Opinião

Resultados das urnas mostram a necessidade de uma reforma política

Autor

  • Francisco Soares Campelo Filho

    é advogado e professor da Escola Superior da Magistratura do Estado do Piauí (Esmepi). Doutorando em Direito e Políticas Publicas pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB) mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro da Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.

18 de outubro de 2016, 16h26

Em um país como o Brasil, cheio de contradições, que se diz democrático, mas ao mesmo tempo tem o voto por obrigatório, onde a vontade do eleitor nem sempre é respeitada, pois o coeficiente eleitoral[i] é mais importante para a definição do candidato eleito, e onde o poder econômico[ii] quase sempre é o principal fator para a conquista do voto, as urnas não têm muito a dizer. Uma linguagem diferente, porém, passou a descortinar-se nas duas últimas eleições municipais.

Na verdade, as urnas deveriam mostrar a vontade do povo, consubstanciada no apoio a um programa de governo. Contudo, infelizmente, as urnas apenas mostram (ou têm mostrado) os acordos políticos (basta ver muitas das secretarias, ministérios e cargos ocupados após a eleição); e mostram ainda quem mais teve condições econômicas para “investir” em campanhas eleitorais[iii]. Também mostram que a falta de educação do povo é condição sine qua non para que a democracia seja. Mas o que importa é o voto, é ser eleito! Se não há educação, para que a ética[iv]?

O questionamento que faço é se no modelo de democracia vigente no Brasil é possível que a política seja diferente? Parece que não! E o que é interessante, porém triste e desolador, é o fato de que todos, invariavelmente todos, sabem como funciona a política. O povo sabe e aceita(va) pela cultura clientelista, que vem desde o Brasil Colônia, exacerbada cada vez mais pelo interesse pessoal ou familiar[v]! E assim as pessoas corrompem e se deixam corromper, numa simbiose espúria e odienta. Mas quem poderá fazer alguma coisa, se todos sabem e aceitam resignadamente? Outrora já havia dito que a resposta está(va) na educação, mas que se poderia também buscar nas urnas. Todavia, estas para dizerem algo de valor também precisam da educação, pois não trabalham sozinhas!

Mas algo diferente está ocorrendo, como referi acima, as pessoas têm ido às ruas protestarem, e isso já faz alguns anos[vi], representando um fenômeno social importante. O filósofo francês Maurice Joly, em sua fantástica obra “Diálogo no Inferno entre Maquiavel e Montesquieu”, escrita ainda em 1864, através da fala de Maquiavel, já vaticinava: “Porém, acredite, acompanho o século: o poder das doutrinas a que meu nome está ligado é que elas se adaptam a todos os tempos e situações. Hoje, Maquiavel tem netos que sabem o valor de suas lições. Pensam que estou muito velho e todos os dias rejuvenesço na terra[vii].

Nas eleições municipais de 2012, algo estranho já havia ocorrido! Talvez aturdidos e revoltados com a política brasileira, representada pelo famigerado “mensalão”[viii], o povo, descrente, deixou de ir às urnas, decidiu votar em branco ou anular o voto, de modo que 35 milhões de votos deixaram de ser contabilizados, o que representou, à época, 25% do total de eleitores de todo o país[ix], ou seja, um quarto dos eleitores brasileiros disseram não! Não aos candidatos especificamente, mas também ao milionário, porém falido sistema político vigente!

Quanto ao sistema político, faço um breve parêntese, por oportuno, considerando não haver dúvidas de que este traz em seu bojo uma hipertrofia do Judiciário, que se impõe aos demais poderes (Executivo e Legislativo), gerando o enfraquecimento dos mesmos, não sendo poucas às vezes em que o juiz vê-se na obrigação de tomar decisões que se travestem de verdadeiro ato legislativo ou mesmo executivo. Basta observar os casos de judicialização da política, da educação e da saúde[x].

Poderiam ser citadas várias situações que demonstram a crise funcional no Estado brasileiro, que corresponde à perda de exclusividade nas funções do Estado, havendo certo desrespeito entre os Poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário), já que um termina interferindo no outro, na medida em que passa a executar funções que a priori não eram de sua competência. Não é raro, pois, verificar o Executivo legislando, ou mesmo (o que tem sido mais frequente até) o Poder Judiciário cumprindo referida tarefa, conforme dito no parágrafo antecedente.

Falar em crise funcional do Estado é falar sobre problemas que afetam à forma de funcionamento do Estado, em sua concepção de estrutura tripartite, onde as funções de cada uma dos poderes restam devidamente delineadas e delimitadas.

