Senso Incomum

E Dworkin levou a culpa pela relativização da presunção da inocência

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20 de outubro de 2016, 7h00

Spacca
Caricatura Lenio Luiz Streck (nova) [Spacca]Não sei qual é o recado ou mensagem que a corte suprema do Brasil quer passar à comunidade jurídica e à sociedade. O Supremo Tribunal Federal tem a prerrogativa — legítima — de dizer o direito por último. É uma espécie de nomoteta (dador de nomes em grego — que é a mesma coisa que legislador, conforme se vê no Crátilo — de Platão, na parte "da justeza dos nomes"; tanto é que, em alemão, legislador quer dizer Gesetzgeber, literalmente "dador de leis", claro que traduzido, contextualmente, por "legislador"). Nomina. O que diz, fica. E vale. Mas isso acarreta responsabilidade política, como diria Dworkin. Porque o judiciário deve decidir por princípio e não por política. E tampouco buscando corrigir o direito por intermédio da moral. E nem deve se valer de raciocínios consequencialistas/utilitaristas. Isso é tarefa da política. Por isso, o julgamento da presunção da inocência assume tanta importância. Transcende ao próprio julgamento, porque simboliza o grau de cumprimento (ou não) dos limites textuais de uma Constituição. A pergunta que se põe é: Até que ponto o STF pode dizer mais do que a Constituição? Supremo é “poder constituinte”? O futuro nos dirá.

Mientras tanto, quero dizer que, de algum modo, tudo acaba capilarizado na sociedade. E nas faculdades de direito. Veja-se que o pobre do Dworkin já está levando as culpas (ou os louvores, dependendo da torcida — se o comentarista é a favor ou contra que se pe execute provisoriamente a decisão) pelo fato de o STF ter decidido desse modo a MC nas ADCs 43 e 44. Vejamos alguns posts que circulam na internet:

“Mais uma vez prevaleceu a filosofia de Dworkin no que tange a aplicação de princípios gerais* de direito e da vontade da sociedade**. Neste sentido, lecionava Dworkin que o direito deve ser visto como um sistema aberto de normas*** que deve ser interpretado a luz dos princípios gerais do direito**** e atendendo aos anseios da sociedade*****” (cada asterisco é um erro; em quatro linhas, o post do professor de direito constitucional contém cinco erros).

“Estava na hora de o STF acabar com essa permissividade de o réu esgotar recursos e recursos”. “Tem que ponderar entre o bem individual e os valores coletivos”. Posts de alunos Brasil afora. Bons alunos, não? Quem serão seus professores?

“Essa Constituição dá direitos demais”. “Que bom que fizeram mutação”. Juristas palpiteiros (usando uma linguagem jornalística). Sem palavras (aliás, assunto desta crônica!).

Tudo coisa de gente do Direito. Os posts são autoexplicativos. Há no mínimo sete erros nessas frases. Pode-se falar mal de Dworkin e da CF, mas assim também já é demais. Cumprir direitos constitucionais é permissividade? Ponderar? Ponderar o quê?

Por isso é que aumenta a responsabilidade do STF. Ele deve dizer o direito de modo coerente e íntegro. Respeitando os limites da CF. Para dar bom exemplo. Para que as faculdades não ensinem coisas erradas para seus alunos. Vá que eles acreditem. Bom, na verdade, todos os dias se vê isso nas práticas cotidianas dos fóruns e tribunais.

A crise na interpretação
Levando em conta essa tensão epistêmica que estamos vivendo — em que um certo padrão mínimo de racionalidade perde para os subjetivismos e visões de mundo — escrevo estas mal traçadas linhas a seguir.

Palavras e coisas, eis a angústia que persegue o homem desde a aurora da civilização. Como se dar nome às coisas? Quais as condições de possibilidade para que eu possa dizer que algo é? Essa partícula “é”: eis o busílis da questão.

Pois vendo, entristecido, o desdém com que — mormente no mundo jurídico — se trata a questão da atribuição de sentidos, deparei-me com a crônica que consta no título do livro O Vendedor de Palavras, de Fábio Reynol. Trata-se da crise gerada pela “grave falta de palavras”. Palavras revelam e escondem. Desvelam e velam. Assim, quando faltam palavras, falta mundo. Que nada seja onde a palavra fracassa, diz um dos meus poetas (S. George). Reescrevo uma coluna de antanho. Adaptando o que uma professora disse na TV.

