Olhar Econômico

A nacionalidade da Pessoa Jurídica no final do século XX

Autor

  • João Grandino Rodas

    é sócio do Grandino Rodas Advogados ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP) professor titular da Faculdade de Direito da USP mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).

20 de outubro de 2016, 7h00

Spacca
João Grandino Rodas [Spacca]Tendo sido estudado, comparativamente, como a lei, a doutrina e a jurisprudência, em alguns países, influenciam-se na prática, desde o início do século XIX [1], agora é o momento de verificar o estado da arte no final do século XX.

O critério tradicional da sede social como indicador da nacionalidade das sociedades continuava a ser utilizado na França. A lei da sede social, no caso, a do principal estabelecimento em Lille, foi utilizada para verificar a responsabilidade do presidente em razão de falência da empresa (c. Deschamphelaere, 1955).

Tendo sido admitida a existência legal da sociedade na França, sua constituição, modificação e dissolução regiam-se pela lei suíça; lei essa ao mesmo tempo de sua constituição e de sua sede social (c. Demoiselle Peugeot, 1958).

Cabia à lei da sociedade, isto é, à da sede social, dizer se a pessoa jurídica se responsabilizava por atos realizados em seu nome, em qualquer lugar (c. Société Française d’Alimentation Saine, 1966).

Mesmo em questões fiscais, a jurisprudência privilegiava a sede social, rejeitando, expressamente, a subsidiariedade da noção de controle (c. Sandoz – 1950, Société Mayol – 1960 e Directeur Général des Impôts c. Mayol Frères – 1953).

A legislação italiana continuava a não usar claramente a expressão nacionalidade das sociedades, embora implicitamente a regulamentasse. Inobstante se referisse à sociedades no exterior, traçava lineamentos que permitiam estremar as sociedades italianas das estrangeiras. Eram italianas as sociedades organizadas na Itália e revestidas dos requisitos legais, mesmo que objetivassem atividade no exterior; ou as constituídas no exterior, mas com sede ou objeto principal na Itália.

A jurisprudência estabelecia que a nacionalidade pressupunha personalidade, que o lugar da constituição era o indicador da nacionalidade e que sede tinha a ver com direção e controle da atividade econômica da sociedade.

Sendo o conceito de nacionalidade correlativo ao de personalidade, não era possível atribuí-la à sociedade que não existisse como ente distinto das pessoas dos sócios (c. Fabrique de Crayons – 1958).

A nacionalidade da sociedade era indicada pelo critério do lugar de sua constituição (c. Azienda Generale – 1948 e Impresa Tudini – 1953).

Sede, para as finalidades do artigo 2.505, do Código Civil Italiano, mais do que o local onde se realizassem os negócios sociais, era o lugar da gestão social, a sede central de direção, de controle e de impulso da atividade econômica da sociedade (c. Fragiacomo – 1963).

Embora raramente a nacionalidade da corporação tivesse relevância no direito internacional privado inglês, o critério para o estabelecimento da mesma era o país de sua incorporação. Seu domicílio era fixado por idêntico critério: o país sob cujas leis tivesse sido incorporada. A residência, importante para fins de sujeição à regra fiscal, era dada pelo centro de controle da corporação, ou seja, sua sede e direção de seus negócios. Caso estas fossem divididas por dois ou mais países, haveria o mesmo número de residências. À constituição da corporação e às questões internas entre ela e seus membros, era aplicável a lei do lugar da incorporação. A capacidade para concluir transações dependia da lei da constituição da corporação e também da lei que regulasse o negócio em questão.

Jurisprudência explicitava algumas dessas regras.

Residência de uma companhia é o lugar de sua gerência efetiva, mesmo não coincidindo com o estabelecido nos atos constitutivos (caso Unit Construction – 1959).

O domicílio depende da proper law da corporação, ou seja, da lei que regula sua constituição e poderes (caso CarI Zeiss – 1969).

Nos Estados Unidos da América, corporação doméstica era a criada consoante as leis de determinado Estado ou país; enquanto a que devia sua existência às leis de outro Estado ou país, era estrangeira (foreign corporation). Por vezes denominava-se alien corporation a estabelecida conforme lei de país estrangeiro aos Estados Unidos.

