Academia de Polícia

"Mera informatividade" do inquérito policial é um mito

Autor

  • Henrique Hoffmann

    é delegado de Polícia Civil do Paraná autor pela Juspodivm professor da Verbo Jurídico Escola da Magistratura do Paraná e Escola Superior de Polícia Civil do Paraná mestre em Direito pela Uenp colunista da Rádio Justiça do STF e ex-professor do Cers TV Justiça Secretaria Nacional de Segurança Pública Secretaria Nacional de Justiça Escola da Magistratura Mato Grosso Escola do Ministério Público do Paraná Escola de Governo de Santa Catarina Ciclo Curso Ênfase CPIuris e Supremo.

29 de novembro de 2016, 7h05

Spacca
As discussões que circundam o inquérito policial são frequentemente marcadas por uma superficialidade proposital e manchadas por interesses corporativistas, com desiderato de diminuir o valor desse indispensável mecanismo persecutório.

Não raras vezes, parcela da doutrina e jurisprudência aborda o tema com simplificações incompatíveis com a importância da investigação policial. Ignora o fato de a grande maioria dos processos penais, locus onde é sacramentada a responsabilidade penal ou não do sujeito, ser calcada exatamente no inquérito policial. Em geral, o processo penal segue a sorte da investigação policial, de modo que resultado da etapa inicial acaba por determinar o deslinde de toda a persecução penal.

Pois bem, costuma-se inserir dentre as características do inquérito policial (que compõem o próprio conceito dessa investigação policial) a informatividade. Parte da doutrina repete, sem maiores reflexões e por vezes com certa dose de menosprezo, que o inquérito policial é um procedimento “meramente informativo”.

Com essa frase reducionista é passada a errada mensagem de que o valor probatório do inquérito policial é insignificante e apenas relativo, e que esse instrumento investigativo não produz provas (mas unicamente elementos informativos). Transmite-se o equivocado recado de que não é preciso maior atenção à fase investigativa, pois nada do que ali é colhido pode amparar eventual condenação, e ocasionais vícios não contaminarão a ação penal.

Não se discute que o valor probatório de um elemento de convicção colhido pelo Estado depende da incidência dos princípios do contraditório e da ampla defesa. Realmente a força probante da informação exsurge da participação dialética das partes. A escorreita produção da prova depende da contestação defensiva.

Com efeito, é a obrigatoriedade ou facultatividade de a defesa ter ciência e se manifestar com relação ao dado angariado que confere a ele o status de prova ou de elemento informativo, e não o fato de ter sido produzido na etapa policial ou processual. Em outras palavras, nada impede que o conhecimento alcançado na fase policial seja considerado tecnicamente prova e sirva como base exclusiva da condenação.

Sabe-se que o fato de o inquérito policial ser inquisitivo[1] não significa que o contraditório e a ampla defesa sejam completamente afastados da fase pré-processual. Esses princípios incidem na investigação policial, muito embora de forma mitigada[2]. Pode, sim, haver participação da defesa, não de forma contemporânea, mas após a conclusão das diligências e sua juntada nos autos do inquérito policial (artigo 7º do Estatuto da OAB e Súmula Vinculante 14 do STF). Essa atuação defensiva meramente facultativa realmente não tem o condão de conferir valor probatório ao elemento colhido, que será informativo e não poderá amparar com exclusividade uma condenação (deverá ser conjugado com alguma prova). O que não significa que o elemento informativo seja inútil: pode tranquilamente subsidiar a decretação de medidas cautelares e o recebimento da denúncia (ex: declaração da vítima, depoimento da testemunha e interrogatório do suspeito).

De outro lado, a inquisitoriedade também não impede que o contraditório e a ampla defesa quanto a um elemento produzido pela polícia judiciária incidam de modo obrigatório, postergado para o processo penal. É o que ocorre com as provas cautelares e não repetíveis, elementos de convicção presentes na esmagadora maioria dos inquéritos policiais. Nesses casos, a atuação da defesa ocorrerá necessariamente, conquanto de maneira diferida (na fase processual), conferindo valor probatório a essas informações.

