Observatório Constitucional

Filtros de admissão recursal extraordinária no Supremo Tribunal Federal

Autor

  • Damares Medina

    é advogada doutora em Direito professora do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e coordenadora de pesquisa do Instituto Constituição Aberta (ICONS).

15 de outubro de 2016, 8h01

A Constituição Federal fixa os limites da competência do Supremo Tribunal Federal no exercício da jurisdição constitucional e a guarda da Constituição, mediante o processamento e julgamento originário, o julgamento em grau de recurso ordinário e o julgamento do recurso extraordinário, este no âmbito do controle incidental de constitucionalidade.

O recurso extraordinário terá lugar sempre que as decisões de causas decididas em única ou última instância contrariarem dispositivo constitucional; declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição ou julgar válida lei local contestada em face de lei federal. Além do permissivo constitucional (inciso III do artigo 102 da CF), para que o STF admita o recurso extraordinário, o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei. O não reconhecimento da repercussão geral, com a consequente recusa do recurso, somente poderá ocorrer mediante o voto de dois terços dos membros do Tribunal[1].

O controle incidental de constitucionalidade, representado pelas três classes processuais do Recurso Extraordinário (RE), do Agravo de Instrumento (AI), residualmente, e do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE), corresponde a 91,19% do total dos processos distribuídos no tribunal, entre 1990 e 2015, daí a relevância do seu desenvolvimento.

Ao ser remetido para o STF, o recurso extraordinário passa por quatro filtros preliminares de julgamento.

O primeiro filtro pelo qual o RE, AI ou ARE passa é o da secretaria judiciária. Mediante a aplicação de um software[2], a secretaria identifica processos múltiplos relativos a matérias já submetidas à análise de repercussão geral, ou que tenham sido remetidos em desacordo com o § 1º do artigo 543-B ou, ainda, que tratem de temas que os ministros já determinaram o sobrestamento ou devolução. Esses processos passam por um procedimento de autuação simplificada e são automaticamente devolvidos por intermédio de decisão monocrática do Presidente do STF[3].

O segundo filtro é aplicado pelo Ministro Relator, após a distribuição aleatória do recurso. Em decisão monocrática, o relator pode negar seguimento ao recurso que considerar manifestamente inadmissível, improcedente ou contrário à jurisprudência dominante ou súmula do STF[4]. O relator pode também prover o recurso monocraticamente, em caso de manifesta divergência com súmula do STF[5].

Ao ter as preliminares de questão constitucional e repercussão geral analisadas no plenário virtual, o recurso já passou por dois filtros monocráticos (Secretaria Judiciária da Presidência e Ministro Relator), que barram mais de 80% dos processos[6].

Se considerarmos o universo de processos não decididos monocraticamente, os 700 temas de repercussão geral julgados entre 2007 e 2014 correspondem a 4% dos recursos de AI, ARE e RE no acervo processual do STF[7].

Esse dado é especialmente relevante na medida em que, ao contrário do que ocorre com a distribuição aleatória[8], não há sorteio para escolha do tema que terá sua repercussão geral analisada no plenário virtual. Frise-se, mesmo que o relator só possa escolher dentre os processos a ele sorteados, por se tratar de um universo de milhares de recursos, é imprescindível a explicitação dos critérios (materiais ou formais) que orientam o relator na escolha dos recursos que têm a sua repercussão geral analisada.

A publicização dos critérios adotados pelos ministros na escolha dos processos que terão sua repercussão geral analisada é imperativo dos princípios da publicidade, da transparência, da isonomia e da impessoalidade, que não admitem flexibilização na prestação jurisdicional, especialmente na jurisdição constitucional.

Ultrapassados os dois filtros recursais monocráticos, a questão constitucional e a repercussão geral são os últimos filtros de admissão recursal colegiada, julgados simultaneamente no colégio eletrônico do plenário virtual do STF.