Bolzan de Morais, com propriedade assevera que: “Assim, o que nominamos crise funcional do estado, entendida esta na esteira da multiplicidade dos loci de poder, gerando a referida perda de centralidade e exclusividade do estado, pode ser sentida pelos órgãos incumbidos do desempenho de funções estatais, aos quais são atribuídas tarefas que lhes são inerentes no modelo clássico de tripartição de funções, bem como outras que se conjugam com as demais atribuições públicas estatais, seja pela concorrência que recebem de outras agências produtoras de decisões de natureza legislativa, executiva e/ou jurisdicional, seja a muito mais, pela incapacidade sentida em fazer valer aquelas decisões que produzem com a perspectiva de vê-las suportadas no caráter coercitivo que seria o próprio às decisões do Estado [xi]”.

O ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Joaquim Barbosa, em palestra proferida em 2013, ainda quando ocupava a presidência da Corte máxima de justiça brasileira [xii] fez críticas ao Poder Executivo ressaltando a fragilidade do Legislativo [xiii].

O que se percebe, pois, é que a tripartição dos poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário), constitucionalmente garantida, necessária à configuração de um Estado Democrático de Direito, precisa respeitar a harmonia com que devem obrigatoriamente conviver se se quer que seja mantida essa tripartição, a qual se afigura essencial para a manutenção da própria Democracia.

O artigo 2º da Constituição Federal de 1988 estabelece que são “Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.”

Ora, os poderes são independentes, porém harmônicos, é o que diz a Constituição. É preciso que se busque essa independência e harmonia a todo custo, sempre, para que não se ponha em risco esse Estado Democrático de Direito, essencial para evitar golpes e desmandos, essencial para a mantença das liberdades, tão duramente conquistadas.

Os Poderes não podem, nem devem, e tampouco foram configurados em sua concepção originária para medirem forças. Contudo, cada um deve cumprir com sua função, e quando assim não o fazem, ocorre o desequilíbrio, a distorção, abrindo espaço para as críticas e interferências muitas vezes inevitáveis, fragilizando a manutenção do próprio Estado.

Desse modo, urge que seja feita a reforma política, a fim de que os chefes dos poderes não precisem discutir sobre competências ou incompetências, para que se deixe que as vaidades malévolas aflorem, pois isso só contribui para o abandono do povo que, ao fim, é sempre o maior prejudicado. Fecho o parêntese.

Todas estas questões, que remetem a uma séria crise institucional no Estado brasileiro, refletem diretamente na política, tornando os cidadãos ainda mais descrentes com o atual modelo.

Nesse diapasão, se em 2012 houve um relampejo das urnas municipais, em 2016, após o impedimento da presidente Dilma[xiv] e a cassação do mandato do presidente do Legislativo, deputado Eduardo Cunha[xv], as urnas expressaram com maior veemência, como um trovão que ecoa ao anunciar a tempestade que se avizinha, um recado que merece atenção de todos.

De fato, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral, a soma de votos nulos, brancos e abstenções superou, na disputa para prefeito, o primeiro e segundo colocados em 22 capitais. No Rio de Janeiro e em Belo Horizonte, por exemplo, a soma de nulos, brancos e abstenções superou os votos obtidos pelos dois primeiros colocados, juntos [xvi].

Assim, se em 2012 o percentual dos eleitores que não votaram, anularam ou votaram em branco foi de aproximadamente 25%, em 2016, no Rio de Janeiro e em São Paulo, este percentual atingiu a marca aproximada de 40% [xvii]. Como se viu, no restante do país os números não foram tão diferentes. Se se considerar a obrigatoriedade do voto no Brasil, a lógica permite inferir que este número seria assustadoramente maior não fossem as sanções que a lei impõe a quem deixa de votar [xviii].

A guisa de conclusão, em que pese a intenção deste excerto ser muito mais a de suscitar o debate, tenho que as urnas, qual pedra de toque, fizeram reluzir no horizonte a esperança de que, através delas, os cidadãos sejam finalmente ouvidos, que a reforma política seja enfim realizada e que a corrupção política se finde [xix]. As urnas dizem: – Os maquiavélicos que se preocupem! Quem sabe este não seja um prenúncio do fim… ou então de um novo começo!?


i O TSE disponibilizou, para as eleições de 2016, explicações sobre o cálculo do coeficiente eleitora e da cláusula de barreira. Ver: http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2016/Setembro/saiba-como-calcular-os-quocientes-eleitoral-e-partidario-nas-eleicoes-2016. Ver ainda a Resolução TSE 23.456/2015.

ii SAMUELS, David. Financiamento de campanhas no Brasil e propostas de reforma. In Reforma Política: lições da história recente, Gláucio Ary Dillon Soares e Lucio R. Rennó (org.). Rio de Janeiro: FGV editora, 2006, p. 134. Sobre o poder econômico nas eleições ver ainda dissertação de mestrado:
REIS, Daniel Gustavo Falcão Pimentel dos. Financiamento da Política no Brasil. Disponível em http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2134/tde-28092010-113713/pt-br.php. Acesso em 06.10.16.

iii Ver nota ii.

