Negociações possíveis

"Nenhum conflito com terroristas ou guerrilheiros é insolúvel"

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11 de outubro de 2016, 7h43

Spacca
O acordo de paz assinado no final de agosto entre o governo colombiano e o grupo guerrilheiro Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) rendeu ao presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos, o Prêmio Nobel da Paz. Contudo, o futuro pacífico ainda é incerto no país. Por uma diferença de 60 mil votos, entre 13 milhões de eleitores que foram às urnas, os colombianos rejeitaram em referendo o acordo de paz.

Porém, independentemente do resultado do referendo, o acordo assinado na Colômbia comprova o que defende Jonathan Powell: nenhum conflito é insolúvel. "Todos têm solução, mas ela não é inevitável. Só serão solucionados se tivermos líderes com coragem, paciência e, principalmente, que aprendam com o passado e não cometam os mesmos erros", afirma.

Powell lidera a organização não governamental Inter Mediate, sem fins lucrativos, voltada para negociações entre partes em conflito, geralmente violentos. Em sua história, um dos feitos de maior destaque foi a atuação como negociador secreto do governo britânico com líderes do IRA, Exército Republicano Irlandês, organização clandestina que durante 30 anos executou atos terroristas.

Governos de variados matizes ideológicos, costumam anunciar que não negociam com terroristas, não pagam resgates, não barganham troca de prisioneiros, não falam com quem usa a violência, só aceitam derrotá-los de vez. Meia verdade. Conversam sim com terroristas, geralmente em segredo, observa Powell.

A experiência adquirida no processo de paz com o IRA rendeu pedidos a Powell para atuar como consultor em outras negociações parecidas, o que o motivou a criar a ONG Inter Mediate. Powell é autor de dois livros sobre o assunto, inclusive um, cujo título já indica a sua visão do problema: “Conversando com terroristas.”

Leia a entrevista concedida por Jonathan Powell ao jornalista Silio Boccanera, para o Milênio — um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura GloboNews às 23h30 de segunda-feira, com repetições às terças-feiras (17h30), quartas-feiras (15h30), quintas-feiras (6h30) e domingos (14h05).

Silio Boccanera — Você participou ativamente das negociações entre o governo britânico e o IRA que levaram a um acordo que dura até hoje. Você vê paralelos entre esta negociação e o recente acordo de paz da Colômbia?
Jonathan Powell —
É preciso ter cuidado. Não há duas negociações iguais. As causas e as soluções são sui generis. Não é possível levar um acordo com a Irlanda do Norte para a Colômbia ou para qualquer outro lugar. Mas é interessante. Quando analisei para meu livro várias negociações de paz em todo o mundo, foi interessante notar as semelhanças entre o que funciona e o que não funciona. Há lições interessantes. Ao analisar a África do Sul, El Salvador ou Achém, na Indonésia, as coisas que dão certo são muito parecidas e as coisas que não dão certo também são. Uma coisa muito boa em relação à abordagem de Santos na Colômbia foi que ele resolveu analisar por que Caguán fracassara, a negociação anterior na Colômbia. E se informou sobre a Irlanda do Norte. Ele morou oito anos no Reino Unido e foi atingido por uma bomba do IRA num clube em Piccadilly. Então ele conhecia bem o conflito e queria aprender as lições daquele processo de paz também.

Esses conflitos são sempre considerados impossíveis. Churchill achava que o da Irlanda do Norte era insolúvel, Margaret Thatcher também achava. Quando fechamos o Acordo da Sexta-Feira Santa, todos disseram que a solução era inevitável por motivos econômicos, porque a República da Irlanda tinha mudado, porque o 11 de setembro tornara o terrorismo impopular. É importante que se entenda que nenhum desses conflitos, nem o do Oriente Médio, nem as Farc, nem mesmo a Síria, é insolúvel. Todos têm solução, mas ela não é inevitável. Só serão solucionados se tivermos líderes com coragem, paciência e, principalmente, que aprendam com o passado e não cometam os mesmos erros.

Silio Boccanera — O acordo com o IRA está se sustentando há muitos anos. Alguma coisa o preocupa em relação ao acordo com as Farc?
Jonathan Powell — É importante que se saiba que um processo de paz não é um conto de fadas, ninguém vive feliz para sempre só por causa do acordo. Ainda haverá a política, ainda haverá violência. Alguns grupos vão se separar. Na Irlanda do Norte, alguns grupos dissidentes tentaram manter a violência, mas, como não tinham apoio político, não tiveram relevância. Você chega a um acordo não porque os dois lados confiam um no outro, porque não confiam. E as assinaturas no papel não trazem confiança. Só se os dois lados cumprirem o que está escrito é que a confiança surge. Então a implementação é a chave. No Oriente Médio, quando os acordos de Oslo foram assinados, todos comemoraram, os palestinos dançaram nas ruas, mas ninguém os implementou e, como resultado, eles fracassaram e a violência aumentou. Na Irlanda do Norte, levamos nove anos para implementar o Acordo da Sexta-Feira Santa. Foram nove anos de um grande esforço de negociação. O trabalho não para quando se chega o acordo. É preciso redobrar os esforços.

