologia de pesquisa capaz de auxiliar a imperiosa transformação das práticas jurídicas.

A investigação criminal é um bom exemplo nesse sentido; indispensável o diálogo entre o campo jurídico e outras esferas de saber como a psicanálise. De fato, na tentativa de superação de um formalismo penal dogmático, imerso numa lógica objetiva autorreferente, que funciona como método burocrático para a dominação dos corpos sociais, surge a dimensão psicanalítica como (mais) uma importante ferramenta de acesso ao fenômeno das permanências autoritárias no sistema penal.[9] Não é mais possível imaginar uma instância jurídica ainda formatada naquela pura lógica cartesiana, marcada pelo silogismo prático de meras subsunções entre fatos e normas, em um processo regrado para a obtenção de “a verdade”. Impossível separar a lei, o direito e a justiça das explicações trazidas pela psicanálise a respeito da constituição dos sujeitos; necessário, portanto, unir os dois discursos de maneira responsável, a fim de se estabelecer um diálogo transformador do status quo.[10] 

A interseção direito-psicanálise, cada vez mais popular na academia brasileira, inclusive com grupos de estudo sobre essa temática específica como o importante Núcleo de Direito e Psicanálise da Universidade Federal do Paraná sob a coordenação do competente Professor Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, revela uma conexão antiga, que atravessa o discurso psicanalítico desde seus primórdios, ainda que em grande parte de modo implícito,[11] assumindo atualmente a feição de verdadeira exigência democrática[12]. Por evidente, contudo, que se trata de aproximação a demandar extrema cautela, afinal de contas são campos autônomos e que exigem respeito às pertinentes construções epistemológicas, evitando com isso importações indevidas de categorias ou outras formas abusivas de distorções teóricas. Conforme adverte Morais da Rosa, esses discursos apresentam especificidades e devem ser colmatados a partir da perspectiva da diversidade construtiva, de modo que não podem ser tomados como idênticos nem antagônicos.[13]

Por fim, quanto à necessidade de verificação das formas jurídicas a partir dos dados da realidade, essa sempre foi uma exigência das teorias críticas, em especial da criminologia. Aliás, segundo Bustos Ramírez e Hormazábal Malarée, a crítica criminológica deve necessariamente pautar-se por dados empíricos da realidade.[14] Isso porque são justamente as pesquisas que escancaram a “distância cognitiva entre a programação normativa – e o discurso institucional – por um lado, e a concretude das instituições e de seu funcionamento, por outro”.[15] As constatações empíricas são sempre motivo de estranhamento pela casta dogmática do direito, uma vez que relativizam o alcance e a precisão dos comandos normativos e permitem compreender o jogo negociado entre a realidade e as normas, numa constante adaptação em duas vias.[16] Neste particular, a descautelaridade da prisão preventiva pode servir de referencial ilustrativo.

Diante de todo o exposto, resta evidente que a insistência em um saber jurídico marcado pelo dogmatismo, incapaz de dialogar com outros saberes e com os dados empíricos, apenas reforça a dimensão autoritária desse dispositivo de poder. Ademais, em se tratando do sistema jurídico-penal, a tragédia é ainda maior, uma vez que a extensão dos danos (ou melhor: das dores) é potencializada num contexto de absoluta desconsideração do primado fundamental da alteridade humana.


[1] Deve-se entender por dogma “toda asserção ou crença que é afirmada como verdadeira independentemente de ter que apresentar razões, argumentos e provas de sua veracidade” (MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. Fundamentalismo e Guerra. In: MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de (Org.). Direito e Psicanálise: interseções e interlocuções a partir de “O Caçador de Pipas” de Khaled Housseini. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 133);o que, no fundo, não passa de um tipo de argumentação paranoica (TIBURI, Marcia. “Fabulosofia”. In: Revista Cult, ano 11, n. 125, p. 32. São Paulo: Breganti, junho de 2008).      
[2] BRICOLA, Franco. Rapporti tra dommatica e politica criminale. Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale. Milano: Giuffrè, ano XXXI, fasc. 1, jan./mar., 1988, p. 5.
[3] Confira, por todos, TIBURI, Marcia. Como Conversar com um Fascista: reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 2015.
[4] FRAGOSO, Christiano Falk. Autoritarismo e Sistema Penal. 01 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015, p. 385 – 386.
[5] DUSSEL, Enrique. Ética da Libertação na idade da globalização e da exclusão. 4 ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 2012, p. 454. 
[6] CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 57.
[7] CADEMARTORI, Luiz Henrique; AMORIM, Wellington Lima. O Ceticismo como Método Jurídico. In: MORAIS DA ROSA, Alexandre; FERRAREZE FILHO, Paulo; MATZENBACHER, Alexandre. Estudos Críticos de Direito e Psicologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 55.
[8] PIRES, Álvaro Penna. Sobre direito, ciências sociais e os desafios de navegar entre esses mundos: uma entrevista com Álvaro Pires. Entrevistadores: Carmen Silvia Fullin, Ana Lucia Pastore Schritzmeyer e José Roberto Franco Xavier. Revista de Estudos Empíricos em Direito. Brazilian Journal of Empirical Legal Studies, vol. 2, n. 1, jan 2015, p. 232.
[9] PRADO, Geraldo. Apresentação. In: CASARA, Rubens R. R.. Mitologia Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 20.
[10] SANTOS, Lijeane Cristina Pereira; HARTMANN, Helen. Apresentação. In: MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de (Org.). Direito e Psicanálise: interseções e interlocuções a partir de “O Caçador de Pipas” de Khaled Housseini. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. viii.
[11] COUTINHO JORGE, Marco Antônio. Prefácio. In: CASARA, Rubens R. R.. Mitologia Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 12.
[12] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Decisão Penal: bricolagem de significantes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 2.
[13] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Se o jurista tem inconsciente, o diálogo com a psicanálise é fundamental. In: MORAIS DA ROSA, Alexandre; TRINDADE, André Karam. Precisamos falar sobre Direito, Literatura e Psicanálise. Florianópolis: Letras e Conceitos, Lda & Empório do Direito, 2015, p. 29.
[14] BUSTOS RAMÍREZ, Juan J.; HORMAZÁBAL MALARÉE, Hernán. Lecciones de Derecho Penal: parte general. Madrid: Trotta, 2006, p. 38.
[15] BRASIL. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Excesso de Prisão Provisória no Brasil: um estudo empírico sobre a duração da prisão nos crimes de furto, roubo e tráfico (Bahia e Santa Catarina, 2008-2012). Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria de Assuntos Legislativos; Ipea, 2015 (Série Pensando o Direito; 54), p. 92.
[16] BRASIL. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Excesso de Prisão Provisória no Brasil: um estudo empírico sobre a duração da prisão nos crimes de furto, roubo e tráfico (Bahia e Santa Catarina, 2008-2012). Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria de Assuntos Legislativos; Ipea, 2015 (Série Pensando o Direito; 54), p. 92.

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    é delegado da Polícia Civil de Santa Catarina, mestre em Direito pela UFPR, especialista em Direito Penal e Criminologia, além de professor de Direito Processual Penal em cursos de graduação e pós-graduação.

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