Academia de Polícia

O Estado é o inimigo íntimo dos crimes de estupro

Autor

  • Ruchester Marreiros Barbosa

    é delegado de polícia do RJ professor da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro da Escola da Magistratura de Mato Grosso e do Cers autor de livros palestrante e colaborador oficial da Comissão de Alienação Parental da OAB-Niterói.

11 de outubro de 2016, 13h34

Spacca
Caricatura Ruchester Marreiros [Spacca]A lei Maria da Penha não nasceu da boa vontade de nosso legislador, nem da cultura humanizante de nossa sociedade de origem eminentemente patriarcal e escravocrata. A violência contra a mulher é sistêmica, portanto, inclui o Estado-legislador, fruto de uma ideologia machista, corolário lógico do patriarcalismo. O resultado é o surgimento de uma violência perversamente democrática, por se encontrar presente em todas as classes sociais, grupos étnico/raciais, segmentos culturais, credos religiosos, e, ainda pior, sem distinção de idade.

É possível extrair essa conclusão em razão da Conferência Mundial de Direitos Humanos realizada em Viena, em 1993. Através da Declaração de Viena, pronunciou-se a favor do reconhecimento dos direitos específicos das mulheres e elevou à categoria dos direitos humanos o direito das mulheres viverem sem violência. Afirmou-se, pela primeira vez, que os direitos da mulher e da menina são parte inalienável, integral e indivisível dos direitos humanos universais.

Essa ideologia tem como escopo distinguir a mulher como fruto de uma adequação a um positivismo criminológico, calcado no determinismo biológico entre os sexos masculino e feminino, tendo como premissa maior a do homem, naturalmente, ser dotado de maior força física bruta, seja também superior em todos os demais aspectos da vida. Essa perspectiva machista busca demonstrar que a mulher é um ser inferior, destinada ao desenvolvimento típico de seres mais fracos, cujo papel na sociedade, automaticamente, é renegado a atividades mecânicas de auxílio ao homem, resultando em uma relação tipicamente de submissão em todos os aspectos, já acima citados.

Esta lógica determinista oriunda de um positivismo criminológico às avessas, somente foi enfrentada, quando a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, através do Relatório ou Informe 54/01, Caso 12.051 de 4 de abril de 2001, quando o Brasil foi declarado um Estado violador de Direitos Humanos, por não possuir um sistema eficaz de prevenção, erradicação e enfrentamento de todas as formas de violência contra a mulher. 

A emancipação da mulher objetiva, em seu papel social, a igualdade de condição do gênero masculino, mas ainda encontra dificuldades de ser efetivada em razão do ranço existente em grupos conservadores, que ainda ocupam extenso lugar no poder, majoritariamente no legislativo. Ficou configurado que mesmo após a Lei Maria da Penha, deparamo-nos com um quadro de insegurança jurídica no que diz respeito ao conceito de vulnerabilidade do gênero feminino, bem como a deficiência de um sistema harmônico e coerente quanto à proteção penal da mulher vítima perante seus agressores, notadamente, nos crimes de violência, física, patrimonial, psicológica e sexual.

Podemos verificar, por exemplo, que mesmo após a Lei 13.104/15, que inclui o feminicídio no Código Penal, ou seja, uma legislação mais atual que a redação da lei Maria da Penha, pode-se verificar o conservadorismo quando no processo legislativo, quando o parlamento retirou a motivação “em razão do gênero” do inciso VI do §2º do artigo 121 do CP, como feminicídio, e incluiu como crime praticado “contra a mulher por razões da condição de sexo feminino”, reafirmando o famigerado determinismo do positivismo criminológico, pautado em critério puramente biológico.

A toda evidência, que tanto a Lei 11.340/06 e a Lei 13.104/15, como se verifica da redação do artigo 121, §2º-A do CP, o legislador não pode considerar como qualificadora do crime de homicídio de mulheres (feminicídio), sob o aspecto biológico somente. Ou seja, não se trata de uma qualificadora objetiva que leva em consideração apenas a distinção entre seres humanos sobre o aspecto sexual, mas uma violência motivada pelo gênero feminino, razão pela qual se utilizou em outra feita, mas no mesmo contexto da novatio legis, a expressão “por razões da condição de sexo feminino”.

A violência de gênero representa segundo Maria Teles[1]:

“uma relação de poder de dominação do homem e de submissão da mulher. Demonstra que os papéis impostos às mulheres e aos homens, consolidados ao longo da história e reforçados pelo patriarcado e sua ideologia, induzem relações violentas entre os sexos.”.

Em outras palavras, violência motivada pelo de gênero não é a mesma coisa que motivação pelo sexo, admitindo-se interpretação sistêmica com base na agravante genérica do artigo 61, “f” do CP, por ter sido o crime cometido com “violência contra a mulher na forma da lei específica”, qual seja a lei Maria da Penha.

É a historicidade da luta pela igualdade de gênero perante uma tradição patriarcal, que verificamos como foi o avanço da emancipação dos direitos da pessoa humana do gênero feminino[2] e sua proteção à violência em seu desfavor, com uma legislação, ainda nos dias atuais, ainda com reflexos na cultura de menoscabo ao papel da mulher na sociedade e o seu direito à maior autonomia para decidirem sobre sua própria dignidade, freadas por um superego untado no machismo.

