Opinião

Direito à educação deve considerar o contexto da aprendizagem

Autor

  • Tiago Bitencourt De David

    é juiz federal substituto da 3ª Região mestre em Direito (PUC-RS) especialista em Direito Processual Civil (UniRitter) especialista em Contratos e Responsabilidade Civil (Escola Verbo Jurídico) e pós-graduado em Direito Civil pela Universidad de Castilla-La Mancha (UCLM Toledo/Espanha).

12 de outubro de 2016, 8h45

É de conhecimento amplo que o direito à educação foi reconhecido como um direito humano (art. XXVI da Declaração Universal de Direitos Humanos) e fundamental (art. 6º, 205 e 227, da Constituição Federal de 1988). De forma bastante simples, pode assumir-se que o direito à educação compreende o acesso à informação e à orientação no desenvolvimento das capacidades cognitivas, dentre outros aspectos sem os quais não seria reconhecido como tal.

Entretanto, em que consiste concretamente a realização de tal direito – o quê, de facto, deve ocorrer na prática para que tal direito seja promovido, efetivado – revela-se temática frequentemente driblada por aqueles que creem na autoexecutoriedade dos brados irritantes e demagógicos dos truísmos e das fórmulas pomposas e vazias.

Advogar a existência do direito à educação, sem questionar o processo real que ocorre no seio da sociedade brasileira, descurando do cenário dramático das salas de aula (indisciplina, desmotivação, violência, bullying, etc.), ignorando-se que após anos de frequência escolar a maioria termina o ensino médio sem saber noções básicas e absolutamente desprovida do hábito da leitura, implica na invocação demagógica de um direito ao invés de enfrentar-se o problema do drama de sua efetivação. Ignorar as circunstâncias concretas do fato educacional é, para usar a feliz metáfora heideggeriana[1], como descrever o martelo, em suas feições físicas, desconsiderando seu uso (martelar).

Aliás, o apelo à educação de forma abstrata faz parte do imaginário jurídico brasileiro, extremamente afeito à abstração e à baixa retórica, discurso este não raro desmentido pela prática. Para usar a eloquente expressão de Sérgio Buarque de Holanda[2] “De todas as formas de evasão da realidade, a crença mágica no poder das ideias pareceu-nos a mais dignificante em nossa adolescência política e social.”. Por outro lado, também não é incomum que a veneração de um suposto conhecimento prático nada mais faça do que esconder a preguiça mental de pensar sobre a realidade. É que o elogio ao praxismo tem sido eficaz para esconder nosso pouco pendor ao esforço intenso e cansativo de pensar o mundo.

O direito à educação submete-se a limites internos e externos que o definem e coordenam sua existência em correlação com os demais direitos, valores e condições de possibilidade do próprio contexto social no que se pretende reivindicá-lo. Daí sua invocação abstrata – limitada à sua enunciação linguística – revelar-se tão incapaz de abarcar o fenômeno em sua totalidade, desconsiderando que é no atrito com a realidade que o direito se faz ato, promovendo em ato aquilo que era mera potência.

Além dos limites, a compreensão dos contornos da educação implica no reconhecimento dos deveres inerentes ao processo educacional, sem os quais o binômio ensino-aprendizagem resta absolutamente prejudicado. Portanto, a educação enquanto direito implica no feixe de deveres tanto do educando quanto do educador, sendo a vontade, a disciplina e o comprometimento verdadeiras condições de possibilidade do desenvolvimento do saber.

Por outro lado, tal direito deve ser harmonizado com os demais direitos e ditames da ordem jurídica, sob pena de implementação disfuncional, bem como em consonância com a perspectiva fática na qual é invocado. Não fosse assim, bastaria invocar o direito à educação para reivindicar que a União pagasse a todos os interessados o estudo em universidades estrangeiras, inclusive incluindo moradia, alimentação, etc.

Da mesma forma que o direito ao lazer não autoriza a realização de festas com música alta a qualquer dia ou hora e nem permite que todo cidadão postule ter uma piscina em sua casa, também o direito à educação não se confunde com direito a frequentar universidade particular às custas do erário. Antes que se chegasse tão longe, mesmo em um país muito mais rico do que o Brasil, a Alemanha, por meio de seu Tribunal Constitucional, barrou a tentativa de acesso irrestrito à universidade no famoso caso numerus clausus.

Assim, não se pode dizer, por exemplo, que do direito à educação decorra a inconstitucionalidade da exigência legal[3] de ausência de restrição cadastral do candidato ao FIES. Em primeiro lugar, o acesso universal e gratuito refere-se ao ensino básico (art. 208, I, da CF/88), não alcançando o ensino superior. Em segundo lugar, o acesso à graduação é meritocrático (ensino público – art. 208, V, da Constituição Federal de 1988) ou regido pelo mercado (ensino privado), de modo que aqueles que desejam frequentar curso particular não podem exigir ou esperar seu financiamento público, de modo que o Fies rege-se pela lógica inerente ao de uma prestação de crédito, o que inclui, por sua própria natureza, uma análise do perfil do mutuário, de suas garantias e do risco da operação.

Crer que o Fies deve ser concedido sem garantias e para pessoas que já ostentam a condição de inadimplentes, significa reconhecer direito inexistente a frequentar faculdade particular às expensas de outrem em caso inadmitido pela Constituição Federal, subvertendo ao mesmo tempo a sistemática jurídica e violando a mais não poder a própria lógica do financiamento estudantil. Invocar o direito à educação para burlar previsões legais e contratuais mostra o tipo de risco que advém de uma tentativa equivocada de constitucionalização do direito privado – não que este fenômeno não deva ocorrer, mas certamente não do jeito pelo qual vem sendo defendido por alguns.