Provas cautelares são as que devem ser colhidas de imediato em razão do risco de desaparecimento do objeto da prova em virtude do decurso do tempo, exigindo, em regra, autorização judicial (ex: interceptação telefônica, dados de e-mails e busca e apreensão domiciliar) ou podendo ser requisitada diretamente pelo delegado de polícia (ex: ação controlada no crime organizado e dados pretéritos de ERBs). Já as provas não repetíveis (irrepetíveis) são as que devem ser produzidas rapidamente sob pena de desaparecimento, destruição ou perecimento da fonte da prova, não dependendo, regra geral, de ordem judicial (ex: perícia de lesões corporais ou conjunção carnal sobre a vítima, de eficiência de arma de fogo, de falsificação de documento e de constatação de droga), ou precisando de chancela do juiz (ex: perícia de RX sobre o suspeito).

Por isso mesmo, dispõe o artigo 155 do CPP que o juiz deve formar sua convicção com base nas provas produzidas em contraditório, “não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas”. É preciso cuidado com a interpretação dessa norma, pois a forma a contrario sensu de o legislador redigir induz o intérprete mais desatento a acreditar que a investigação colhe apenas elementos informativos, e eventual produção de prova é meramente excepcional, quando na verdade é a regra. O que a lei dispõe é que a condenação não pode ser calcada exclusivamente em elementos informativos colhidos no inquérito policial, mas pode perfeitamente se basear em provas cautelares e não repetíveis angariadas pela polícia judiciária (e submetidas a contraditório postergado), ou ainda em elementos de informação corroborados por elementos probatórios.

Dizer que o elemento colhido na investigação é informativo, e somente com a ciência e manifestação da defesa durante o processo passa a ser probatório, consiste em mero jogo de palavras, não mudando o fato de a prova ter sido colhida no bojo do inquérito policial. A prova cautelar ou irrepetível não é produzida na fase judicial, mas na etapa investigativa. É a polícia judiciária que adota a técnica investigativa, providenciando análise da coisa ou pessoa e extraindo a informação. Fica para o Judiciário apenas a tarefa de abrir o necessário espaço para a manifestação da defesa. Mas a colheita da prova ocorreu no inquérito policial, sob presidência do delegado de polícia.

A própria doutrina reconhece que “o contraditório sobre a prova, também conhecido como contraditório diferido ou postergado, traduz-se no reconhecimento da atuação do contraditório após a formação da prova[3]. É dizer, nesse caso, o contraditório e a ampla defesa são elementos extrínsecos à produção da prova, incidindo quando a prova já foi formada. Funcionam como uma chancela de legitimidade, ao possibilitar que a defesa conteste eventuais equívocos na colheita da prova concebida pela polícia judiciária. Ademais, a defesa não necessariamente atacará o modo de produção da prova, podendo se limitar a pedir a aplicação da menor pena possível ao acusado. A prova em si é a colheita da informação, a captura dos dados, com respeito às eventuais exigências de autorização judicial (cláusula de reserva de jurisdição), de forma (ex: lavratura de auto circunstanciado na busca e apreensão domiciliar, degravação da conversa telefônica, confecção de laudo de perícia ad hoc por dois peritos nomeados) e de método (ex: inexigibilidade de autoincriminação etc).

Daí o ensinamento da doutrina:

Embora seja recorrente na doutrina a expressão de que não se produz prova no inquérito policial, tal expressão apresenta-se falaciosa, uma vez que a quase totalidade dos elementos probatórios carreados às ações penais são identificados ou produzidos no curso da investigação criminal na fase pré-processual, ou seja, no curso do inquérito. Ou seja, as tão conhecidas “operações policiais”, em sua grade maioria, não são nada além do que uma fase de um inquérito policial, destinada à arrecadação de provas e indícios de autoria e materialidade de infrações penais. (…) É perceptível por mera observação empírica, a qualquer operador na seara do Direito Penal, que o inquérito policial é o mais importante instrumento de colheita de provas de infrações penais[4].

Com efeito, a obtenção da informação pelo delegado de polícia na primeira etapa da persecução penal não é ontologicamente melhor ou pior do que aquela feita pelo juiz na segunda fase da persecutio criminis. A diferença reside tão só na desnecessidade de a polícia judiciária comunicar previamente a defesa sobre a diligência policial (de maneira a preservar o elemento surpresa imprescindível para a eficácia da investigação) e na facultatividade de participação da defesa no inquérito policial. Essa peculiaridade nada tem a ver com a garantia de direitos do imputado e com o caráter democrático da persecução penal, que permanecem incólumes desde essa etapa policial até a fase processual. O objetivo é somente, respeitando as garantias constitucionais, dotar o inquérito policial de um mínimo de efetividade, para que o Estado-investigação possa se reerguer face à situação de desnível provocada pelo próprio criminoso. Afinal, fossem os atos investigatórios precedidos de aviso anterior ao investigado, seria praticamente inviável a localização de fontes de prova e a produção do material probatório.