No mês de setembro de 2016 fomos obrigados a nos deparar com os frutos do que vulgarmente se intitula de “cultura do estupro”. Houve a veiculação de um caso do promotor de justiça que afirmou a uma vítima menor de idade, abusada sexualmente pelo pai, de que se ele, promotor de (in)justiça, “se pudesse, pediria a prisão da vítima”[3], por ser esta considerada culpada pelos abusos sofridos pelo seu próprio pai, e desta atrocidade, engravidado dele.

Ainda, naquele mês, a prisão, no Rio de Janeiro, de um analista de sistemas, residente em condomínio de alto padrão, na Barra da Tijuca, por armazenamento de imagens de pornografia infantil. Os indícios são de que ele cooptava crianças pela internet e as convencia de passar suas imagens em cenas pornográficas enquanto mantinha conversa, como no caso veiculado, de uma menina de 10 anos de idade[4].

Foi notícia também a prisão de um coronel da PM reformado, preso cautelarmente por abuso sexual de crianças de dois anos, a qual foi entregue por uma mulher, de 23 anos, a ele[5].

Como se pode perceber, a ausência de inibição das condutas de um analista de sistemas, um coronel PM reformado e de um promotor de justiça, que aviltam o senso moral (superego) de qualquer homem médio, ainda que provocados por questões que podem gravitar em torno de questões de saúde mental até questões culturais, retrata em verdade o Id e o superego de cada um. Em todos eles, o superego, ou será constatado diminuto ou realmente o autoriza (culturalmente), sem nenhum senso de freio moral, numa total tranquilidade em se banalizar a sexualidade violenta, produto não somente da educação recebida por eles, mas fruto de um processamento cultural de que o Estado deva interferir na sexualidade e não no respeito à dignidade sexual, desde a mais tenra idade, aliás, principalmente, a partir dela.  

Nosso Código Penal de 1940 a toda evidência ao tratar dos crimes contra a dignidade sexual o abordou com a ideologia patriarcalista da época, impregnada de questões moralistas, que levaram o legislador a intitular essa gama de crimes atrozes como dos “Crimes Contra Os Costumes” e “Dos Crimes Contra A Liberdade Sexual”, denotando a ideologia Estatal de repressão da sexualidade e não da proteção pelo seu adequado desenvolvimento, elevando, desta forma, como bem jurídico tutelado “o costume” e o “senso moral”. Consequentemente, a criminalização da liberdade da vida sexual parametrizada com questões religiosas e não na dignidade da pessoa humana, o que evidentemente, tornou-se incompatível, não somente sob a nova ordem constitucional, como do próprio amadurecimento social sobre a sexualidade.

Esta carga culturalmente paternalista consequentemente machista fica clara quando o legislador, ao longo do tempo, elabora o conceito de “mulher honesta”, que é empregada desde as Ordenações Filipinas.

O Brasil, no início da sua colonização teve como primeiro ordenamento imposto por Portugal as Ordenações Afonsinas, depois as Manuelinas e, finalmente, as Filipinas. Seu Livro V, advindo de D. Afonso IV descrevia os delitos e cominava as penas onde podemos encontrar expressões como “mulher honesta” e “viúva honesta” [6]

A lei penal seguinte, o Código Criminal do Império de 1830, no Capítulo II (Dos Crimes Contra a Segurança da Honra), Secção I (Estupro), o artigo 222, possuía a seguinte redação:

Art. 222. Ter copula carnal por meio de violencia, ou ameaças, com qualquer mulher honesta.

Penas – de prisão por tres a doze annos, e de dotar a offendida.

Se a violentada fôr prostituta.

Penas – de prisão por um mez a dous annos.

Repetindo o termo mulher honesta, consta assim no art. 224:

Art. 224. Seduzir mulher honesta, menor dezasete annos, e ter com ella copula carnal.

Penas – de desterro para fóra da comarca, em que residir a seduzida, por um a tres annos, e de dotar a esta.[7]

O artigo 225, por sua vez, previa a isenção de pena em caso de casamento com as vítimas:

“Art. 225. Não haverão as penas dos tres artigos antecedentes os réos, que casarem com as offendidas.”

Saindo do Império e caminhando para a República, sobreveio o Código Penal de 1890, editado pelo Chefe do Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brazil General Manoel Deodoro da Fonseca. No Título VIII (Dos crimes contra a segurança da honra e honestidade das familias e do ultraje publico ao pudor), Capítulo I (Da Violencia Carnal), o art. 266, que possuía como elementar do tipo a “depravação moral” e destacamos o artigo 268[8], na qual dispunha que:

“Art. 268. Estuprar mulher virgem ou não, mas honesta:

Pena – de prisão cellular por um a seis annos.

§ 1º Si a estuprada for mulher publica ou prostituta:

Pena – de prisão cellular por seis mezes a dous annos.