De igual modo, não se pode dizer que o direito à educação implica na possibilidade de dizer-se qualquer coisa em sala de aula. A posição do docente é de superioridade simbólica e funcional inegável, bastando ver que fala em pé ou sentado em patamar elevado, ao passo que os alunos permanecem sentados em plano mais baixo, assim como é o professor que detém a palavra, ainda que permitida eventual manifestação discente, mas sem com o retorno da fala do mestre.

A diferenciação docente-discente tem plena justificativa, não podendo haver igualdade em tal dinâmica, sob pena de desconfiguração do próprio ensino e do processo educativo. Porém, do poder emana a responsabilidade de ater-se ao conteúdo programático, sem aproveitar-se da superioridade que possui para arrebanhar adesões ao seu ponto de vista, especialmente em temas polêmicos, tais como política ou religião. Por isso revela-se corretíssima a observação de Max Weber[4] sobre o tema:

[…] Numa sala de aula, enfrenta-se o auditório de maneira inteiramente diversa: o professor tem a palavra, mas os estudantes estão condenados ao silêncio. As circunstâncias pedem que os alunos sejam obrigados a seguir os cursos de um professor, tendo em vista a futura carreira e que nenhum dos presentes em uma sala de aula possa criticar o mestre. A um professor é imperdoável valer-se de tal situação para buscar incutir, em seus discípulos, as suas próprias concepções políticas, em vez de lhes ser útil, como é de seu dever, por meio da transmissão  de conhecimentos e de experiência científica. […]

Não se trata aqui da exigência de impossível neutralidade ideológica, mas de contenção da aula aos seus limites próprios. A exposição de ponto de vista deve, de outra banda, ser feita em ambiente no qual haja condições de explanação divergente, realizando-se um diálogo, ou, pelo menos, um debate em locus adequado, sem que a recusa seja calada pelas circunstâncias desfavoráveis. Assim, a realidade mostra que a defesa de uma educação sem limites é, na verdade, a advocacia do autoritarismo, aceito apenas em função da posição ideológica daqueles que atualmente ocupam a maioria das cátedras de humanidades.

Um último aspecto que chama a atenção é de que grassam demandas postulando o acesso ao ensino superior em um país onde a média de leitura é de cerca de 3 livros/ano e onde 38% dos universitários são analfabetos funcionais[5]. Isso nada mais demonstra do que a triste realidade consistente em uma maior ânsia de diplomar-se do que de realmente conhecer algo.

Isso acontece na graduação e acontece na pós-graduação também, pois se antes o anel do bacharel era sinal de status hoje o é o grau de Doutor, o currículo lattes inchado e a feitura de sem-número de obras sem importância, cuja existência somente é justificada pela leitura forçada daqueles que igualmente almejam atingir o galardão e gozar da pose de sábio, sem comprometimento algum com a compreensão dos fatos e ansioso por dizer como deve ser o mundo.

No Brasil poucos sequer desejam entender o que realmente acontece, predominando os que acham que sabem o que deve acontecer. O espanto e a vontade de conhecer são raros. Predomina a ânsia de dominar o outro, de galgar a escada do poder. O grau acadêmico, do mais alto ao mais baixo, tem servido como pingente a adornar o Medalhão que nos foi genialmente apresentado por Machado de Assis[6].

É a cultura do bacharelismo[7] levada ao extremo, é a vitória de Górgias, é a (aparente, pois sempre temporária) derrota do Filósofo, do direito a tudo, da ausência de deveres, da negação das restrições, da invocação abstrata de dispositivos constitucionais, a revelar que o ânimo não é direcionado ao saber, mas antes ao ter e ao parecer. Assim, deve-se questionar: educação para quê e para quem?


[1] HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. 3ª ed. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 117 (69 na edição-referência alemã).

[2] HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil.  São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p. 280.

[3] O artigo 5, VI (posteriormente inciso VII), da Lei Federal 10.260/2001 exigia idoneidade cadastral do estudante e do fiador, sendo que atualmente, por força da Lei Federal 12.801/2013, é exigida tal condição apenas do garantidor.

[4] WEBER, Max. Ciência e Política: duas vocações. 18ª ed. Tradução de Leonidas Hegenberg e Octany Silveira da Mota. São Paulo: Cultrix, 2011, p. 47.

[5] Pesquisa divulgada em: http://www.correiodopovo.com.br/Noticias/?Noticia=444534

[6] O conto Teoria do Medalhão de Machado de Assis mostra como é verossímil a opinião de Lúcia Miguel Pereira (AGUIAR, Luiz Antonio (Org.). Recontando Machado. São Paulo: Record, 2008, p. 7) no sentido de que Machado foi ainda maior como contista do que como romancista.

[7] O fenômeno foi bem examinado por Sérgio Buarque de Holanda ao longo do capítulo 6 de Raízes do Brasil.

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    é juiz federal substituto da 3ª Região, mestre em Direito (PUC-RS), especialista em Direito Processual Civil (UNIRITTER) e pós-graduado em Direito Civil pela Universidad de Castilla-La Mancha (UCLM, Toledo/Espanha).

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