Opinião

Execução provisória da pena: viés funcionalista ou retorno ao neokantismo?

Autor

  • Abhner Youssif Mota Arabi

    é juiz auxiliar da presidência do Supremo Tribunal Federal coordenador do Centro de Mediação e Conciliação do STF doutorando em Direito do Estado (subárea: Direito Constitucional) na Universidade de São Paulo (USP) mestre em "Direito Estado e Constituição" pela Universidade de Brasília (UnB) ex-assessor de ministro do Supremo Tribunal Federal (2014-2018) e autor de livros capítulos de livros e artigos jurídicos.

23 de outubro de 2016, 13h23

Como já amplamente noticiado, em 5/10/2016 — na data do aniversário de 28 anos da Constituição, curiosamente —, o Supremo Tribunal Federal completou o julgamento da medida cautelar nas ações declaratórias de constitucionalidade 43 e 44. Em tais feitos, apresentava-se o pedido principal de reconhecimento da validade e aplicabilidade do artigo 283 do Código de Processo Penal, buscando-se reverter o entendimento afirmado pelo mesmo STF, de mesma composição, no HC 126.292 (julgado em 17/2/2016); dessa vez, por meio de decisão dotada de eficácia erga omnes e efeitos vinculantes. O resultado do julgamento, como já se projetava, foi o mesmo do que se tentava superar, alterando-se apenas o resultado de votação, já que o ministro Dias Toffoli alterou seu posicionamento inicial. Entretanto, para além dos comentários sobre o conteúdo em si do referido julgamento, o presente texto pretende apresentar uma nova perspectiva de análise da questão.

Na busca de um voto médio entre a posição que restou majoritária na corte, afora os fundamentos jurídico-constitucionais que buscassem compatibilizar a presunção de inocência até o trânsito em julgado (artigo 5º, LVII, da CRFB/88) com a possibilidade de início do cumprimento da execução da pena privativa de liberdade antes da imutabilidade formal da decisão condenatória, nota-se que muitas razões de política criminal e judiciária serviram de verdadeiros fundamentos ao convencimento dos seis inmistros que se posicionaram pela possibilidade da execução provisória da pena. Dentre as razões citadas, identificam-se, por exemplo, reclamos de vitimologia — como explicar a um pai que o assassino condenado de sua filha ainda aguarda, mais de 20 anos depois de sua morte, em liberdade seu julgamento ou o trânsito em julgado de sua sentença condenatória? —; dados estatísticos da criminalidade violenta no Brasil — nossa taxa de homicídios é maior do que países que se encontram em conflitos militares, o que ensejaria uma resposta punitiva mais incisiva —; aspectos fáticos relativos à natureza do sistema prisional brasileiro — é grande nossa população carcerária e há muitos presos submetidos a custódias cautelares, em condições insalubres e indignas, sendo que a alteração do nomen iuris da custódia penal de carcer ad custodiam para carcer ad poenam atrairia maiores preocupações da sociedade e das instituições públicas para essa dura realidade —; a abusividade do direito de defesa e do manejo de recursos (que aqui se toma a liberdade de denominar esquizofrenia recursal) — a necessidade de aguardar o trânsito em julgado possibilita que os acusados, via seus advogados, interponham sucessivos recursos inadmissíveis e protelatórios apenas com a finalidade de postergar o marco de definitividade da condenação penal —; o aumento da seletividade do Direito Penal e das agências de persecução criminal — ao possibilitar a denominada ‘esquizofrenia recursal’, os acusados com maior capacidade financeira teriam a possibilidade de contratar melhores advogados, que melhor saberiam se valer das brechas que o sistema permite, deixando apenas aos menos favorecidos o cumprimento mais imediato da pena que lhe foi imposta —; dentre outros.

É a partir daqui, isto é, da utilização de valores de política criminal e judiciária para a fundamentação de decisão de tamanha importância, extrapolando-se os argumentos estritamente jurídicos[1], que se propõe a nova ótica de análise da questão: utilizou-se o Supremo Tribunal Federal de fundamentos funcionalistas ou, em verdade, regressou-se a embasamentos neokantistas?

Dentro do estudo da evolução epistemológica das teorias estruturantes do crime, costuma-se fazer um agrupamento didático e aproximado entre quatro escolas principais, cronologicamente assim apresentadas: causalismo clássico, neokantismo, finalismo e funcionalismo[2]. Para o presente artigo, tendo em vista o paralelo que se quer traçar, importará mais especificamente a segunda e a quarta escolas.

No delineamento dos elementos diferenciadores das teorias do crime, aponta-se como traço próprio do neokantismo (também chamado de teoria causal neoclássica ou de teoria teleológica) — para além da construção de uma culpabilidade normativo-psicológica, aspecto que não importa ao presente texto — a possibilidade de apropriação decisória do fato supostamente criminoso e da lei penal com uma maior abertura interpretativa, por meio de um critério axiológico, propondo, em lugar de uma visão fechada, legalista e formal, uma ótica axiológica na construção decisória do Direito Penal. Em superação ao modelo estritamente ontológico das teorias causais clássicas, propõe-se a atribuição de um maior peso ao dever-ser­ do que ao ser, de modo que a atividade de interpretação do Direito Penal como um todo poderia se dar com base em valores de política criminal, impondo-se quase que nenhum limite à atividade do julgador.