Silio Boccanera — Existem alguns grupos na Colômbia que são contra o acordo. Por que alguém seria contra um acordo para pôr fim a 50 anos de guerra?
Jonathan Powell — Essa situação é bem comum. Aconteceu na Irlanda do Norte. As pessoas querem o acordo de seus sonhos, não querem fazer concessões, querem que seja nos termos delas. Querem que os guerrilheiros passem 30 anos na cadeia e outras coisas assim, mas isso não é viável. Um acordo é uma conciliação, não é um lado só que decide. Então é difícil engolir o que vai acontecer em termos de justiça de transição na Colômbia, assim como foi difícil na Irlanda engolir a libertação daqueles que haviam matado pessoas. Mas, para se chegar a um acordo, é preciso equilibrar os interesses das vítimas do passado — e é preciso lidar com elas. A anistia não basta, é preciso haver um sistema de justiça de transição —, mas também é preciso pensar nas vítimas do futuro, nas pessoas que vão morrer se o conflito continuar. Se você não fizer concessões no quesito justiça, haverá mais vítimas no futuro. É preciso fazer concessões. É claro que, nessas circunstâncias, as pessoas não abraçam o acordo com entusiasmo. Na Irlanda nós fizemos um plebiscito sobre o acordo e vencemos facilmente com o voto dos católicos, mas parecia que íamos perder o voto dos protestantes. Acabamos conseguindo 54% deles, mas foi por pouco, e tivemos de mobilizar todo mundo: John Major e Tony Blair fizeram campanha lá. Portanto vencer um plebiscito, como aprendemos com o Brexit, nem sempre é previsível na metade do mandato do parlamento e do primeiro-ministro. Plebiscitos não garantem nada, e as pessoas são contra porque veem as concessões que são feitas, mas, no fim das contas, não devem querer o melhor acordo na visão delas, mas o melhor acordo possível.

Silio Boccanera — É difícil conciliar memória e perdão num conflito como esse. Como lidar com esses sentimentos, além do aspecto político?
Jonathan Powell — Grande parte do problema desses conflitos é lidar com a história, que é um peso grande. As pessoas lembram o que aconteceu com suas famílias, com famílias amigas, e superar isso é muito difícil. A África do Sul criou uma comissão de verdade e reconciliação. Hoje dizem que a recepção dela não foi unânime. Alguns dizem que ela pegou muito leve com os extremistas brancos violentos, outros dizem que ela beneficiou o Congreso Nacional Africano (CNA) e não foi justa com os brancos. Nem a comissão da África do Sul foi aceita por todos. Na Irlanda do Norte, ainda não achamos uma solução para o problema da história. Propusemos uma comissão, mas nenhum dos dois lados quis, por isso a história vive ressurgindo. Gerry Adams [ex-militante e presidente do Sinn Féin, o partido político do IRA] foi preso e interrogado no meio de uma campanha política. Se não lidarmos com a história, ela volta para nos assombrar. O acordo colombiano prevê a solução do problema da história, não só com a justiça de transição, mas também tentando voltar à história e achar uma forma de impor um limite. Se você não fizer isso, esse problema vai voltar. Então a reconciliação é difícil.

Silio Boccanera — O que leva terroristas a concordarem com uma negociação?
Jonathan Powell — Os acadêmicos falam em algo que chamam de “impasse mutualmente doloroso”, e tem um pouco disso. Acontece quando os dois lados que se enfrentam há muito tempo começam a perceber que não vão vencer militarmente. O exército britânico percebeu no fim dos anos 1970, início dos anos 1980, que poderia reprimir o IRA para sempre. O IRA nunca venceria, mas também percebeu que não conseguiria eliminar o IRA. Não haveria uma solução militar e resolveu tentar uma solução política. Adams e McGuinness, líderes do movimento republicano, entraram para o movimento muito jovens, mas em meados dos anos 1980 já estavam velhos, não eram mais guerrilheiros jovens. Eles viam seus sobrinhos, sobrinhas e primos sendo presos e mortos e perceberam que seria sempre assim. Não seriam derrotados, mas também não venceriam os britânicos militarmente. Então procuraram primeiro John Hume, líder do SDLP, depois o governo irlandês e por fim o governo inglês. Então acho que o motivo é o impasse doloroso. Se as Farc não tivessem sido bombardeadas por Uribe, se o ministro da Defesa de Santos não tivesse matado alguns líderes, talvez eles não tivessem negociado. A negociação não acontece num vácuo, não basta abraçar todo mundo para resolver isso, é preciso haver medidas de segurança, mas é a união de pressão por segurança e a oferta de uma saída política que costuma ter sucesso.