Se os aspectos teóricos sobre o valor probatório dos elementos produzidos no inquérito policial são de clareza meridiana, também saltam aos olhos as evidências práticas. Isso porque, grosso modo, apenas as oitivas feitas em sede policial não contam com contraditório postergado, sendo repetidas em juízo e portanto qualificadas como elementos de informação. Praticamente todos os demais elementos, informações extraídas de pessoas e coisas mediante diligências policiais (antecedidas ou não de ordem judicial), são provas. Até porque a maior parte dos delitos deixa vestígios, sendo indispensável colheita da prova pericial (artigo 159 do CPP).

Nesse panorama, fácil entender porque é o inquérito policial o responsável por fornecer o lastro probatório suficiente não unicamente para o recebimento da denúncia (justa causa), mas também para a própria condenação (prova para além da dúvida razoável).

Vale ressaltar também que persistir com a reducionista afirmação de que o inquérito policial traduz peça meramente informativa incentiva profissionais incautos a não se preocuparem com a atuação na fase policial, pois supostamente não teria qualquer relevância para o desfecho do processo penal. E assim agindo a defesa, quando abrir os olhos no adiantar da persecução penal, com as provas devidamente produzidas, pode ser tarde demais para a adoção de qualquer estratégia defensiva minimamente eficaz.

Em adição, como grifa a doutrina:

Não se pode esquecer que, com base nos atos do inquérito, se pode retirar a liberdade (prisões cautelares) e os bens de uma pessoa (medida assecuratórias), ou seja, com base nessa peça “meramente informativa” (como reducionistamente foi rotulada ao longo de décadas), podemos retirar o “eu” e “minhas circunstâncias” (Ortega y Gasset)…

Sem falar que também serve para condenar pessoas… (…) Alguém vai seguir com o discurso de peça meramente informativa à luz dessa realidade?[5].

Logo, é totalmente equivocada a afirmação de que o “inquérito policial produz apenas elementos informativos” ou que o “inquérito policial é mera peça informativa”. Nada obsta que a polícia judiciária produza provas no curso da investigação, o que significa dizer que o inquérito policial possui valor probatório e deve ser olhado com atenção pelos atores jurídicos da persecução penal, especialmente a defesa.


[1] A palavra inquisitivo é impregnada de sentido pejorativo por remeter à Santa Inquisição, procedimento utilitarista da Idade Média que tratava o investigado como mero objeto destituído de direitos. É preferível o termo persecutório, que melhor define a fase investigativa conduzida pela polícia judiciária (órgão imparcial), que concilia a oficiosidade, discricionariedade e o sigilo interno parcial e externo do inquérito policial (garantindo o elemento surpresa necessário à efetividade da colheita inicial de provas) com o tratamento do investigado como sujeito (detentor de um plexo de direitos fundamentais). Se mantido o vocábulo inquisitório por mero respeito ao costume, não deve ser lido com a pejorativa acepção de desrespeito a direitos.
[2] CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. Há sim contraditório e ampla defesa no inquérito policial. Revista eletrônica Consultor Jurídico, nov. 2016. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-nov-01/academia-policia-sim-contraditorio-ampla-defesa-inquerito-policial>. Acesso em 1º/11/2016.
[3] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. Salvador: Juispodivm, 2015, p. 51.
[4] ANSELMO, Márcio Adriano. Inquérito Policial como Instrumento de Obtenção de Provas. In: CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de; MACHADO, Leonardo Marcondes; ANSELMO, Márcio Adriano; GOMES, Rodrigo Carneiro; BARBOSA, Ruchester Marreiros. Investigação Criminal pela Polícia Judiciária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016, p. 63-67.
[5] LOPES JÚNIOR, Aury. Nulidades e ilicitudes do Inquérito não contaminam o Processo Penal? In: Revista eletrônica Consultor Jurídico. Dez. 2014. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2014-dez-19/limite-penal-nulidades-ilicitudes-inquerito-nao-contaminam-processo-penal>

Autores

  • Brave

    é delegado de Polícia Civil do Paraná, mestrando em Direito pela UENP. Professor da Escola da Magistratura do Paraná, da Escola do Ministério Público do Paraná, da Escola Superior de Polícia Civil do Paraná, além de cursos preparatórios e de pós-graduação. Coautor do livro Investigação Criminal pela Polícia Judiciária. Redes sociais: @profhenriqueh

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