Um professor resolveu colocar uma banca de venda de palavras. Uma mesa, uma pilha de livros e a cartolina: hermenêutica, precedentes, súmulas, jurisdição constitucional, Dworkin, pós-positivismo, positivismo, direito/moral, princípios, ativismo — apenas R$ 100!

Demora quase quatro horas para que o primeiro de mais de 50 estudantes, professores de direito, integrantes de carreiras jurídicas e outros jovens e outros já agastados bacharéis, parar e perguntar (diálogo jovem bacharel – JB e professor -P):

JB — O que o senhor está vendendo?

P — Palavras. A promoção do dia é esse combo que está na placa. Na verdade, a promoção é inédita: estou vendendo algumas palavras já “ajuntadas”, uma espécie de combo epistêmico. E vem com um guia de instruções.

JB — O senhor não pode vender palavras. Elas não são suas. Palavras são de todos.

P — Você sabe o significado das palavras que estão na cartolina?

JB — Não.

P — Então você não as tem. Não vendo algo que as pessoas já têm ou coisas de que elas não precisem.

JB — Mas eu posso pegar essas palavras, uma por uma, de graça no dicionário.

P — Você tem dicionário em casa?

JB — Não. Mas eu poderia muito bem ir à biblioteca pública e consultar um.

P — Você estava indo à biblioteca?

JB — Não. Na verdade, eu estou a caminho da livraria para comprar um livro tipo “direito-mais-simples-possível”. Estou fazendo concurso.

P — Então veio ao lugar certo. Já que você está para comprar algo desse tipo, recheado de obviedades e palavras já bem usadas e desgastadas, pode muito bem levar para casa esse combo epistêmico por apenas R$ 100.

JB — Afinal, o que pretende com isso? O que as pessoas vão fazer com as palavras? Palavras são palavras, não enchem barriga.

P — Ora, os filósofos dizem que cada palavra corresponde a um pensamento. Se temos poucas palavras, pensamos pouco. Se eu vender uma palavra por dia, trabalhando 200 dias por ano, serão 200 novos  pensamentos por aí. Isso sem contar os que furtam o meu produto. Há muitos trombadinhas de palavras por aí. Mas também há os que têm medo de descobrir o significado das palavras. Ficam ao redor… mas não compram. Preferem entrar no Google e pegar de terceira mão… Olhe aquele sujeito de gravata — que, com certeza, é um “operador” do Direito — fazendo um olhar de desdém. Ora, quem desdenha quer comprar. Nunca me enganou… Eu tenho certeza de que ele tem um dicionário em casa. Assim que chegar lá, vai abri-lo e me roubar a carga. É um sonegador de palavras. De todo modo, suponho que para cada pessoa que se dispõe a comprar uma palavra, pelo menos quatro a roubarão. Mesmo assim, eu provocarei 800 pensamentos novos em um ano de trabalho. É minha função social.

JB — Mas o senhor está querendo fazer, como vou dizer… me falta a palavra…

P — Viu? Você está com séria falta de palavras.

JB — Está bem. Ganhou esta. Tive dificuldade em compreender, porque não sou bom em… de novo me falta a palavra…

P — É. A coisa está feia. Noto a falta, principalmente, de uma palavra chamada pré-compreensão. É isto que proporciona o trânsito pelas veredas do mundo, do direito, da vida…

JB — De fato, não tenho esta. Mas tenho outras. Mas não acredito muito nestas palavras que o senhor está dizendo. Para o que me proponho, o conjunto de palavras que disponho é suficiente. Eu me basto. Sou um ser livre. E prático. As coisas são como são.

P — Sei. Este é o ponto. Agora tenho certeza de que você precisa levar o combo, mesmo.

JB — Não me importa nada disso. Sou um homem prático. Sei o que sei. E o que sei sai de minha cabeça. Como bem diz um professor meu, “cada um explica o mundo e o direito segundo sua consciência”. E ele tem razão.

P — Está bem. Você está perdido, meu jovem.