De outro lado, o funcionalismo de Claus Roxin — comumente denominado de funcionalismo-teleológico, em distinção ao funcionalismo-sistêmico de Günther Jakobs — surge em uma tentativa de superação do finalismo, que também se baseava em aspectos ônticos e formais na interpretação do fato típico, ilícito e culpável. Segundo a proposta de Roxin, bastante inovadora na década de 1970, é a política criminal que deve guiar a aplicação do Direito Penal, em que deve prevalecer um critério de interpretação axiológico e valorativo (deontológico, portanto). Desse modo, seria possível ao juiz decidir um caso concreto com base em um princípio de política criminal, ainda que para isso seja necessário superar a dogmática penal estrita e formalista. Propõe-se uma ruptura com o modelo finalista ontológico-dogmático, ao mesmo tempo em que se nega um retorno ao neokantismo, uma vez que a proposta funcionalista se diferenciaria pela imposição de limites às atividades valorativas do julgador: os princípios constitucionais de política criminal e a finalidade principal do Direito Penal de proteger bens jurídicos.

Assentadas sinteticamente essas premissas teóricas, volta-se à pergunta inicial: a partir da utilização de valores de política criminal e judiciária para a fundamentação da decisão proferida nas ADCs 43 e 44 é possível identificar um viés funcionalista do Supremo Tribunal Federal ou estar-se-ia a regressas a fundamentos neokantistas?

De modo resumido, entende-se que o texto constitucional é claro ao condicionar a caracterização da culpa penal de alguém ao trânsito em julgado da decisão penal condenatória (artigo 5º, LVII, da CRFB/88), diferindo-se nesse ponto da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, que assegura a presunção de inocência “enquanto não se comprove legalmente sua culpa” (artigo 8.2). Não se admitindo a prisão de pessoa ainda não considerada juridicamente culpada, a menos nos casos de prisão em flagrante ou cautelar, entende-se que também a execução da sanção penal estaria condicionada ao trânsito em julgado da condenação penal (entendimento afirmado pelo Supremo Tribunal Federal no HC 84.078, julgado em 2009). Sob tal ótica, a possibilidade de modificação de tal regime jurídico se daria: (i) pela alteração da redação do dispositivo constitucional, considerando que não se atinja o núcleo essencial da presunção de inocência; ou (ii) pela modificação infraconstitucional do conceito de trânsito em julgado, modificando-se a estrutura do sistema recursal penal.

Nesse sentido, a utilização de fundamentos de política criminal em tal caso, ainda que se valha de uma pretensão de filtragem constitucional do Direito Penal, revela-se desrespeitadora dos princípios constitucionais que devem delimitar a sua interpretação axiológica. Nesse ponto é que se sugere um certo regresso a matrizes neokantistas, valorizando-se aquilo que se imagina que deveria-ser, ainda que para tanto sejam superados princípios constitucionais expressamente dispostos. Não se pode, sob o pretexto de se realizar uma filtragem constitucional do ordenamento jurídico e de conferir uma ótica axiológico-teleológica, ultrapassar as disposições constitucionais expressas, notadamente quando se tratem de direitos fundamentais do acusado em processo penal.

O questionamento proposto parece se mostrar ainda mais relevante se se considerar que razões de política criminal e judiciária serviram de fundamento também para os votos vencidos, em que se assentava a impossibilidade da execução provisória da pena privativa de liberdade. Nesses casos, porém, parece que esses fundamentos axiológicos foram contidos pelos princípios constitucionais de Direito Penal e pelos direitos fundamentais do acusado, tal como proposto por Roxin, em uma aproximação mais funcionalista da interpretação do ordenamento.

Ainda que se concorde com o diagnóstico e com a gravidade dos vários problemas que o sistema criminal brasileiro apresenta — com o que aqui expressamente se concorda —, não se pode fazê-los valer a qualquer custo. O que aqui se aponta como relativo retorno a matrizes neokantistas se revela na prática cotidiana dos tribunais brasileiros como preponderância de subjetivismos que, em excesso e ainda que bem intencionados, podem se mostrar perigosos ao Estado Democrático de Direito, sobretudo quando se trata de matéria penal.


[1] Sobre a relação entre Judiciário e Legislativo na interpretação da Constituição e a resoeuti das limitações ao exercício das competências daquele primeiro Poder, conferir: ARABI, Abhner Youssif Mota. A tensão institucional entre Judiciário e Legislativo: diálogo, controle de constitucionalidade e a legitimidade da atuação do Supremo Tribunal Federal. Curitiba: Editora Prismas, 2015.
[2] A propósito, conferir: GRECO, Luís. Introdução à dogmática funcionalista do delito. Em comemoração aos trinta anos de “Política criminal e sistema jurídico­penal” de Roxin. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 8, n. 32, p. 120­163, out./dez. 2000.

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