Originalmente, o plenário virtual foi criado para o julgamento da repercussão geral, tendo sua competência ampliada no decorrer do tempo para o julgamento da preliminar da questão constitucional e, posteriormente, para o julgamento do mérito do recurso extraordinário em caso de reafirmação de jurisprudência. Mais recentemente, em junho de 2016, a competência do plenário virtual foi ainda mais ampliada, agora para o julgamento do mérito de agravos internos e embargos de declaração[9]. Tanto a matéria constitucional como a reafirmação de jurisprudência são respostas às limitações do desenho institucional do julgamento da repercussão geral.

A questão constitucional é um terceiro filtro recursal colegiado, criado para contornar os efeitos do comportamento absenteísta dos ministros no plenário virtual. Entretanto, o mecanismo nem sempre eficaz, pois apenas funciona quando o relator declara a ausência de matéria constitucional.

A partir do momento em que o relator votar pela ausência da questão constitucional (“não há”), as abstenções dos ministros deixam de ser computadas como votos tácitos pela admissão do recurso e passam a ser colhidas como votos tácitos contra o reconhecimento da repercussão geral. Vale destacar que a sistemática criada apenas ganha relevância em um cenário de absenteísmo no plenário virtual.

A questão constitucional dá, ao relator do tema de repercussão geral, o controle do sentido das abstenções dos demais ministros no plenário virtual. Se o relator votar pela ausência de questão constitucional, as abstenções dos demais ministros passam a ser computadas como voto tácito pela inexistência de repercussão geral. Na via inversa, se o relator reconhecer a questão constitucional, as abstenções são computadas pelo reconhecimento da repercussão geral.

No universo de 510 temas que tiveram a questão constitucional apreciada no plenário virtual entre 2007 e 2014, em 348 ela foi reconhecida e apenas dois destes tiveram a sua repercussão geral negada (temas 175 e 681). Em todos os 162 temas em que a questão constitucional foi negada, a repercussão geral também foi negada[10]:

Conclui-se que há uma correlação positiva entre a questão constitucional e a repercussão geral. Entretanto, enquanto a repercussão geral foi constitucionalmente prevista (inclusive com quórum qualificado), a questão constitucional foi regimentalmente concebida, dando ao relator do processo o poder de definir o computo das abstenções, em outras palavras: as abstenções são iguais ao voto do relator na matéria constitucional. Ao investigarmos o comportamento do relator no julgamento da questão constitucional, temos a seguinte constatação:

Votos reconhecendo e negando a questão constitucional e abstenções (clique aqui para visualizar em tamanho ampliado):

Fonte: a autora a partir de dados do STF.

O relator ficou vencido na questão constitucional nos temas 213 e 468. Surge aqui a figura do super-relator no plenário virtual, que vota por todos os ministros que se abstiverem, definindo a questão constitucional e a repercussão geral, enfim, definindo os rumos do processo e de vidas (eficácia erga omnes da repercussão geral).

A reafirmação de jurisprudência, por sua vez, é uma tentativa de responder ao estoque de temas com repercussão geral e mérito pendente de julgamento. Conforme tivemos oportunidade de explicitar, os ritmos de julgamento do plenário virtual e do plenário presencial são distintos, sendo certo que se reconhece a repercussão geral de temas (plenário virtual) em uma velocidade maior que se julga o mérito desses temas (plenário presencial), gerando-se um novo estoque e a antiga pressão por julgamentos. Com o objetivo de contornar esse descompasso entre o ritmo de julgamento da repercussão geral e julgamento do mérito, o plenário virtual passou a julgar o mérito dos temas nos quais o STF reafirma a sua jurisprudência já pacificada.

O Plenário Virtual vem apreciando o mérito do recurso desde abril de 2011 (tema 380), tendo reafirmado a jurisprudência do STF em 30 temas com repercussão geral[11]. Dentre os temas que tiveram o mérito julgado no plenário virtual, 10 foram providos, o que representa um percentual de 33,33% de êxito.

