Opinião

Cobrança de dívidas não pode afrontar dignidade humana

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7 de outubro de 2016, 12h33

Artigo publicado originalmente na edição de 7/10 do jornal Folha de S.Paulo com o título Limites da cobrança de dívida.

Assumiu ares de lugar-comum afirmar que o Brasil é um paraíso para inadimplentes, que a leniência de nossa legislação e Justiça contribui para o elevado "spread bancário" que aqui se pratica. Há algumas décadas juristas e economistas discutem soluções para o problema.

O novo Código de Processo Civil (CPC), em vigor desde 18 de março deste ano, investiu na criação de instrumentos hábeis a facilitar a vida do credor, mas sem descuidar de princípios constitucionais.
Não por acaso, está consignado logo no artigo 9º que "o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência".

Recentemente a imprensa noticiou uma ordem judicial que determinou a suspensão da carteira de motorista e do passaporte de um devedor, bem como o cancelamento de seus cartões de crédito, até que a dívida fosse quitada.

Imediatamente instalou-se nos meios jurídicos a polêmica: a interpretação dada ao CPC é compatível com os direitos fundamentais garantidos na Constituição?

O pomo da discórdia é o inciso IV do artigo 139 do código, que autoriza ao juiz, na condução do processo, "determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária". A divergência reside em saber se existem e quais são os limites desse poder.

Os livros de direito romano ensinam que a Lex Poetelia Papiria, de 326 a.C., foi o primeiro grande marco legal da humanização das cobranças de dívidas, abolindo a pena de morte e a imposição ao devedor dos castigos mais vexatórios, como cadeias e correntes.

O avançar da civilização cristã marcou o deslocamento da responsabilidade por dívidas, saindo do corpo do devedor para o seu patrimônio, pois se a vida humana, a liberdade e a integridade física são valores inalienáveis, não podem ser sacrificadas em benefício de credores de obrigações pecuniárias.

Embora inexistam estatísticas que permitam comparações, não é desarrazoado intuir que os índices de inadimplência despencam na razão inversa da incidência das ordens judiciais sobre o corpo e a liberdade do devedor.

Justamente para inibir que países optem pela execução dos contratos a qualquer custo, todos os principais tratados internacionais de direitos humanos proíbem a prisão civil por dívida.

Instrumentos que permitam o cumprimento forçado de contratos e o pagamento de dívidas são necessários, contudo é preciso equilibrar essa exigência com a liberdade e a dignidade humana.

Nessa ordem de ideias, é difícil conceber que a Constituição permita a um juiz proibir o uso do elevador por morador do edifício, a fim de forçá-lo a pagar a dívida com o condomínio.

Tampouco poderia o magistrado suspender o serviço de TV a cabo ou de banda larga da residência do devedor até que seja pago um débito com a escola de seus filhos.

Por mais caricatos que possam parecer os exemplos, eles se aproximam, em algo essencial, da polêmica decisão de suspender a carteira de motorista e o passaporte do devedor: abandonam a regra da responsabilidade patrimonial e atingem em cheio o núcleo de direitos inerentes à condição humana, limitando o direito de ir e vir.

Não há dúvidas de que, se fosse constitucional e aplicada amplamente, a polêmica interpretação do art. 139, inciso IV do CPC, poderia reduzir nossos índices de inadimplência. Todavia, o retrocesso civilizatório e o custo social seriam insuportáveis.

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  • Brave

    é ministro do Tribunal de Contas da União, doutor em Direito Processual pela PUC-SP e pesquisador visitante da Cardozo Law School, da Universidade Yeshiva, em Nova York.

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