Opinião

Questões penais importantes na lei de regularização de ativos

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18 de outubro de 2016, 5h34

Desde a sua promulgação a Lei 13.254/16, regulamentado por Instruções Normativas, é pauta constante no dia a dia dos escritórios de advocacia criminal e tributária. A lei trouxe a possibilidade de declaração voluntária de recursos, bens ou direitos não declarados ou declarados com omissão ou incorreção em relação a dados essenciais, remetidos ou mantidos no exterior, ou repatriados de forma incorreta por residentes ou domiciliados no país. Tal qual uma verdadeira anistia, a nova lei cria o Regime Especial que permite a regularização destes recursos, bens e direitos, desde que possuam comprovada origem lícita e que tenham sido adquiridos em até 31 de dezembro de 2014.

Destinatários, condições, prazo e origem lícita — retrato e filme
Os destinatários da lei são todos os residentes ou domiciliados no Brasil em 31 de dezembro de 2014, ainda que hoje não mais o sejam, que tenham sido ou ainda sejam proprietários ou titulares de ativos, bens ou direitos em períodos anteriores à referida data, ainda que na data atual não possuam saldo de recursos ou título de propriedade. A lei não estabelece uma data limite para a retroatividade. Salvo uma eventual discussão sobre a constitucionalidade do diploma legal, estão excluídos da possibilidade de adesão ao RERCT os: (a) condenados em ação penal pelos crimes listados na lei (artigo 1º, parágrafo 5º), ainda que sem o trânsito em julgado, e (b) os detentores de cargos, empregos e funções públicas de direção ou eletivas, seus cônjuges e parentes consanguíneos (ou afins), até o segundo grau ou por adoção (artigo 11º).

O prazo de encerramento para a adesão ao RERCT é de 210 dias, a partir da entrada em vigor do ato da Receita Federal do Brasil (RFB) (art. 7º, caput) que regulamentou o texto legal, o que ocorrerá em 31 de outubro de 2016 — claro, exceto nova prorrogação do prazo por determinação legal. É evidente que, dentro do prazo legal, e pelas regras do Regime Especial, o aderente contribuinte tem de declarar a origem lícita de recursos, bens e direitos e entregar a declaração/retificação voluntária, acompanhada pelos documentos e pelas informações sobre a identificação, titularidade ou destinação destes ativos artigo 1º, §2º), efetuando o pagamento do tributo (15%) e da multa (mais 15%), lembrando que a cotação é pelo dólar da época, o hoje atrativo valor de R$ 2,65.

Outra questão relevante na declaração é a definição feita pelo contribuinte no que tange aos recolhimentos de multa e de tributos. Questiona-se se os valores a serem pagos devem partir do retrato do extrato cujo valor foi mantido em conta bancária em 31/12/2014, ou do valor apurado, fruto de exame do filme que mostra a história da manutenção dos ativos. Em nosso juízo, a lei define ser o retrato. Todavia, aqui, recomendamos muita cautela, devendo o contribuinte declarante, por segurança, se nãi quiser discutir a questão, fazer a adesão pelo valor global e/ou máximo mantido no estrangeiro ao longo do tempo — é uma questão de minimização de riscos, ante à dúvida no processo de interpretação da lei, em que pese ser sustentável a adesão pelo retrato. Outro cuidado deve ser imposto para os casos de regularização de imóveis que estão em nome de pessoas jurídicas, declaração pelo patrimônio líquido da empresa. Sublinhe-se, nossa cautela é fruto de posição conservadora e deriva dá má qualidade da redação da lei. 

Procedimento de adesão

Primeiro, o contribuinte declarante deve apresentar uma via à Secretaria da RFB, e outra ao Banco Central, de declaração única de regularização de ativos pretéritos específica contendo descrição pormenorizada dos recursos/bens, com o valor em moeda nacional (art. 4º, caput início), correspondente aos seus valores de mercado (art. 4º, §8º), contendo: identificação do declarante; informações necessárias à identificação dos ativos a serem regularizados; o valor em Real. Sendo que os valores em moeda estrangeira deverão ser convertidos em dólar-americano pela cotação fixada pelo Banco Central, para venda, em 31/12/2014, e, em seguida, em moeda nacional, pela cotação do dólar para venda, em 31/12/14; declaração de que os bens ou direitos têm origem em atividade econômica lícita.

