Boas intenções

Condenação é anulada nos EUA por comentário de juíza sobre encanadores

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14 de outubro de 2016, 11h10

Na seleção de jurados para um julgamento nos Estados Unidos, a juíza Eleanor Hunter explicou a um grupo de “candidatos” que eles iriam julgar a credibilidade de uma testemunha e que receberiam instruções sobre como deveriam fazer isso. A primeira instrução ela já poderia dar: “A lei diz que você não pode pré-julgar ninguém. Você não pode dar credibilidade automaticamente a alguém, como não pode negar credibilidade a ninguém, antes que a pessoa se pronuncie no assento da testemunha”.

O que parecia uma boa intenção da juíza, de esclarecer aos possíveis jurados sobre um julgamento justo, se complicou quando ela resolveu dar um exemplo de sua vida pessoal para ilustrar seu discurso. Como todo mundo sempre acha que um tipo de profissional é desonesto, ela tinha um problema com encanadores. Sempre achava que iriam mentir.

“Me desculpe se algum de vocês é encanador, mas eu sempre uso esse exemplo. Eu sempre tive experiências horríveis com encanadores. Quando sou avisada de que um encanador está vindo a minha casa, eu penso: Deus, ele não vai me dizer a verdade. Assim, eu já pré-julguei esse profissional e não seria capaz de ser justa com ele”, disse a juíza.

“Quando qualquer pessoa ocupar o assento da testemunha, você não deve julgá-la de forma alguma. Mas uma vez que ela começa a dar seu testemunho, você começa a usar toda a sua capacidade para julgar sua credibilidade. Aí você pode começar a avaliar a testemunha, mas não antes disso”, recomendou.

O exemplo do encanador foi terrível para o caso que iriam julgar, porque a única testemunha da defesa, que iria proporcionar um álibi para o réu acusado de assassinato e tentativa de homicídio, era um encanador.

O réu era Vincent Anthony Tatum. Em uma briga, ele teria atirado no amigo de infância Devin Lowe, que sobreviveu, e matado seu meio-irmão Victor Valentine. Lowe denunciou Tatum à polícia. Em seu testemunho no julgamento, o encanador Major Lee Goulsby afirmou que Tatum chegou entre 7h e 8h no trabalho e trabalhou o dia inteiro. Portanto, não poderia estar na cena do crime em torno das 9h, em 17 de outubro de 2013.

A defesa pediu à juíza para anular o julgamento e recomeçar a seleção dos jurados em outro dia, sem mencionar seu problema particular com os encanadores, porque isso iria certamente influenciar o julgamento.

A juíza negou o pedido e disse à advogada de Tatum que ela mesma poderia dizer aos jurados que sua referência aos encanadores foi apenas um exemplo. E que ela, a advogada, poderia também advertir os jurados de que a testemunha, por ser um encanador, não era necessariamente um mentiroso. A advogada não aceitou a oferta, porque isso só iria reforçar na mente dos jurados a generalização de que encanadores são mentirosos.

Tatum foi a julgamento e o promotor reforçou, tanto quando pode, os fatos de que Goulsby, a testemunha, era um encanador e que ele mentiu no julgamento para salvar o amigo. Na inquirição cruzada, ele questionou Goulsby sobre o fato de ter desligado o telefone quando um detetive lhe disse que Tatum estava sendo procurado por assassinato, não lhe dizendo que o amigo estava com ele desde cedo.

Nas alegações finais, o promotor afirmou que o encanador estava mentindo, porque ele e Tatum eram amigos. “Ele não veio aqui para ajudar a corte a esclarecer o crime, ele veio aqui para ajudar o amigo. Ele não é uma pessoa em que se pode acreditar”, disse o promotor. Acrescentou que Goulsby era a única testemunha no caso, porque ninguém mais no trabalho de demolição que estavam fazendo naquele dia estava disposto a mentir para salvar Tatum.

Tatum foi condenado a 114 anos de prisão, o que equivale, obviamente, à prisão perpétua. A defesa recorreu ao tribunal de recursos, alegando que a juíza de primeiro grau negou ao réu seus direitos constitucionais ao devido processo legal e de ser julgado por um júri justo e imparcial, devido aos comentários sobre encanadores feitos pela juíza.

Argumentou que a juíza negou o pedido de anulação do julgamento, depois de informada que a testemunha era um encanador (embora existisse a possibilidade de ela já saber disso). Segundo a defesa, os comentários da juíza usurparam a função do júri de determinar a credibilidade da testemunha.

Por 2 votos a 1, o painel de juízes do tribunal de recursos concordou com a defesa. Em sua decisão, os juízes disseram que a juíza abusou de sua discricionariedade quando negou o pedido de anulação do julgamento, que se tivesse sido aceito no primeiro dia de seleção do júri não teria causado qualquer atraso ou custo considerável.

“Um pedido de anulação do julgamento deve ser concedido, se o juiz for informado sobre um pré-julgamento que seja incurável por uma advertência ou instrução. O juiz está investido de discricionariedade considerável para decidir sobre anulação de julgamentos.”

“Na Califórnia, um juiz pode fazer comentários sobre provas, incluindo a credibilidade da testemunha, desde que suas observações sejam precisas, moderadas e escrupulosamente justas. É claro que o juiz não pode expressar seus pontos de vista sobre a questão fundamental de culpa ou inocência ou de qualquer outra forma usurpar a função exclusiva do júri como árbitro das questões sobre fatos e sobre a credibilidade da testemunha”, afirma a decisão.

Segundo os juízes, o promotor desafiou habilmente a credibilidade da testemunha na inquirição cruzada. E, depois, nas alegações finais, ressaltou que o encanador mentia em seu testemunho para ajudar um amigo. Tudo isso foi reforçado pelas declarações da juíza na seleção dos jurados. Portanto, Tatum não teve um julgamento justo por um júri imparcial.

“O problema dos comentários judiciais é o de que os jurados podem atribuir credibilidade excessiva à opinião de um juiz sobre como resolver uma questão factual. Os membros do júri podem dar um peso muito grande a alusão do juiz sobe uma prova ou sobre a credibilidade de uma testemunha. Os jurados estão sempre atentos a tudo o que sai da boca do juiz. Particularmente em um julgamento criminal, a palavra final do juiz pode ser a palavra decisiva.”

Nessas circunstâncias, disseram os juízes, qualquer instrução do juiz seria tão ineficaz quanto as palavras ditas pelo Mágico de Oz: “Não prestem atenção ao homem por trás da cortina” – no filme, quando ele diz essas palavras, a protagonista se apressa em abrir a tal cortina.

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