MP no Debate

Reserva do possível não é somente cálculo matemático

Autor

  • Salomão Ismail Filho

    é promotor de Justiça do Ministério Público de Pernambuco. MBA em Gestão do Ministério Público pela UPE. Especialista e mestre em Direito pela UFPE. Doutorando em Direito pela Universidade de Lisboa e membro do Movimento Ministério Público Democrático.

3 de outubro de 2016, 10h59

A tese da “reserva do possível” tem origem na doutrina alemã, que desenvolveu uma teoria segundo a qual o Estado-Administração apenas poderia realizar os direitos fundamentais que exigissem prestações materiais conforme a disponibilidade existente no seu caixa, ou seja, se houvesse disponibilidade orçamentária para concretizar o direito em discussão.

Em princípio, trata-se de uma conclusão lógica e justa, pois não se podem exigir prestações materiais de quem não tem condições financeiras de supri-las ou executá-las.

A reserva do possível, destarte, apresenta-se como um corolário da visão germânica a respeito dos direitos sociais, os quais, segundo parcela importante da sua doutrina, não deveriam sequer estar previstos de forma expressa no texto constitucional, pois, correm o risco de se transformarem em meras promessas frustradas, bastando que Constituição apenas faça menção à fórmula do Estado de Direito Social, pois, de resto, deverá sempre o Executivo estar vinculado e respeitar os direitos fundamentais do cidadão (Hesse, 1998, p. 170-173).

Importante lembrar, porém, que Holmes e Sunstein, ao tratarem dos direitos fundamentais nos Estados Unidos da América, demonstram que não apenas os ditos direitos sociais, mas também os direitos de liberdade podem gerar custos para o Estado, pois estes têm corolários que não se limitam apenas à abstenção das autoridades públicas (Holmes; Sunstein, 1999, p. 35-36).

A bem de uma boa Administração Pública, voltada para a concretização das metas e objetivos constitucionais, máxime em uma realidade onde exista desrespeito continuado a tais valores (como em alguns setores da gestão pública brasileira e latino-americana), o princípio da reserva do possível há de ser interpretado da seguinte forma: os orçamentos dos organismos/entidades estatais, responsáveis pela promoção dos direitos fundamentais, devem ser elaborados com a finalidade de garantir sempre um percentual que assegure a realização dos direitos fundamentais aos quais estejam constitucional ou legalmente vinculados.

Afinal, o princípio da reserva do possível não pode servir de justificativa ou desculpa para o mau gestor público justificar a sua inércia na promoção dos direitos fundamentais em sua perspectiva social.

Até porque, os direitos sociais nada mais são do que a formalização de relações jurídicas fundamentais para que o indivíduo possa afirmar-se como pessoa humana perante si mesmo e perante a comunidade onde se encontra inserido. Por isso, os direitos fundamentais sociais independem do seu reconhecimento pelo Estado, pois são a formalização jurídica de algo que é inerente à dignidade humana (Longo, 2012, p. 44-48).

Por conseguinte, há de ser feita uma análise pontual do orçamento; ou seja, deve-se inquirir, se, no direito fundamental com projeção social em discussão (educação, saneamento, saúde, desporto, alimentação etc.), foi investido tudo o que era possível, pelo governante, à luz da arrecadação financeira da entidade pública em questão.

A propósito, a ONU, através da sua Comissão Econômica e Social para a Ásia e o Pacífico, caracteriza como eficaz e eficiente (atributos da boa governança) aquele gestor público que consegue utilizar o máximo dos recursos materiais que tem disponíveis para atender às necessidades da população.

Indispensável, assim, que o orçamento da entidade pública destine a verba possível e necessária para a efetivação dos direitos fundamentais, aos quais esteja juridicamente vinculada.

Nesse sentido, deverá ser feita uma análise específica no orçamento, ou seja, em cada rubrica da norma orçamentária, com a finalidade de comprovar se houve ou não um excesso de gasto público em determinas rubricas, como a construção de prédios públicos; a compra/aluguel de carros oficiais; a publicidade institucional, dentre outras, em detrimento do investimento em áreas sociais prioritárias, como alimentação, educação e saúde.

Portanto, pertinente a crítica de Andreas Krell, segundo o qual é preciso cautela na adaptação de teorias estrangeiras ao ordenamento jurídico brasileiro. Afinal, a realidade europeia seria bem diferente da brasileira, com relação à carência de determinados direitos sociais. Lembra, a propósito, que a “reserva do possível” poderia sempre ser invocada pelo Executivo, sob o argumento de falta de verba pública para investir em determinada área social, o que reduziria a zero a eficácia dos direitos fundamentais sociais (Krell, 2002, p. 51-52).

O Supremo Tribunal Federal, nos autos do RE 410.715-AgR/SP, em decisão de 22 de novembro de 2005, através de voto do ministro Celso de Mello, reconheceu que o princípio da reserva do possível não poderá ser invocado para inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência.

Por isso, a importância do bom senso e de uma certa flexibilidade, quando da interpretação de normas de direitos fundamentais, como ensina Robert Alexy, ao dispor sobre uma "reserva do possível no sentido daquilo que o indivíduo pode requerer de modo razoável da sociedade". Para o referido autor, os direitos sociais não seriam meras proposições programáticas, mas sim normas dotadas de eficácia, as quais, dentro de uma lógica razoável, poderão ser exigíveis, sem que se imponha o impossível aos decisores políticos (Alexy, 2011, p. 64-69).

Ou seja, não se trata apenas de uma questão de recorrer ao orçamento e matematicamente verificar se é possível ou não atender ao pleito de um determinado direito fundamental.

A exigibilidade do direito social, em determinado caso concreto, dependerá da fundamentação apresentada pela parte requerente; das justificativas invocadas pelo gestor público, à luz do orçamento disponível para materializar o direito humano em discussão, e da forma como gerencia (ou gerenciou) toda a verba pública à sua disposição.


Referências
ALEXY, Robert. Direitos fundamentais, ponderação e racionalidade. Tradução de Luís Afonso Heck. Teoria Geral dos Direitos Humanos, vol. 1. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria (Orgs.). São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 915-927.

HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998.

HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass R. The cost of rights: why liberty depends on taxes. New York: Norton Paperback, 1999.

KRELL, Andreas J. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des) caminhos de um direito constitucional “comparado”. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002.

LONGO, Erik. Le relazioni giuridiche nel sistema dei diritti sociali: profili teorici e prassi costituzionali. Milano: Casa Editrice Dott. Antonio Milani, 2012.

Autores

  • Brave

    é promotor de Justiça do Ministério Público de Pernambuco. MBA em Gestão do Ministério Público pela UPE. Especialista e mestre em Direito pela UFPE. Doutorando em Direito pela Universidade de Lisboa.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!