Segundo, o contribuinte deve realizar o pagamento integral do imposto previsto no artigo 6º (15%) e da multa prevista no artigo 8º da lei (artigo 5, caput) (15%). O montante de ativos objeto da regularização será considerado acréscimo patrimonial adquirido em 31/12/2014, ainda que nesta data não haja saldo ou título de propriedade dos recursos, bens e direitos, na forma do artigo 43, II e caput do §1º, do Código Tributário Nacional. Assim, a pessoa física ou a pessoa jurídica estará sujeita ao pagamento do IR a título de ganho de capital, pela alíquota vigente em 31/12/2014, cuja arrecadação será compartilhada entre Estados e Municípios.

Terceiro, além da declaração única para adesão ao RERCT, os recursos, bens e direitos deverão ser informados (artigo 4º, §2º) pelo contribuinte: na declaração retificadora de ajuste anual de IRPF, ano-calendário 2014 e posteriores; na declaração retificadora de bens e capitais no exterior, ano-calendário 2014 e posteriores, de pessoa física ou pessoa jurídica obrigada e na escrituração contábil societária, ano-calendário da adesão e posteriores, no caso de pessoa jurídica.

Quarto, nos casos de repatriação de ativos, esta ocorrerá mediante a apresentação de protocolo de entrega da declaração única de regularização a instituição financeira autorizada a funcionar no Brasil e a operar no mercado de câmbio (artigo  4º, §4º). Quando o montante de ativos for superior a US$ 100 mil, o declarante deverá autorizar a instituição financeira no exterior a informar o saldo destes ativos em 31/12/2014 à instituição financeira brasileira.

Quinto, nos casos em que o contribuinte declarante sofre investigação criminal ou ação penal ainda sem sentença, deverá levar aos autos a comprovação de adesão ao RERCT, a fim de buscar a declaração da extinção da punibilidade (artigo 5º, § 1º).

Efeitos da adesão — confissão e extinção da punibilidade
A opção pelo RERCT e o pagamento do imposto e da multa previstos configuram uma confissão extrajudicial (artigos 348, 353 e 354 do CPC). Trata-se de confissão irrevogável e irretratável dos débitos em nome do sujeito passivo pessoa física ou pessoa jurídica, na condição de contribuinte ou de responsável (artigo 6º, §8º). Segundo o texto legal, para aderir ao RERCT e garantir a extinção da punibilidade deverá haver (a) a entrega da declaração, (b) o pagamento integral do imposto e (c) da multa, desde que antes da sentença em ação penal sobre os bens a serem regularizados (artigo 5º, §1º).

Como benefício, o governo anistiará os crimes relativos aos recursos não declarados ou com declarações omissas, de forma que será extinta a punibilidade. A anistia, enquanto conveniência política e hipótese de extinção da punibilidade, implica esquecimento do crime. Contudo, a Lei 13.254/2013 é uma hipótese especial de anistia. A adesão está condicionada à aprovação, com o que, logicamente, a anistia está vinculada a não exclusão. Trata-se, pois, de uma espécie sui generis de anistia condicionada. Uma vez extinta a punibilidade destes delitos taxativamente previstos, extinguem-se todos — absolutamente todos — os efeitos penais quanto aos fatos praticados, apagando-se os crimes.

Sigilo e imprestabilidade das informações
Aprovada ou não a declaração voluntária, a RFB, o CMN, o Banco Central e os demais órgãos públicos estão proibidos de divulgar e/ou compartilhar as informações prestadas pelos declarantes aderentes ao RERCT a Estados, DF e municípios, inclusive para fins de constituição de crédito tributários (artigo 7º, §2º). A divulgação e/ou a publicidade das informações presentes no RERCT implicarão efeitos equivalentes à quebra de sigilo fiscal, sujeitando o responsável às penas previstas na Lei Complementar 105/01 e no artigo 325 do Código Penal. No caso de funcionário público, haverá pena de demissão (artigo 7º, §1º). Em nosso juízo, as informações são absolutamente imprestáveis e o recurso aos dados obtidos é visivelmente ilegal.

Exclusão
A legislação estabelece que será excluído do RERCT o contribuinte aderente que apresentar declarações ou documentos falsos (artigo 9º, caput). Por suposto, exclusão é a penalidade para o contribuinte que sonegou informação sobre a titularidade, a condição jurídica e/ou o valor do bem. Neste caso, havendo a exclusão, serão cobrados os valores equivalentes aos tributos, multas e juros incidentes, deduzindo-se eventuais valores pagos, sem prejuízo das penalidades cíveis, penais e administrativas cabíveis (artigo 9º, §1º).

