Segunda Leitura

Sistema recursal burocratiza os juizados especiais federais

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

23 de outubro de 2016, 10h12

Spacca
No Brasil, tal como nos outros países, os pequenos conflitos sempre foram solucionados fora do  Poder Judiciário, pela simples razão de que eles sempre reclamaram soluções rápidas e efetivas.

Ontem, hoje e sempre, as querelas entre pessoas exigem alguém que diga a cada um o que é seu. Nisso entram pequenas dívidas, conflitos de vizinhança, negócios feitos oralmente, enfim, os múltiplos desacertos na vida em sociedade.

Essas atribuições de pacificação social, desde a proclamação da Independência do Brasil, foram exercidas por juízes de paz[1], inspetores de quarteirão, delegados de polícia, promotores de Justiça e procuradores dos estados em atividade de assistência judiciária.

Ocorre que, em 1988, a Constituição passou ao Poder Judiciário a exclusividade de decidir todo e qualquer conflito e proibiu qualquer forma de obstáculo para o ingresso na Justiça. Os juízes de paz, por exemplo, foram reduzidos à celebração de casamentos (CF, artigo 98, inciso II) e os inspetores de quarteirão foram deletados sem aviso prévio.

Acontece que essa mudança, tal qual outras da nova Constituição, só era boa na aparência. Na realidade, ela simplesmente fez com que as pequenas desavenças ficassem sem solução, com prejuízo maior para as pessoas de baixa renda.

Óbvio que o ingresso ao Judiciário sempre esteve disponível, mas ninguém se sentia estimulado a propor uma ação para solucionar conflitos de menor porte, como um adolescente que ouve músicas em alto volume, incomodando a vizinhança.

Passaram-se alguns anos, até que em 1995 a Lei 9.099 viesse a criar os juizados especiais no âmbito dos estados, com competência para conciliação, processo e julgamento das causas cíveis de menor complexidade, com valor máximo até 40 salários-mínimos, bem como para a conciliação, julgamento e a execução das infrações penais punidas como pena máxima não superior a dois anos. No artigo 2º da Lei 9.099, ficou explícito que os processos nos juizados devem orientar-se pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando, sempre que possível, a conciliação ou a transação.

Vilian Bollmann observa que “os juizados especiais surgiram no Brasil como uma consequência das ondas renovatórias que visavam ampliação do acesso à justiça pela transformação do processo em algo mais informal, menos custoso e, principalmente, rápido para resolver os problemas do cidadão”[2].

A Justiça Federal passou a aplicar a referida lei, no que fosse possível, às ações que lhe eram submetidas. E no ano de 2001 a Lei 10.259 preencheu o vácuo legislativo, regulando os juizados especiais cíveis e criminais no âmbito da Justiça Federal. Assemelhados aos estaduais, neles o valor máximo é um pouco maior, ou seja, 60 salários mínimos.

Nesse novo sistema os pagamentos das dívidas até 60 salários mínimos são feitos independentemente de precatório, através de simples requisição de pequeno valor (RPV) em apenas 60 dias. Para agilizar as ações, a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) criou, em 2004, o Fórum Nacional dos Juizados Especiais Federais (Fonajef)[3], editando 110 enunciados que auxiliam em muito o andamento das ações e a execução dos julgados[4]. Juizado itinerantes, principalmente na região Norte do Brasil, levando a Justiça àqueles que, por vezes, nem sequer têm documentos. Excelente.

Face à necessidade do duplo grau de jurisdição, estabeleceu-se que contra as decisões dos JEFs cabe recurso para uma Turma Recursal, cabendo aos tribunais regionais federais dispor sobre onde elas se localizariam e a implantá-las. Tudo perfeito.

Mas, eis que a simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade perseguida pelos juizados especiais em geral começou a ser posta em cheque. E o que era simples foi se complicando mais e mais. Além da possibilidade de a parte interpor recurso extraordinário ao Supremo Tribunal Federal (CF, artigo 102, inciso II, “a”) que, seja ou não aceito, retardará a decisão final por anos, outros incidentes surgiram no caminho.

A divergência entre decisões das turmas de cada Seção Judiciária deu origem a turmas regionais de uniformização, localizadas nos tribunais regionais federais. Por exemplo, no TRF da 4ª Região há julgamento pelo TRU a cada mês[5].

Todavia, as turmas regionais também podem divergir sobre determinados temas. E daí o Conselho de Justiça Federal, vinculado ao Superior Tribunal de Justiça, através da Resolução 390/2004, criou a Turma Nacional de Uniformização (TNU). A ela compete julgar o incidente de uniformização de interpretação de lei federal, em questões de Direito Material fundado em divergência entre decisões de turmas recursais de diferentes regiões ou em contrariedade à súmula ou jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça[6].

Finalmente, o artigo 28 da Resolução 390, de 2004, do Conselho da Justiça Federal, prevê um incidente de uniformização perante o STJ, a ser processado mediante requerimento da parte ao presidente da Turma Nacional de Uniformização. Esse processamento é de duvidosa constitucionalidade, porque, por vias oblíquas, na verdade é um novo recurso à corte superior, sem previsão no artigo 105 da Constituição Federal. Além disso, é mais um fator de prolongamento do conflito.

Desse emaranhado de leis e atos administrativos sobre recursos nos JEFs, o que ressalta é a velada e constante perda de objetividade do julgamento célere e informal, princípios básicos dos julgamentos nos juizados especiais, federais ou estaduais. Uma ação em um JEF pode acabar tendo nada menos que cinco tipos de recursos (TR, TRU, TNU, STJ e STF), um a mais do que uma ação em Vara Judicial comum. Sem falar nos Embargos de Declaração.

A ConJur, em 12 de outubro passado, noticiou que “para o ministro Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, a operação “lava jato” demonstra a existência de “um Direito Penal absolutamente ineficiente [que] não funcionou, durante anos, como mínima prevenção geral para evitar um amplo espectro de criminalidade”[7].

Em boa hora o fato é reconhecido e dito de forma clara por um magistrado da corte suprema. Acrescenta-se, todavia, que essa ineficiência não é privilégio do processo penal. Ela está presente, também, nas ações civis e, em menor grau, na jurisdição trabalhista e militar. E agora avança sobre o último reduto da informalidade e da celeridade, ou seja, os juizados especiais, no caso, os federais.

A existência de um Poder Judiciário que decida em prazo razoável (dois anos se não houver perícia) e com um mínimo de segurança, é garantia da democracia. Sistema de Justiça eficiente significa julgamento em dois graus de jurisdição e, excepcionalmente, uma terceira decisão judicial, sem exame de provas. O Brasil passou ao oposto a partir de 1988 e isso está levando a uma ineficiência inédita e à criação de formas paralelas de julgamento, lícitas (por exemplo, arbitragem) ou ilícitas (caso das milícias no Rio de Janeiro).

Em suma, ações nos juizados especiais federais precisam retornar à sua simplicidade, sob pena de contabilizarmos mais um fracasso no nosso sistema de Justiça. Com certeza já alcançamos um estágio de evolução que nos permita sair deste caminho equivocado e a avançar na busca de julgamentos mais céleres.


Autores

  • Brave

    é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente da International Association for Courts Administration (IACA), com sede em Arlington (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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