Ainda nesse regime político republicano, as diversas reformas definiram a necessidade de uma consolidação das leis penais, que foi definido pelo Decreto 22.213/32, mantendo o mesmo artigo e a mesma redação.

Finalmente, o Código Penal de 1940 continuou a empregar a expressão “mulher honesta”, tendo sido repetido este termo no Decreto-Lei 1.004/69, conhecido de Código Penal de 1969, projeto de Nelson Hungria, de cuja vigência foi sendo adiada para 1970, 72, 73, 74 (neste último ano a vigência ficou condicionada à entrada em vigor do novo Código de Processo Penal, que nunca acorreu) até ser revogado, ainda em sua vacatio, pela Lei 6.578/78, mantendo-se a vigência do Código Penal de 1940, bem como a terminologia “mulher honesta” nos artigos 215 e 216, até sua supressão total pela Lei 11.106/05.

O presidente da Comissão Revisora do Anteprojeto do Código Penal de 1969, Nelson Hungria (Hungria e Lacerda, 1980, p. 150), assim se lecionava sobre a elementar normativa “mulher honesta”:

“como tal se entende, não sòmente aquela cuja conduta, sob o ponto de vista da moral sexual, é irrepreensível, senão também aquela que ainda não rompeu com o minimum de decência exigida pelos bons costumes. Só deixa de ser honesta (sob o prisma jurídico-penal) a mulher francamente desregrada, aquela que inescrupulosamente, multorum libidini patet, ainda não tenha descido à condição de autêntica prostituta. Desonesta é a mulher fácil, que se entrega a uns e outros, por interesse ou mera depravação (cum vel sine pecúnia accepta)”

Como se percebe, há uma relação de desproporção entre a falta de proteção correta e adequada ao bem jurídico dignidade sexual na medida em que quanto maior é o grau de interferência do Estado em uma política proibicionista com consequente imposição de culturas, menor é a proteção da dignidade da mulher. Assim, estabeleceu-se uma relação de dominação entre a moral que o Estado dita sobre à moral baseada na dignidade que cada mulher deva atribuir a si mesma, resultando, ao longo do tempo, um processo de desvalorização da dignidade da sexualidade, seja de qual pessoa for, em especial da mulher e o desenvolvimento digno através da informação adequada.

Esta omissão/ação do Estado influencia no comportamento humano. Pessoas mal resolvidas sexualmente que em momento de estresse mostram seu verdadeiro superego diminuído frente ao necessário respeito à dignidade sexual, tornam-se capazes de expressar seu verdadeiro ego, demonstrando como ponto de equilíbrio de suas consciências a satisfação em repreender ou desrespeitar a dignidade sexual de outra pessoa para satisfazer seu prazer (Id) de colocar o outro em um “devido lugar” de uma visão culturalmente machista e não de uma igualdade aristotélica.

As consequências desta ideologia enraizada culturalmente no Brasil irá trazer reflexos legislativos, que mesmo com a alteração pelas leis 11.106/05, 11.340/06, e 12.015/09 teremos dificuldades para delinear, respectivamente o conceito de vulnerabilidade e o conceito de bem jurídico tutelado, diante da dificuldade ínsita em se conceituar dignidade da pessoa humana, consequentemente, da dignidade sexual, o que acarreta dificuldades em atualizar a legislação penal e processual penal com esta nova perspectiva. Em pleno século XXI, nossos legisladores lidam com o fenômeno ainda de forma muito imatura realizando uma produção legislativa muito espaçada entre si e desconexa, como ocorre com a Lei 8.069/90 e suas diversas alterações na parte das normas incriminadoras e o Código Penal, na parte especial, notadamente nos crimes contra a dignidade sexual.

É nisso que dá termos pessoas, legisladores e operadores do direito reprimidos e repreendidos em suas sexualidades. Mais uma vez, voltemos nossos olhos para a educação. Como disse Paulo Freire: “se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda.”


[1] TELES, Maria A. De Almeida. MELO, Mônica. O que é violência contra a mulher. São Paulo: Brasiliense, 2002

[2] Termo que entendemos mais adequado do que a terminologia emancipação dos direitos da mulher, posto que a evolução das garantias é acima de tudo uma emancipação por direitos humanos.

[6] DOMINGUES, José. As ordenações Afonsinas. Três séculos de Direito Medieval – 1211 a 1512. Tese de doutoramento. Universidade de San Tiago de Compostela, 2007. Orientador Científico: Prof Droutor Pedro Ortega Gil. Portugal: Edições e Actividades Culturais, Unipessoal Lda. 2007.

[7] Disponível no site do governo: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LIM/LIM-16-12-1830.htm>, acesso em 13/08/2016.

[8] Disponível no site do governo: <http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=66049>,  acesso em 13/08/2016.

Autores

  • Brave

    é delegado da Polícia Civil do Rio de Janeiro, doutorando em Direitos Humanos na Universidad Nacional de Lomas de Zamora (Argentina), professor de Processo Penal da Emerj, da graduação e pós-graduação de Direito Penal e Processual Penal da Universidade Estacio de Sá (RJ) e do curso CEI. Membro da International Association of Penal Law e da Law Enforcement Against Prohibiton.

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