JB — Ainda assim, insisto que isso tudo é teoria. O senhor usa palavras estranhas, põe palavras estranhas para vender, como filosofia da consciência, hermenêutica, pré-compreensão, interpretação conforme, etc. Na prática não é bem assim. Meu professor é que sabe das coisas. Ele diz que graças a teoria de Dworkin é que caiu a presunção da inocência. Gostei desse tal de Dworkin. A propósito, meu professor fala muito em ponderação. Isso não está no seu catálogo de vendas.

P — É verdade. É porque não vendo qualquer coisa. Essa palavra hoje está valendo não mais do que R$ 3,50. Sabe como é. Passando de boca em boca, deu no que deu. Passou a ter tantos sentidos, que seu preço caiu ao limite mínimo. Eu posso vender essa palavra, mas cobrarei uma fortuna. Mas venderei a legítima, só que a acompanha um folheto explicativo. Para que o freguês não compre gato por lebre. Aliás, você deve dizer ao seu professor que compre um livro do “tal” Dworkin. E que o leia.

JB — Insisto que meu professor tem razão. Ou seja, de que na prática a teoria não é assim.

P — Hum, hum! Vamos lá. Você não está apenas necessitando comprar muitas palavras. Está precisando mesmo é de um banho de descarrego epistêmico. Mas, vamos lá… É normal que na área do Direito se pense que é possível fazer uma cisão entre teoria e prática, entre questão de fato e questão de direito. Quem odiava isso, por exemplo, era Schopenhauer. Quem ler o livro Como Vencer um Debate sem Precisar Ter Razão, vai ver como ele odiava quem dissesse a frase: “isso é muito bom na teoria, mas na prática não funciona”. O que se pode fazer na “prática” sem que isso seja de algum modo teorizado? No senso comum teórico no qual você vive há uma algaravia conceitual sobre os dualismos metafísicos como “essência e aparência”, “teoria e prática” etc. Desculpe-me, dei-me conta de que você precisa comprar também as palavras algaravia e metafísica.

JB — Estou saindo. Larguei. Adeus!

P — Ei! Vai embora sem pagar?

JB — Tome seus R$ 100.

P — São R$ 1.500.

JB — Como é?

P — Pelas minhas contas, deve-me por volta de R$ 1.500. Entreguei-lhe um monte de palavras. Só o combo estava na promoção. Mas como senti um laivo de interesse no seu olhar, isto é, senti que o senhor se deu conta de que existe uma porção de palavras que não conhece, faço todas pelo mesmo preço. Afinal, Lacan dizia que a linguagem surge na falta. E vi essa falta em você. E como vi! Na verdade, me comovi. Ups: como diz o Professor Lenio, palavra é pá-que-lavra.

JB — Não complica mais minha vida. Fecha a conta.

P — Então somando tudo, incluindo nulidade parcial sem redução de texto, subjetividade, pré-compreensão e metafísica, por baixo, dá uns R$ 1.300. Entretanto, levando todas, dou de brinde a diferença entre princípios e regras. Esse conceito vai mostrar a você que princípios são deontológicos. Aliás, vai de brinde a palavra deontológico, que não é o que se pensa por aí. E também o conceito de presunção da inocência. Leva também “presunção de não culpabilidade”. Estão está muito na moda. Mas essas palavras devem ser, de novo, vitaminadas. Hoje estão sofrendo de anemia significativa, para usar uma expressão de Warat.

JB — Beleza. Fiquei freguês. Volto amanhã depois de digerir estas que o senhor me vendeu hoje.

P — Ótimo. Eis aí o início de uma fusão de horizontes. Quando voltar, já terá um bônus. Levará o conceito de fusão de horizontes e círculo hermenêutico. Pensando bem, já que fui com a sua cara, também vou lhe dar o conceito de mutação constitucional. Depois do que fizeram com ela nos últimos tempos…

Fim.

Post scriptum: E saiu o livro O Que é Isto – O Senso Incomum!

Para combater a inópia e o senso comum teórico dos juristas (e a falta de palavras), saiu o número 4 da coleção O Que é Isto. Desta vez, o tema é o “Senso Incomum”. Não é por nada que a coluna se chame Senso Incomum. Bingo.

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