A Constituição Federal norte-americana estabelecia certa proteção às corporações estrangeiras. A cláusula de comércio implicava a aceitação das corporações estrangeiras, desde que seu comércio pudesse ser qualificado como comércio interestadual. Entretanto, não podendo a corporação ser tida como Citizen, não se podia beneficiar da proteção mais ampla, que acompanhava a pessoa, mesmo quando fora da fronteira estatal. Contudo, não podia ser destituída de sua propriedade sem o devido processo legal, nem lhe ser negada a igual proteção das leis.

Afora as exceções insertas na Constituição Federal norte-americana, o reconhecimento de uma corporação estrangeira não implicava possibilidade de negociar no Estado reconhecedor. Tal possibilidade dependia, em muitos Estados, do preenchimento de certas formalidades. Entretanto, a autorização para negociar no Estado não transformava corporação estrangeira em cidadã do Estado para fins de jurisdição federal, nem a sua domesticação compulsória lhe outorgava domicílio local.

Embora tecnicamente não se fale em nacionalidade da corporação com relação à vertente internacional, o local do domicílio fixava a nacionalidade das mesmas. Longe de ter sido definitivamente resolvida, a nacionalidade das corporações provocava opiniões contrárias, não se tendo chegado a acordo relativamente à sinonímia de reside, residence e inhabit, com domicílio. Residência e cidadania eram, por vezes, definidas juridicamente como significando domicílio.

A lei pessoal da corporação era a lei do Estado da incorporação, aplicável a assuntos internos da mesma. Fora do Estado de incorporação, nem sempre se reconhecia à corporação os poderes concedidos pela sua lei pessoal, pois o Estado não permitia maior latitude de direitos que a possuída pelas corporações domésticas. Com relação à capacidade da empresa estrangeira, todos os que com ela tratassem deviam estar atentos para a possibilidade de aplicação de direito estrangeiro.

A certeza na escolha da lei exigia novo fundamento, o domicílio comercial, centro de autoridade de onde emanava a direção da corporação, sede real dos negócios de uma corporação que fora incorporada em outro Estado.

Nenhum dos vários critérios já sugeridos com relação à nacionalidade das corporações servia para todos os propósitos. O critério tradicionalmente aceito nos Estados Unidos — o da incorporação —, embora apresentasse vantagens da certeza e conveniência, não levava em consideração a realidade econômica e a nacionalidade dos proprietários e sócios controladores. De certo modo, o critério do controle, utilizado no período bélico, continuava informando certas leis; reconhecendo o Restaternent, o controle como fundamento alternativo de jurisdição.

A doutrina brasileira reconhecia que, embora não figurasse na vigente Lei de Introdução ao Código Civil [2] o princípio expresso no artigo 19 da Introdução de 1916, permanecia no ordenamento brasileiro o reconhecimento internacional da pessoa jurídica. Os fundamentos para tal permanência variavam de autor para autor.

A Lei de Introdução de 1942 não se referia diretamente à nacionalidade, recebendo por isso aplauso de autores — Tenório e Batalha — que não demonstravam simpatia pela atribuição de nacionalidade à pessoa jurídica. Contudo, como o direito brasileiro fazia referência às pessoas jurídicas nacionais, não podia deixar de conhecer a paralela existência da pessoa jurídica estrangeira. Na sistemática dessa lei, a nacionalidade da sociedade ou, como querem outros, sua existência e capacidade eram indicadas pelo local de sua constituição.

O artigo 60 do Decreto-Lei n9 2.627, de 1940, que dispunha sobre as sociedades por ações e que continua vigente em virtude de disposição expressa da Lei 6.404, de 1976, apresentava como condição atributiva da nacionalidade brasileira a organização consoante a lei brasileira e a sede real e efetiva no país. A doutrina brasileira havia conciliado esse artigo com o artigo 11 da Lei de Introdução, embora seguissem os autores caminhos diversos para tanto.

As pessoas jurídicas de direito privado, em regra, sempre puderam, no Brasil, adquirir e exercer direitos, independentemente de autorização. Entretanto, o estabelecimento e funcionamento no território nacional sempre dependeu de autorização governamental. O dispositivo legal vigente no tocante é o artigo 11, § 1º, da Lei de Introdução; estando as normas disciplinadoras da autorização prévia contidas no artigo 64 do Decreto-Lei 2.627.