Mesmo na hipótese de exclusão, a instauração ou a continuidade de procedimentos investigatórios quanto à origem dos ativos objetos de regularização somente poderá ocorrer se houver evidências documentais não relacionadas à declaração única de adesão do contribuinte (artigo 9º, §2º). Como se vê, o processo de exclusão do RERCT é bastante rígido e contra o decisório que determina a exclusão há uma evidente limitação ao direito de recorrer, uma vez que a lei prevê apenas um recurso no âmbito administrativo. Após, resta apenas a judicialização da questão.

Proibição de adesão para condenados
É evidente que as pessoas físicas que respondem a investigações e/ou ações judiciais criminais são aquelas que têm maior interesse na regularização da situação patrimonial ilegal de ativos pretéritos por meio do RERCT. Ocorre que, ao contrário das previsões, o artigo 1º, §5º, da Lei 13.254/2016 estabeleceu que a “lei não se aplica aos sujeitos que tiverem sido condenados em ação penal”. Veja-se que neste primeiro momento a lei refere a expressão “condenados em ação penal”, sem, contudo, determinar expressamente o trânsito em julgado da decisão condenatória. Na sequência, o artigo 5º, que determinou as regras de adesão ao programa, fixou no seu §1º que “o cumprimento das condições previstas no caput antes de decisão criminal” em relação aos bens a serem regularizados, extinguirá a punibilidade dos crimes estabelecidos na lei. E, o §2º, II, referiu que a “extinção da punibilidade a que se refere o § 1º”, “somente ocorrerá se o cumprimento das condições se der antes do trânsito em julgado da decisão criminal condenatória”.

Neste particular aspecto, ao manifestar a possibilidade de adesão “antes do trânsito em julgado”, em nossa ótica, a lei possibilitava a adesão para as pessoas físicas condenadas de forma não definitiva em ação penal. Todavia, em 13 de janeiro de 2016, dentre os vetos ao texto legislativo, houve a exclusão do Inciso I do §5º do artigo 1º, que referia expressamente esta exigência: “I – com decisão transitada em julgado”. Após, a primeira Instrução Normativa que regulamentou a Lei foi clara em excluir do RERCT “quem tiver sido condenado em ação penal cujo objeto seja um dos crimes listados no § 1º do artigo 5º da Lei nº 13.254, de 2016, ainda que não transitada em julgado”.

Em suma, a Instrução Normativa vedou direito que a própria legislação não proibiu expressamente: a adesão ao RERCT para pessoas físicas que (a) tenham condenação em processo penal ainda que sem o trânsito em julgado e (b) que a condenação impeditiva da adesão deve ser pela prática de um dos crimes determinados na lei como objeto de extinção da punibilidade, exclusivamente aqueles listados no artigo 5º, § 1º, I, II, III, IV “a” até “d”, VI e VII.

Primeiro, não é possível aceitar a regra de exceção para aquelas pessoas físicas que não têm contra si decisão penal condenatória com trânsito em julgado. No ponto, entendemos ser inconstitucional a exceção, já que a regra é violadora dos princípios da presunção de inocência e da isonomia, devendo os Tribunais brasileiros autorizar a adesão ao RERCT para as pessoas físicas presumidamente inocentes. É evidente que, os contribuintes condenados provisoriamente que adquirirem por meio de decisão judicial liminar em ação de Mandado de Segurança o direito de adesão ao regime especial, têm em seu favor todos os direitos legais, especialmente o direito à extinção da punibilidade.  

Segundo, é elementar que uma eventual condenação criminal pela prática de tipos legais de crime que não estão elencados na lei não é razão impeditiva para a adesão ao RERCT. Há um espectro imenso de delitos que não estão abarcados na legislação, o que torna sem sentido a exigência. Por exemplo, um condenado, ainda que sem o trânsito em julgado da decisão, pela prática de grave crime licitatório ou de um estelionato de grandes consequências, não reúne o impeditivo legal, o que, em nosso juízo, torna a regra sem sentido.

Terceiro, a Lei não veda que a pessoa jurídica formalize a adesão ao RERCT e, logo, não restringiu que o ente coletivo aderente possa ter em seus quadros um gestor, sócio e/ou administrador pessoa física que tenha eventual condenação criminal, inclusive pela prática de um dos tipos penais previstos no rol estabelecido pela lei.  Para a pessoa jurídica não há qualquer restrição. A lei deve ser interpretada de tal forma que a pessoa jurídica possa aderir e adquirir a anistia, ainda que um dos seus sócios/diretores e ou acionistas tenha sido condenado por algum dos tipos penais listados no artigo 5, §1º.