Nenhum acórdão reafirmando a jurisprudência do STF proferido no plenário virtual foi unânime. Por fim, a posição defendida pelo relator foi vencedora em todos os 30 temas nos quais a jurisprudência do tribunal foi reafirmada, entre 2007 e 2014, o que mostra o papel central do relator do processo na definição do processo decisório no STF.

A repercussão geral do recurso extraordinário é último filtro de admissão recursal que só pode ser examinado em órgão colegiado, já que a Constituição fixou o quórum de 2/3 (dois terços) dos membros do tribunal para que o recurso fosse recusado pela ausência do requisito.

Trata-se de uma ‘preliminar erga omnes’ que, além de não poder ser monocraticamente apreciada, precisa de um quórum qualificado para ser recusada. Na processualística tradicional, o exame dos requisitos preliminares pode ser monocrático, por ser menos complexo e de menor envergadura (forma), se comparado com o exame meritório (matéria).

Ainda que envolva diferentes graus de complexidade em sua análise, o adjetivo e o substantivo devem ser compreendidos em uma perspectiva que associe e equipare o seu sentido e importância, complementando-se em um uno indissolúvel, condutor e orientador da jurisdição. Afinal, a justiça só é alcançada no processo, como adverte Carnelutti ao falar da relação circular entre direito e processo[12]. De qualquer sorte, a eficácia erga omnes é um dos principais efeitos do instrumento que, por sua amplitude, justifica uma apreciação colegiada especial, bem como uma detida e criteriosa investigação.

Não sem razão, um dos temas cardeais do judicial politcs é o processo de tomada de decisão judicial em cortes colegiadas, na perspectiva estratégica. Há uma vasta literatura demonstrando os efeitos do desenho institucional, da diversidade, da divergência e da própria dinâmica das sessões de julgamento no processo decisório[13].

Compartilhamos dessa premissa ao problematizar os órgãos julgadores da repercussão geral, tratando separadamente as decisões tomadas em meio eletrônico (plenário virtual) e no plenário presencial. Buscamos identificar similitudes e distinções, na linha do entendimento de que o desenho institucional e o procedimento podem influenciar o julgamento do Supremo[14].

Observamos que o modelo normativo no qual a repercussão geral é julgada, com a necessidade de um quórum qualificado de 2/3 dos membros do tribunal para a recusa do recurso, favorece o reconhecimento da preliminar. O Regimento Interno do STF, por sua vez, atrelou a abstenção do ministro ao voto tácito pelo reconhecimento da repercussão geral. Além desse modelo institucional, a postura absenteísta de alguns ministros no plenário virtual acabou por gerar distorções no resultado do julgamento, nas quais o voto expresso da maioria dos ministros é vencido pelas abstenções; em outros casos, a maioria é vencida pela minoria, somada aos votos tácitos[15].

O quadro normativo favorecedor da admissão do recurso, as distorções provocadas pela postura absenteísta e a postura ampliativa do tribunal no exame da repercussão geral acabaram por sobre favorecer o reconhecimento da preliminar criando um novo desafio: um estoque temas com repercussão geral e mérito não julgado.


