Opinião

Base de cálculo do ISS para subempreitadas não é assunto encerrado

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22 de outubro de 2016, 9h30

A base de cálculo do Imposto Sobre Serviços (ISS), sabemos todos, é, regra geral, o preço do serviço. Sensibilizado talvez com a sua importância econômica e com o seu alto grau de especialização, o Decreto-Lei 406/68 (art. 9º, §2º) consentiu, para o segmento da construção civil, que da base tributável típica do imposto municipal fossem deduzidas duas conhecidas e relevantes grandezas, a saber:

(a) o valor dos materiais fornecidos pelo empreiteiro prestador (alínea ‘a’); e
(b) o valor das subempreitadas contratadas pelo empreiteiro prestador, e já tributadas pelo imposto (alínea ‘b’).

Os materiais referidos na alínea ‘a’, esclareça-se desde logo, são aqueles adquiridos pelo prestador junto a terceiros fornecedores, e não insumos fabricados por ele próprio, prestador.

É que os materiais fabricados pelo prestador (fora do local da obra) estão igualmente excluídos da base do ISS, mas em razão de outra disposição do DL 406/68, qual seja, o próprio item 32 lista de serviços[1], segundo o qual “o fornecimento de mercadorias produzidas pelo prestador de serviços, fora do local da prestação dos serviços (…), fica sujeito ao ICMS”.

Pois bem. Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, pairou sobre as alíneas ‘a’ e ‘b’ a ameaça da inconstitucionalidade. Suspeitou-se que configurassem escamoteada isenção heterônima, em afronta ao art. 151, III da Carta.

A nós sempre pareceu despropositada tal cogitação, já porque a lei complementar nacional – roupagem da qual se revestiu o DL 406/68 na nova ordem constitucional – não traduz produto legislativo da União Federal, mas da República Federativa do Brasil, o que inibe no nascedouro a vislumbrada figura da isenção heterônima.

Fato é que no RExt 603.497, em agosto de 2010 e já sob regime da repercussão geral, o Supremo Tribunal Federal, por decisão monocrática da relatora Ellen Gracie, dissipou tais suspeitas relativamente aos materiais aplicados na obra (alínea ‘a’). Entendeu-se, na oportunidade, que o DL 406/68 não veiculava isenção de tributo municipal, mas apenas calibrava a sua base de cálculo, incumbência própria da lei complementar nacional tributária (CR, art. 146, III). A decisão monocrática foi atacada por agravo regimental, até hoje pendente de julgamento.

Alguns meses depois, em março de 2011, nos autos do RExt 599.582, o mesmo STF coerentemente estendeu, para as subempreitadas (alínea ‘b’), o mesmo entendimento já então revelado para os materiais, firmando a compatibilidade daquela dedução com o texto constitucional.

Embora proferidos já na vigência da Lei Complementar 116/03, os dois referidos precedentes claramente tomaram como parâmetro legislativo o DL 406/68. A ementa do RExt 599.582 não poderia ser mais explícita a esse respeito:

 “A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é firme no sentido de que o art. 9º do Decreto-Lei 406/1968 foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988. Pelo que é possível a dedução da base de cálculo do ISS dos valores dos materiais utilizados em construção civil e das subempreitadas”.

E qual a novidade advinda da LC 116/03? Relativamente à dedução dos materiais, nenhuma; afinal, a norma do art. 9º, §2º, ‘a’ do DL foi simplesmente reproduzida no art. 7º, §2º, I do novo diploma complementar. Já a norma do art. 9º, §2º, ‘b’ do DL, dedicada às subempreitadas, teve o seu equivalente na LC (art. 7º, §2º, II) vetado pelo Poder Executivo.

Segundo se lê nas respectivas razões de veto, o problema esteve em uma pequena, mas significativa alteração na redação da norma: enquanto o DL permitia a dedução das subempreitadas “já tributadas” pelo imposto, a LC falava em subempreitadas “sujeitas” ao imposto; assim, se antes exigia-se a comprovação do efetivo recolhimento do ISS pelo subempreiteiro, a partir da LC 116/03 contribuintes poderiam enxergar espaço para a dispensa de tal demonstração, evidentemente ampliando o montante potencial das deduções.

A questão a pedir resposta, então, passou a ser: com o veto presidencial ao art. 7º, §2º, II da LC 116/03, a dedução das subempreitadas da base tributável na construção civil tornou-se proibida? Ou, por outro giro, o art. 9º, §2º, ‘b’ do DL 406/68 foi revogado pela LC 116/03?

