Autodeterminação informacional

Direito ao anonimato decorre da liberdade de expressão, defende professor alemão

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2 de outubro de 2016, 7h21

Enquanto a Constituição brasileira, ao dizer que a liberdade de expressão é um direito fundamental, proíbe o anonimato, na Alemanha, a manifestação anônima é protegida pela jurisprudência como um “direito acessório” à liberdade de opinião. Por isso, a jurisprudência do Tribunal Federal Constitucional alemão protege as manifestações anônimas como parte do direito à livre manifestação de pensamento.

A explicação é do professor Lothar Michael, da Universidade de Düsseldorf, na Alemanha. “A democracia não está assegurada apenas pela proibição da censura. Também deve ser protegido aquele que manifesta opiniões divergentes, ou minoritárias. Por isso a proteção da manifestação anônima”, opina.

Lothar Michael é decano da Faculdade de Direito da Universidade de Düsseldorf, professor de Direito Público e pesquisador da área de liberdade de informação e privacidade na internet. E ele explica que, em seu país, a proteção do anonimato decorre do princípio da autodeterminação informacional.

Isso significa que cada indivíduo é que decide que informações divulgar e para quem. Nisso também estão incluídos limites sobre quem pode, e de que forma, compartilhar informações pessoais de cada um. Portanto, diz o professor, a interpretação da corte constitucional alemã é a de que cabe ao emissor da informação definir como ela será divulgada, e o anonimato deve ser protegido por esse entendimento.

“O direito à autodeterminação é um dos temas preferidos do Tribunal Constitucional Alemão”, comenta o professor, em entrevista à ConJur. Ele conta que, durante os anos 1980 e 1990, a corte definiu a autodeterminação à privacidade, e ao longo da última década aperfeiçoou o entendimento para garantir a autodeterminação informacional, ou informativa.

Lothar Michael esteve no Brasil para uma palestra no Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), a convite do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal. Na quarta-feira (28/9), Michael falou sobre anonimato, privacidade e liberdade de expressão na internet. E concluiu que tanto a Constituição brasileira quanto o Tribunal Constitucional alemão exageram em suas posições.

“O enfoque alemão precisa ser relativizado, mas talvez a solução brasileira tenha ido longe demais”, comenta o professor. “A verdade deve estar no meio termo entre esses dois entendimentos.”

Outro lado
No Brasil, o anonimato ganhou contornos especiais desde que sites noticiosos passaram a permitir que leitores comentem suas publicações. Não é incomum que comentários ofensivos, racistas e preconceituosos sejam publicados sob um apelido, que não garante o anonimato, mas esconde o nome real do autor. “O anonimato contribui para a divulgação de inverdades e estimula a irresponsabilidade no trato com a informação”, comenta o professor Michael.

Mas ele pondera que o anonimato não é só ruim. É também uma forma de proteção para que certas ideias possam circular. Michael citou o exemplo de grupos de defesa de direitos dos homossexuais que só puderam se fazer ouvir porque se manifestaram sem se identificar.

Ao “reduzir a inibição”, o anonimato contribui para o “enriquecimento do discurso social”, comenta. “A tutela do anonimato no âmbito da liberdade de opinião não pode ser baseada no ideal do cidadão destemido, que defende ideias, toma partidos e se empenha na defesa de suas convicções. Ela tutela também, e justamente, o indivíduo tímido e fraco, mais sujeito a represálias contra opiniões divergentes.”

Responsabilidades
Durante sua palestra, Lothar Michael citou dois casos concretos que estão pendentes de decisão judicial: um site de avaliação de consultas médicas e outro de avaliação de serviços de hotéis. No caso dos médicos, o exercício da liberdade de opinião fere direitos de personalidade de profissionais, o que pode ser especialmente danoso em comunidades pequenas. No caso dos hotéis, por serem empresas, não há direitos de personalidade envolvidos, continuou.

“Mas como se defender de avaliações públicas feitas por meio de comentários genéricos e anônimos?”, questionou Michael, na palestra. A legislação alemã é “lacunosa”, diz o professor, mas ficou determinado que os provedores devem filtrar os comentários ofensivos ao mesmo tempo em que garantem o anonimato.

Segundo Michael, o Bundesgerichtshof (BGH), o equivalente alemão ao Superior Tribunal de Justiça, entende que os provedores de serviços de internet são obrigados a armazenar e proteger os dados dos cidadãos ao mesmo tempo em que garantem o anonimato de comentários e ações dos internautas.

Ele conta que o BGH rejeitou as tentativas de “proteção genérica” de pessoas preocupadas em se tornar alvo de comentários anônimos. Em contrapartida, concordou com as iniciativas que obrigam os provedores de internet a ter meios de identificar os autores de comentários e postagens caso haja uma investigação a respeito deles.

Meu castelo
A Alemanha é um terreno fértil para debates sobre privacidade e uso de dados por empresas de internet. “Os alemães gostam muito do lema ‘minha casa é meu castelo’”, brinca o professor. Não faltam casos concretos para a Justiça alemã analisar.  É de Hamburgo, de 2010, o primeiro processo judicial contra o Facebook por violação de privacidade, porque a rede social vende informações privadas de seus usuários.

Em 2008, os ministérios do Consumo e do Interior da Alemanha ajuizaram uma ação contra o Google por causa do Google Street View com suas fotos 360° de diversas cidades do mundo. O governo alemão considerou que o serviço violava a privacidade o direito de imagem dos cidadãos.

O processo terminou em agosto de 2010 em acordo. E ele dizia que o Street View não poderia ser imposto aos alemães. A qualquer momento, quem pedisse para não aparecer e nem ter sua casa fotografada, deveria ser atendido pela empresa de buscas. Resultado: 100 mil alemães pediram para ter suas imagens borradas pelo Google um mês depois da divulgação do acordo.

Mais recentemente, a autoridade de proteção dados da Alemanha proibiu o Facebook de acessar os dados de cadastro dos usuários do aplicativo de mensagens de celular pela internet WhatsApp. A rede social comprou o aplicativo em 2014, mas, segundo o governo alemão, havia assinado um acordo com as autoridades do país se comprometendo a não compartilhar os dados dos dois serviços.

De acordo com o Comissariado de Proteção de Dados e Liberdade de Informação de Hamburgo, o Facebook deveria ter consultado os 34 milhões de usuários alemães antes de mudar a política de privacidade do WhatsApp. A tese por trás desse posicionamento é, justamente, a da autodeterminação informacional.

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