A extensão dos efeitos — coautores e partícipes e o único indício para investigação
A lei determinou em seu artigo 4º que a declaração de regularização não poderá ser utilizada como único indício ou elemento para efeitos de expediente investigatório ou procedimento criminal (artigo 4º, §12º, I), nem para fundamentar procedimento administrativo tributário/cambial (artigo 4º, §12º, II).

Primeiro, com relação ao elemento “único” anterior aos substantivos “indício” e “elemento”. Ao que nos parece, a utilização deste modelo de escrita abre uma janela de desconfiança aos pretensos declarantes. Isto porque poderão ver suas informações, voluntariamente prestadas, sendo utilizadas — não como único — mas como elemento a consubstanciar outros indícios em procedimentos de responsabilização, seja criminal, seja administrativa.

As informações prestadas por pessoas físicas não podem ser utilizadas contra quaisquer pessoas jurídicas que sejam ou venham a ser investigadas pelos órgãos públicos das quais os aderentes participem — como sócios, acionistas ou diretores. E por assim ser, também quando a declaração for feita em nome de pessoa jurídica, as informações por ela entregues à Administração Pública não poderão ser utilizadas contra seus membros, sócios, acionistas e/ou diretores. O que significa dizer que uma vez entregues estas informações às Autoridades, não poderão servir de indícios e/ou provas, em nenhuma fase procedimental/processual, contra nenhum sujeito a elas relacionado.

Segundo, e de forma um tanto sutil, surge-nos uma dúvida quanto à extensão — ou não — desta anistia trazida pela Lei com relação aos coautores e/ou partícipes. É cediço que em Direito Penal a regra da concorrência plúrima indica que “quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade”. São autores e/ou partícipes de crimes todos aqueles que concorreram para a prática delitiva.

Então, seria melhor que tivesse constado expressamente na lei que “[…] todos os sujeitos que, agindo em interesse pessoal ou em benefício de pessoa jurídica a que estiverem vinculados, tenham participado, concorrido, permitido ou dado causa aos crimes previstos…” receberiam a anistia pela adesão — uma anistia extensiva. Entretanto, o artigo 5º, §2º, I sofreu veto presidencial, restringindo os efeitos de extinção.

Em nosso sentir, o veto presidencial traz alguns problemas de aplicabilidade da legislação. Estes terceiros eventualmente relacionados nos fatos objeto da declaração são todos aqueles que, de alguma forma, tenham participado, tomado parte da situação, contribuído ou dado causa aos crimes, e, assim, não estão agasalhados pela anistia. Ao optar por esta restrição, o legislador deixa aberta a possibilidade de que estes sujeitos auxiliares sejam penal e/ou administrativamente responsabilizados pelos fatos declarados pelo aderente no RERCT, apesar da anistia reservada ao declarante, o que, para além de ilógico, desestimula, inibe ou macula a voluntariedade das declarações.

Sugestão
É conhecido o fracasso do processo legislativo em matéria criminal no Brasil. A lei que institui o RERCT não está divorciada deste contexto geral. Infelizmente, a falta de técnica legislativa tem imperado no país — aqui não é diferente.

De fato, em tempos de globalização da economia, sem dúvidas era necessária a publicação de uma Lei de Repatriação. É mais produtivo investir nas formas de repatriação dos capitais, com a facilitação dos processos de regularização administrativa dos dinheiros mantidos no exterior, mormente aqueles que comprovadamente têm origem lícita – dinheiro limpo. A lei não está isenta de críticas. Ao contrário, em muitos pontos representa insegurança jurídica. Contudo, ante o cenário atual, é a opção para quem está vivendo no campo da ilegalidade. Em nosso sentir, é uma solução insegura e absurdamente cara, mas é uma solução de cidadania fiscal — legal.

*Este artigo é uma síntese das investigações realizadas no âmbito do Grupo de Estudos de Direito Penal Econômico vinculado ao PPGCCRIM da PUC-RS e publicado em FELDENS; ESTELLITA; WUNDERLICH. Temas atuais de Direito Penal Econômico e Empresarial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016.

Clique aqui para ler a íntegra do artigo A Lei de Repatriação na Perspectiva Criminal.

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