Bem, revogação expressa não houve. O art. 10 da LC 116/03 revogou os arts. 8º, 10, 11 e 12 do DL 406/68, todos eles dedicados ao ISS, mas poupou precisamente o art. 9º. A revogação, porém, pode ser tácita (LICC, art. 2º, §1º), quando a nova norma (i) for incompatível com a anterior ou (ii) regular inteiramente a matéria disciplinada na lei anterior.

Essa segunda hipótese de revogação tácita parece enquadrar bem a relação entre os arts. 9º do DL e 7º da LC. Ora, o novo legislador complementar teve a lembrança de disciplinar customizadamente a base tributável da construção civil, revelando inequívoca pretensão de esgotar esse subtema do ISS. O próprio veto ao inciso II é ainda mais sintomático de tanto. A LC 116/03 não “se esqueceu” das subempreitadas; ao contrário, entre manter a dedução das subempreitadas com contornos ainda mais ampliados ou sacrificá-la integralmente, fez a opção consciente, gostemos dela ou não, pela segunda possibilidade.

A hipótese de revogação tácita do inciso art. 9º, §2º, ‘b’ do DL 406/68 parece-nos, pois, bastante densa. Mais do que a nossa opinião pessoal a respeito, importa reter, aqui, que o STF, ao julgar o RExt 599.582, afirmou a compatibilidade dessa norma com a CR, mas em nenhum momento afirmou a vigência desse dispositivo após a vigência da LC 116/03.

Aliás, já disse o STF, com inteiro acerto, que “a discussão envolvendo a revogação tácita (ou não) do Decreto-Lei 406/68 pela Lei Complementar 116/03 é matéria de índole infraconstitucional”[2], com isso endereçando ao STJ a solução do impasse. Vejamos, então, como essa Corte tem historicamente se posicionado sobre a base de cálculo do ISS na construção civil.

O reiterado entendimento do STJ sempre foi, digamos, radical: seja na vigência do DL 406/68, seja na vigência da LC 116/03, a base de cálculo do ISS na construção civil não comporta nenhuma dedução. Por todas, a seguinte ementa:

“A jurisprudência uniforme desta Corte é no sentido de que a base de cálculo do ISS é o custo integral do serviço, não sendo admitida a subtração dos valores correspondentes aos materiais utilizados e às subempreitadas.

(…) a dedução dos materiais empregados, por prescrição dos itens 19 e 32, respectivamente, restringia-se ao fornecimento de mercadorias produzidas pelo prestador de serviços fora do local da prestação de serviço”[3].

Para o STJ, pois, os materiais dedutíveis da base tributável da empreiteira seriam somente aqueles por ela produzidos, e fora do local da obra. A hermenêutica nos parece insustentável, pois essa específica dedução – a dos materiais fabricados pelo próprio prestador – já está prevista, como se viu no início deste trabalho, no próprio item da lista de serviços que trata das obras de construção civil[4]. Ao conferir uma espécie de interpretação sistemática do art. 9º, §2º com o item da lista relativo à construção civil, ambos do DL 406/68, o STJ simplesmente fez letra morta do art. 9º, §2º, dele retirando qualquer utilidade normativa além daquela que o próprio item da lista, sem necessidade de qualquer reforço, já produzia.

Ainda mais despropositado foi recusar, nesse mesmo contexto hermenêutico, a dedução das subempreitadas, que nunca foram referidas no item da lista relativo à construção civil.

Esse solene desprezo, pelo STJ, ao art. 9º, §2º do DL 406/68 e a seu sucessor na LC 116/03, perdurou até aproximadamente 2011, quando a 1ª e 2ª Turmas, à guisa de ajustar sua jurisprudência ao entendimento prevalecente no STF, passaram a admitir a dedução tanto dos materiais quanto das subempreitadas:

“O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o RE 603.497/MG, no rito do art. 543-B do CPC, concluiu ser possível, mesmo na vigência da Lei Complementar 116/2003, a dedução da base de cálculo do ISS do material  empregado na construção civil. No RE 599.582/RJ, concluiu-se que a orientação adotada no recurso acima é aplicável aos valores das subempreitadas”[5].

A partir de então, o STJ passou a admitir a dedução das subempreitadas, inclusive na vigência da LC 116/03, em atenção a uma suposta orientação advinda do RExt 599.582, que, porém, não enfrentou – insistamos no ponto – a questão da vigência ou revogação do art. 9º, §2º, ‘b’ do DL 406/68.

