Opinião

Prisão de Eduardo Cunha fere natureza excepcional da medida cautelar

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19 de outubro de 2016, 16h10

Em julho do corrente ano, em artigo intitulado Insegurança jurídica ou a farra das prisões[1], sustentou-se ser incabível, por força da Constituição da República (CR) — Lei Maior — a prisão de deputado Federal ou Senador da República fora as hipóteses de flagrante delito nos termos do artigo 53 § 2º, da CR que diz: “desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável.”

Na ocasião, também, foi demonstrado o caráter excepcional da prisão provisória (temporária ou preventiva) antes de decisão condenatória transitada em julgado.

A prisão provisória (temporária ou preventiva), de natureza cautelar, deve atender aos critérios da necessidade e da proporcionalidade. Não se pode olvidar que o status libertatis é a regra. Embora tenha sido mitigado e golpeado pela maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal, o princípio da presunção de inocência segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” é proclamado na Constituição da República (artigo 5, LVII). De tal modo, não deve a prisão provisória ter um caráter de satisfatividade, ou seja, não pode se transformar em antecipação da tutela penal ou execução provisória da pena.

Por mais que determinadas pessoas sejam “nocivas”, “indesejáveis” ou elegidas como “inimigo”, a prisão, notadamente, a provisória — antes da sentença condenatória definitiva — é uma desgraça que somente, e tão somente, em casos extremos e, assim mesmo, como ultima ratio, é que deve ser decretada.

A prisão do ex-deputado Federal Eduardo Cosentino da Cunha (presidente da Câmara dos Deputados de 1/2/2015 até 7/7/2016) — excluído o momento em que aceitou e conduziu na Câmara dos Deputados o processo de impeachment da presidente da República Dilma Vana Rousseff — escolhido como inimigo pela maioria da opinião publica (da), deve, mesmo em relação a ele, como de qualquer outro cidadão ser vista à luz dos princípios fundamentais e norteadores do Estado de Direito.

Ao analisar os fundamentos da prisão preventiva, o juiz Federal Sergio Fernando Moro da 13ª vara Federal de Curitiba se reporta ao “risco à investigação ou à instrução”e à decisão proferida pelo ministro Teori Zavascki em 5/5/2016 na Ação Cautelar 4.070/DF na qual foi determinado o afastamento do então deputado Federal da presidência da Câmara dos Deputados. Da referida decisão, o juiz Federal destaca que Cunha “na condição de parlamentar e, mais ainda, de presidente da Câmara dos Deputados, tem meios e é capaz de efetivamente obstruir a investigação, a colheita de provas, intimidar testemunhas…”

Embora reconhecendo que Eduardo Cunha não mais exerce a função parlamentar — uma vez que perdeu o mandato — o juiz Federal prolator da decisão extremada afirma que: “Considerando o histórico da conduta e o modus operandi, remanescem risco de que em liberdade, possa o acusado Eduardo Consentino da Cunha, diretamente ou por terceiros, praticar novos atos de obstrução da justiça, colocando em risco à investigação, a instrução e própria definição, através do devido processo, de suas eventuais responsabilidades criminais”.

Verifica-se aqui, que o juiz Federal Sergio Moro recorre a fatos pretéritos de cerca de seis meses atrás para justificar e fundamentar a prisão. Na época, o ministro Teori Zavascki utilizou os argumentos, que agora são reciclados por Moro, para afastar Eduardo Cunha da presidência da Câmara dos Deputados. É evidente que estes argumentos já não se sustentam hoje, após Cunha ter deixado de exercer a função parlamentar.

Como segundo fundamento para o decreto de prisão preventiva, o juiz Federal traz para a decisão o sempre questionável e de duvidosa inconstitucionalidade “risco à ordem pública”. Em apertada síntese, o juiz Federal diz que a sérios riscos do acusado Eduardo Cunha voltar ou continuar a delinquir (reiteração de crimes contra a Administração Pública ou de lavagem de dinheiro).

Embora as prisões cautelares decretadas no âmbito da operação "lava jato" recebam pontualmente críticas, diz o juiz Sergio Moro, “o fato é que, se a corrupção sistêmica e profunda, impõe-se a prisão preventiva para debelá-la, sob pena de agravamento progressivo do quadro criminoso”.

Essa afirmação por si só já é uma demonstração de que a prisão de Eduardo Cunha foi decretada e está sendo utilizada para outros fins que não o dos requisitos constantes na lei processual penal. Como já dito alhures a prisão preventiva não pode ter caráter de satisfatividade, não podendo ser transformada em antecipação da tutela penal ou execução provisória da pena. A utilização da prisão preventiva nos termos afirmados pelo juiz Federal Sergio Fernando Moro com intuito de aniquilar a corrupção — prevenção geral (positiva e negativa) — fere frontalmente a natureza excepcional e cautelar da medida extremada.

Não é demais martelar que no Estado Democrático de Direito fundado, realmente, em bases democráticas — democracia material — deve prevalecer o princípio da liberdade e do respeito à dignidade da pessoa humana, incompatível com punições sem processo e inconciliável com condenações sem defesa. Repita-se, o status libertatis é a regra. A presunção é de inocência. E que todos possam ser julgados sem que seja desprezado o devido processo legal e o respeito aos princípios do contraditório e da ampla defesa.

Necessário deixar assentado que aqui não se defende este ou aquele, fulano ou beltrano, aqui se defende a legalidade democrática e o Estado democrático de direito. Aqui se defende o cidadão ou cidadã a quem não se pode negar o direito à defesa e um tratamento digno como exige a democracia.

Na concepção do processo penal democrático e constitucional, a liberdade do acusado, o respeito a sua dignidade, os direitos e garantias fundamentais são valores que se colocam acima de qualquer interesse ou pretensão punitiva estatal. Em hipótese alguma pode o acusado ser tratado como “coisa”, “instrumento” ou “meio”. De tal modo, não se pode perder de vista a formulação kantiana de que o homem é um fim em si mesmo.

Como bem já asseverou o desembargador e professor Amilton Bueno de Carvalho: “Não adianta, não contem comigo: não sinto gozo com pedido de prisão de ninguém, nem do Cunha, nem do Jucá, nem do Renan, nem do Sarney, nem de qualquer Zé ou Maria”.

Por fim, no dizer sempre preciso de Luigi Ferrajoli, “toda prisão sem julgamento ofende o sentimento comum de justiça, sendo entendido como um ato de força e de arbítrio”.


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