iv Chamo a atenção aqui para a entrevista coletiva concedida pelo ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva, em que faz uma (esdrúxula?) comparação entre o político e o funcionário público concursado: "Eu de vez em quando falo que as pessoas achincalham muito a política, mas a posição mais honesta é a do político, sabe por quê? Por que todo ano, por mais ladrão que ele seja, ele tem que ir pra rua encarar o povo e pedir voto. O concursado não. Se forma na universidade, faz um concurso e tá com um emprego garantido para o resto da vida". Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/brasil/fala-de-lula-que-compara-servidores-politicos-corruptos-gera-revolta-entre-concursados-1 20122969#ixzz4MAVARwDH. Acesso em 06.10.16.

v Sobre o clientelismo no Brasil ver: FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder – Formação do Patronato Político Brasileiro – 5ª Ed., Saraiva. São Paulo, 2012.

vii JOLY, Maurice. Diálogo no Inferno entre Maquiavel e Montesquieu. Trad. Isolina Bresolin Vianna. São Paulo: Unesp, 2009.

viii Ação Penal 470 que tramitou no STF e condenou políticos do alto escalão do Governo Federal à prisão.Ver: http://www2.stf.jus.br/portalStfInternacional/cms/destaquesNewsletter.php?sigla=newsletterPortalInternacionalNoticias&idConteudo=214544. Acesso em 06.10.16.

x Diversas são as decisões do Supremo Tribunal Federal – STF sobre estes temas, bem como também vários são os trabalhos que tratam dessa questão. Sugiro a leitura de: RODRIGUEZ, José Rodrigo. Como decidem as cortes? : para uma crítica do direito (brasileiro). Rio de Janeiro, Editora FGV, 2013.

xi BOLZAN DE MORAIS, José Luis. (org.). As Crises do Estado. In: O Estado e suas crises. Livraria do Advogado. Porto Alegre: 2005. p. 23.

xiii O ex-ministro do STF asseverou que menos de 15% das leis apreciadas pelo Congresso Nacional foram propostas por deputados ou senadores, o que revelava, segundo ele, a interferência do Executivo nas decisões do país: “O Congresso é inteiramente dominado pelo Poder Executivo. As lideranças [governistas] fazem com que a deliberação prioritária seja sobre matérias de interesse do Executivo. Poucas leis são de iniciativa dos próprios parlamentares”. O ministro ainda ressaltou que todo mecanismo de controle que o Supremo exerce ao examinar a constitucionalidade das leis está previsto na Constituição. http://www.ebc.com.br/noticias/brasil/2013/05/joaquim-barbosa-critica-sistema-politico-brasileiro-e-defende-reforma-do. Acesso em 06.10.16.

xviii  O artigo 7º do Código Eleitoral, Lei n. 4.737/65, disciplina que: “Art. 7º O eleitor que deixar de votar e não se justificar perante o juiz eleitoral até 30 (trinta) dias após a realização da eleição, incorrerá na multa de 3 (três) a 10 (dez) por cento sobre o salário-mínimo da região, imposta pelo juiz eleitoral e cobrada na forma prevista no art. 367.              

§ 1º Sem a prova de que votou na última eleição, pagou a respectiva multa ou de que se justificou devidamente, não poderá o eleitor:

        I – inscrever-se em concurso ou prova para cargo ou função pública, investir-se ou empossar-se neles;

        II – receber vencimentos, remuneração, salário ou proventos de função ou emprego público, autárquico ou para estatal, bem como fundações governamentais, empresas, institutos e sociedades de qualquer natureza, mantidas ou subvencionadas pelo governo ou que exerçam serviço público delegado, correspondentes ao segundo mês subsequente ao da eleição;

        III – participar de concorrência pública ou administrativa da União, dos Estados, dos Territórios, do Distrito Federal ou dos Municípios, ou das respectivas autarquias;

        IV – obter empréstimos nas autarquias, sociedades de economia mista, caixas econômicas federais ou estaduais, nos institutos e caixas de previdência social, bem como em qualquer estabelecimento de crédito mantido pelo governo, ou de cuja administração este participe, e com essas entidades celebrar contratos;

        V – obter passaporte ou carteira de identidade;

        VI – renovar matrícula em estabelecimento de ensino oficial ou fiscalizado pelo governo;

        VII – praticar qualquer ato para o qual se exija quitação do serviço militar ou imposto de renda.”

xix Não se pode deixar de pontuar que, se em 2012 houve o reflexo do processo do “mensalão”, em 2016 a “operação Lava Jato” foi a pauta. A “lava jato” é a maior investigação de corrupção e lavagem de dinheiro que o Brasil já teve. Estima-se que o volume de recursos desviados dos cofres da Petrobras, maior estatal do país, esteja na casa de bilhões de reais. Ver: http://lavajato.mpf.mp.br/entenda-o-caso. Acesso em 06.10.16.

Autores

  • é advogado, mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (RS). Membro da Comissão Nacional de Educação Jurídica do Conselho Federal da OAB. Professor da Escola Superior da Magistratura do Estado do Piauí (ESMEPI).

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