Parece-nos, pois, que, rendidas todas as vênias, nos dois momentos em que se divide a jurisprudência do STJ, a Corte errou: no primeiro, por recursar qualquer eficácia normativa ao art. 9º, §2º do DL 406/68; no segundo, por ignorar o veto ao art. 7º, §2º, II da LC 116/03, e não enfrentar a possível revogação do art. 9º, §2º, II do DL 406/68, em decorrência do referido veto.

Tão logo se aperceba disso, o tribunal poderá, por que não, reabrir e enfrentar finalmente essa questão. O mesmo STJ, aliás, já decidiu há muito (REsp 713.752) que os §§1º e 3º do mesmo art. 9º do DL 406/68, que disciplinam o regime uniprofissional do ISS, não foram revogados, nem expressa, nem tacitamente pela LC 116/03.

Esse precedente pode até sinalizar uma tendência de que o mesmo entendimento seja aplicado ao §2º; as situações, porém, não são exatamente similares. Afinal, a LC 116/03 simplesmente não aborda o regime uniprofissional, o que afasta as hipóteses possíveis de revogação tácita. Esse completo silêncio da LC 116/03 sobre o regime uniprofissional, inclusive, integra os fundamentos adotados pelo STJ para recusar a revogação tácita:

“Por outro lado, não se deu, da mesma forma, a revogação tácita, porquanto inexiste incompatibilidade entre os dispositivos legais mencionados. Assim, não se constata na Lei Complementar nº 116/2003 – que não disciplinou tema semelhante ao disposto no art. 9º, §3º, do Decreto-Lei nº 406/68 – nenhuma disposição que gerasse incompatibilidade com a tributação por alíquota fixa ora em debate”[6].

Já as deduções da base tributável na construção civil, como vimos, foram específica e detidamente contempladas na LC 116/03, o que nos autoriza a antever um entendimento possivelmente diferente do STJ acerca da revogação tácita do art. 9º, §2º do DL 406/68.

A reflexão que estamos aqui propondo ganhou ainda mais atualidade, e contornos quiçá dramáticos, em razão de um recentíssimo julgado do STF. Trata-se da ADPF 190/SP, na qual o Supremo fixou a tese de que “é inconstitucional lei municipal que veicule exclusão de valores da base de cálculo do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza fora das hipóteses previstas em Lei Complementar Nacional”.

A arguição, proposta pelo Distrito Federal, atacava lei do município paulista de Poá que excluía da base do ISS o IRPJ, a CSLL, o Pis e a Cofins. Embora se trate de dedução distinta e com contexto histórico muito diverso dessas deduções apreciadas na ADPF, a exclusão das subempreitadas da base tributável na construção civil, por lei municipal, caso se entenda revogado o art. 9º, §2º, ‘b’ do DL 406/68, subsumir-se-á precisamente à tese firmada na ADPF.

Isso significa que todas as leis municipais que ainda admitam a dedução das subempreitadas poderão ser questionadas em juízo; não pelos contribuintes, certamente, pois esses são os maiores interessados na manutenção da dedução mantida, mas por outros municípios que já recusem a dedução e sintam-se prejudicados pela generosidade do município vizinho.

É o caso, por exemplo, lei municipal paulistana[7], que até hoje permite a dedução das subempreitadas da base tributável do ISS na construção civil. Estará essa dedução, tão cara ao segmento da construção civil, com os dias contados no maior município brasileiro?

 


[1] Equivalente ao item 7.02 da atual LC 116/03.

[2] STF. RExt 826.713. Min. Roberto Barroso. j. 10.8.16.

[3] REsp 926.339. 2ª T. Rel. Min. Eliana Calmon. j. 3.5.07. No mesmo sentido: AgRg no AI 1.257.286. AgRg no REsp 1.085.475; REsp 974.265; REsp 256.210; REsp 328.427.

[4] Item 19 na redação original do DL 834/69; item 32 na redação conferida pela LC 56/87; e item 7.02 na redação da LC 116/03.

[5] STJ. REsp 1.327.755. 2ª T. Rel. Min. Herman Benjamin. J. 18.10.12. No mesmo sentido: AgRg no AgRg no AI 1.410.608. 1ª T.

[6] STJ. 2ª T. AgRg no AI 1.229.678. Rel. Min. Campbell Marques.

[7] Lei 13.701/03, art. 14, §7º, II.

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  • Brave

    é advogado, mestre em direito tributário pela USP, sócio do escritório Tranchesi Ortiz e Andrade Advocacia e ex-integrante do Conselho Municipal de Tributos de São Paulo.

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