A doutrina brasileira como um todo — com poucas exceções, entre as quais Comparato — não albergava o entendimento de que nacionalidade das sociedades dizia respeito a duas instituições com funções distintas. Uma, na esfera do direito internacional privado: a sociedade, constituindo-se conforme as normas de um ordenamento jurídico nacional, jungia-se ao mesmo, que passava a presidir seu funcionamento interno. Outra, relativa ao direito econômico: a sociedade, relativamente ao exercício de certas atividades ou ao gozo de certos direitos destinados legalmente aos nacionais, perfilhava-se quer com os nacionais, quer com os estrangeiros.

A legislação brasileira da época admitia o método do controle como condição de exercício de certas atividades de interesse nacional. Dessa forma, a nacionalidade dos membros da pessoa jurídica, ao lado de outros indicativos, passava a ser relevante.

A Constituição Federal vigente havia instituído, com relação à nacionalidade das sociedades comerciais, um critério dualista: a sede social e a constituição determinam a nacionalidade relativamente ao conflito de leis; enquanto, para o gozo de direitos, vogava a nacionalidade do controlador. O critério do controle relativamente à fruição de direitos passou a ser um critério geral.

A jurisprudência brasileira temperava a tendência ao controle verificada na legislação nacional.

A nacionalidade de uma sociedade dependia do lugar de sua constituição — artigo 11 da Lei de Introdução; o fato de possuir sócios italianos e ter finalidades patrióticas italianas não influía (Rec. Extraordinário 18.349, STF – 1951).

O art. 153, § lº, da Constituição de 1946 estabelecia a outorga de pesquisa e lavra somente a brasileiros. À sociedade anônima brasileira, organizada e sujeita às leis e aos interesses do País, cabia a referida outorga, mesmo que possuísse acionistas estrangeiros (rec. em MS 11.189, STF – 1963).

Pessoa jurídica constituída no Brasil, em consonância com as suas leis e com sede no País, mesmo possuindo participação majoritária de pessoa física estrangeira, podia adquirir imóvel rural, tanto mais que a Constituição de 1967 permitia a aquisição de terras a estrangeiro residente no País, pessoa física ou jurídica (M.S. 106.194, STJ – 1989.

Passando-se às comparações, a França é o único dos países a utilizar, irrestrita e diretamente, o conceito de nacionalidade das sociedades. Na Itália e no Brasil, tal utilização era indireta, por meio da referência a sociedades nacionais e, por via de consequência, a sociedades estrangeiras.

Na Inglaterra e nos Estados Unidos, continuava sendo irrelevante o conceito de nacionalidade da sociedade comercial, preferindo-se o seu domicílio.

Para a França, o indicador da nacionalidade seguia sendo a sede social; enquanto, para a Itália e o Brasil, vogavam tanto a lei do local da constituição quanto a da sede. Inglaterra e Estados Unidos, para definir domicílio, faziam uso, também, da lei do lugar da constituição, sendo importante, mormente neste último país, o lugar do estabelecimento, que impunha, muitas vezes, a observância da lei local, em detrimento da do lugar da incorporação.

Dentre os países comparados, a França era o que menos atribuía relevo à noção de controle. No Brasil, tal noção, presente na legislação, era abrandada pela jurisprudência. Embora pudesse parecer menos útil o controle em países que adotam a lei do Estado da incorporação, nos Estados Unidos, o Restatement (Second) reconhecia sua subsidiariedade.

Nenhum dos critérios tradicionais puros de concessão de nacionalidade a sociedades ou de atribuição de título de empresa nacional parecia satisfatório em fins do século XX. Tanto a realidade econômica subjacente, quanto a nacionalidade dos controladores devia ser considerada. O país que mais abertamente reconhecia a insuficiência do método tradicional era os Estados Unidos [3].

A evolução concernente ao tema durante o período já transcorrido do século XXI, embora não muito discrepante, merece ser, oportunamente, tratada em separado.


2 A denominação dessa lei passou a ser Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro jurídicas brasileiras, por força da Lei 12.376/2010.

3 Rodas, João Grandino, Sociedade Comercial e Estado, São Paulo, Saraiva, 1995 p.269/344.

Autores

  • Brave

    é professor titular da Faculdade de Direito da USP, juiz do Tribunal Administrativo do Sistema Econômico Latino-Americano e do Caribe (SELA) e sócio do escritório Grandino Rodas Advogados.

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