[1] Lei nº 11.418/06.
[2] STF – ARE 663637 AgR-QO, Rel. Min. Ayres Britto, DJe de 6.5.2013.
[3] STF – Portaria n. 138/09.
[4] STF – § 1º do art. 21 do RISTF: Poderá o(a) Relator(a) negar seguimento a pedido ou recurso manifestamente inadmissível, improcedente ou contrário à jurisprudência dominante ou a Súmula do Tribunal, deles não conhecer em caso de incompetência manifesta, encaminhando os autos ao órgão que repute competente, bem como cassar ou reformar, liminarmente, acórdão contrário à orientação firmada nos termos do art. 543-B do Código de Processo Civil. Entre 2007 e 2013, o STF baixou 99.055 recursos por decisão monocrática do relator.
[5] STF – § 2º do art. 21 do RISTF.
[6] STF – Dados da Assessoria de Gestão Estratégica e Relatórios de Atividades do STF.
[7] O acervo é composto pelos processos que se encontram em tramitação. O acervo processual de cada Ministro é composto pelos processos que recebeu do Ministro cuja vaga ocupou e por aqueles distribuídos após sua posse. Cada Ministro inicia seu exercício no Tribunal com um acervo processual distinto, composto por processos de diferentes idades e que se encontram em diversas fases de tramitação. Em 22.5.2014, os recursos de AI, ARE e RE representavam 70,60% do acervo processual do STF (57.208 processos), sendo que 44,17% não tinham nenhum tipo de decisão, o que nos leva a um passivo de 17.841 recursos sem nenhum tipo de decisão. A partir de dados disponíveis em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=estatistica&pagina=acervoatual , acesso em 22-mai.-2014.
[8] O RISTF prevê, em seu art. 66, que o relator do processo será escolhido por sorteio, enfatizando, em seu § 1º, a publicidade do sistema informatizado de distribuição automática e aleatória de processos, sendo os seus dados acessíveis aos interessados.
[9] SESSÃO A DISTÂNCIA: STF julgará agravos internos e embargos de declaração no Plenário Virtual. Notícia veiculada no Consultor Jurídico, em 23 de julho de 2016, disponível em http://www.conjur.com.br/2016-jun-23/stf-julgara-agravos-embargos-declaracao-plenario-virtual , acesso de 14-set.-2016.
[10] Nos temas 282, 284 e 285, os ministros se abstiveram de votar a questão constitucional no plenário virtual, reputando-se a sua existência.
[11] No tema 445, a jurisprudência, apesar de pacífica, não foi reafirmada e o recurso foi afetado ao plenário presencial para o julgamento do mérito. Para uma relação dos temas nos quais a jurisprudência do STF foi reafirmada ver Anexo II. Destaque-se a importância da regulamentação do procedimento de revisão de tese, previsto na parte final do caput do art. 327 do RI do STF: “A Presidência do Tribunal recusará recursos que não apresentem preliminar formal e fundamentada de repercussão geral, bem como aqueles cuja matéria carecer de repercussão geral, segundo precedente do Tribunal, salvo se a tese tiver sido revista ou estiver em procedimento de revisão” (destaques atuais).
[12] CARNELUTTI, Francesco. Teoria Geral do Direito. São Paulo: Livraria e Editora Jurídica Senador, 1972.
[13] EPSTEIN, Lee (ed.). Courts and Judges. Burlington USA: Ashgate Publishing Company, 2005. FARHANG, Sean; WAWRO, Gregory. Institutional Dynamics on the U.S. Courts of Appeals: Minority Representation Under Panel Decision Making. Journal of Law, Economics and Organization, v. 20, n. 2, p. 299-330, 2004. FISCHMAN, Joshua B. Decision-Making Under a Norm of Consensus: A Structural Analysis of Three-Judge Panels. 1st Annual Conference on Empirical Legal Studies Paper, jan-2008. KASTELLEC, John. Panel Compostion and judicial Compliance on the U.S. Courts of Appeals. Journal of Law, Economics, and Organization, v. 23, n. 2, p. 21-441, 2007.
[14] MESQUITA, Ethan Bueno; STEPHENSON, Matthew. Informative Precedent and Intrajudicial Communication. The American Political Science Review, v. 96, n. 4, p. 755-766, 2002. ULMER, Sidney. Conflict with Supreme Court Precedent and the Granting of Plenary Review. The Journal of Politics, v. 45, n. 2, p. 474-478, 1983.
[15] Ao analisar todos os temas de repercussão geral julgados entre 2007 e 2014, verificou-se um percentual de abstenção superior a 20% no plenário virtual do STF (MEDINA, Damares. A Repercussão Geral no STF, São Paulo: Saraiva, 2016). Os temas 538, 347, 668, 671, 106 e 538 são exemplos dessas distorções e limitações sistêmicas da repercussão geral.

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