Silio Boccanera — Algumas razões que as pessoas mencionam para se opor a negociações com terroristas incluem dizer que isso dá legitimidade aos terroristas, que o cessar-fogo permite que eles voltem a se armar para voltar mais violentos e que negociar com eles favorece políticos extremistas em vez de moderados. Qual é a sua opinião?
Jonathan Powell — Esses argumentos fazem sentido. É claro que os grupos armados anseiam por legitimidade. Eles querem ser reconhecidos. E ao negociar com eles de fato lhes damos legitimidade. Mas não vale a pena pagar esse preço para ter paz? Temos o exemplo das Farc em Caguán, onde ganharam legitimidade. Apareceram na TV armados, puseram as armas na mesa, deram entrevista, ou seja, conseguiram legitimidade. Mas durante a negociação ficou claro que não levaram a paz a sério. Aquilo era só um jogo. E, quando as negociações fracassaram, tinham menos legitimidade do que antes. Foram rejeitados como narcoterroristas. A legitimidade é muito temporária. Na minha opinião, vale a pena pagar esse preço, dar legitimidade a eles, para se chegar à paz, pois será um prêmio temporário se eles voltarem a pegar em armas.

Silio Boccanera — Talvez tenha sido possível negociar com esses grupos porque havia algo palpável a discutir, a barganhar, mas como negociar com grupos de fundamentalistas religiosos que são terroristas, mas que não têm nada a perder, a menos que você se converta à religião deles ou aceite um califado, no caso o Isis? Ou seja, eles trazem Deus para a negociação. Como lidar com isso?
Jonathan Powell — Toda vez que surge um grupo terrorista, dizemos que ele é novo, diferente, que não é como os antigos. Eu estava negociando com o IRA e logo depois fui negociar com o ETA da Espanha. E um jornalista me disse: “Mas os terroristas do IRA eram bonzinhos e os do ETA são malvados.” Não. São apenas terroristas. Não são bonzinhos. E é preciso achar uma forma de lidar com eles. Os novos terroristas religiosos são mesmo diferentes e nenhuma das lições do passado se aplica? Tenho minhas dúvidas. Acho que algumas lições se aplicam. Negociamos com dois movimentos islamistas e chegamos a um acordo de paz: o GAM em Achém, na Indonésia, que é um movimento explicitamente islamista, mas o governo indonésio fez um acordo duradouro com eles, e nas Filipinas, a Frente Moro de Libertação Islâmica (Milf), um movimento explicitamente islamista, fez um acordo de paz. Então é possível fazer acordos com esses grupos. Não com todos, mas com certeza com alguns. Quando saí do governo em 2008, eu disse que com base na minha experiência com o IRA estávamos prontos para negociar com o Talibã, o Hamas e até com a Al-Qaeda, e meus colegas disseram que era loucura e me denunciaram. Mas, desde então, os israelenses negociaram um cessar-fogo com o Hamas e a libertação de alguns militares capturados pelo Hamas, os americanos negociaram a libertação do sargento Bowe Bergdahl com o Talibã e o envolvimento do governo afegão. E a ex-chefe da nossa Inteligência, Eliza Manningham-Buller, sugeriu contato com a Al-Qaeda. Então a atitude mudou. Não digo que é fácil, mas devemos buscar as lições aprendidas no passado e ver se elas se aplicam, porque talvez não os derrotemos só com a força militar.

Silio Boccanera — No seu livro Talking to Terrorists fica muito claro que você mantém esse princípio de que devemos negociar com terroristas, e você diz que não se pode contar com uma solução militar contra o terrorismo. Mas o que se deve fazer durante as negociações? Suspender as ações militares?
Jonathan Powell — Não. Uma das lições que aprendemos com a Colômbia foi que o presidente Santos decidiu negociar e atacar ao mesmo tempo. Ele não quis um cessar-fogo porque achou que um dos erros do ex-presidente Andrés Pastrana em Caguán foi permitir um cessar-fogo e a consolidação das Farc. Ele optou por negociar e atacar ao mesmo tempo. Nós abrimos um canal com o IRA em 1972, então o conflito continuou durante quase 25 anos enquanto negociávamos. Governos democráticos geralmente iniciam as conversas secretamente, porque é difícil explicar ao povo por que estão negociando. Acho que será assim com um grupo como o Isis. Não estou sugerindo uma negociação agora. Eles não iam querer, mas acho que vale a pena abrir um canal para ao menos entendermos melhor o que eles querem e para eles entenderem como o mundo os vê. Um canal secreto. E, quando chegarmos a um impasse mutuamente doloroso, quando eles perceberem que não vão vencer, podemos achar formas de discutir com os mais moderados não sobre um califado, mas sobre a insatisfação dos sunitas no Iraque. É um movimento principalmente iraquiano em grande parte estimulado pela sensação dos sunitas de terem perdido seus direitos para os xiitas. Se não acharmos uma forma de lidar com essa preocupação, o problema do Isis vai continuar por mais que o ataquemos. 

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