Observatório Constitucional

O "presidencialismo de coalizão" revisitado na obra de Sérgio Abranches

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26 de novembro de 2016, 9h36

Os problemas gerados pelo sistema do voto proporcional para a Câmara dos Deputados e a fragmentação partidária têm sido tratados pelo Direito Constitucional brasileiro predominantemente dentro dos temas da separação de poderes e do governo representativo. A combinação daquelas duas características com o presidencialismo produziria tensões e acomodações entre os poderes Executivo e Legislativo que seriam as responsáveis por diversos dos nossos problemas de governo, entre eles a ineficiência do sistema de freios e contrapesos e o paroquialismo na representação parlamentar e a instabilidade e a inoperância do governo[1]. Essa ênfase sobre o impacto do sistema proporcional e do multipartidarismo para o funcionamento do nosso sistema presidencialista de governo tem raízes históricas: a constatação de que instituímos um regime de governo único no mundo chamado “presidencialismo de coalizão”[2]. Conceituado como uma combinação de sistema de representação proporcional para a distribuição de cadeiras entre os partidos na Câmara dos Deputados, adesão ao multipartidarismo autorregulado, “presidencialismo imperial” e montagem de ministérios baseados em coalizões partidárias[3], o presidencialismo de coalizão atrai quase automaticamente para si e para a subdisciplina da separação de poderes as discussões sobre os elementos que o compõem.

Contudo, acredito que o conceito pode servir de instrumento para a análise de um outro problema das instituições políticas brasileiras, que não está ligado às relações dos poderes entre si, mas às relações entre Estado e sociedade. O economista Samuel Pessoa, em palestra proferida no Instituto Fernando Henrique Cardoso em março de 2016[4], chamou a atenção para esse problema na relação entre Estado e sociedade no Brasil:

“Tem alguma coisa, e a ciência política ainda não entendeu isso, a gente ainda não entende muito bem isso, mas tem alguma coisa no funcionamento das instituições brasileiras que faz com que nossas instituições, em particular, o Congresso Nacional brasileiro, seja particularmente sujeito às pressões dos grupos de interesse. Os grupos de interesse, a lógica da ação coletiva, que é um grupo de interesse que tem muito poder quando ele se organiza para aprovar no Congresso Nacional benefícios próprios, porque o custo desses benefícios próprios é um aumento muito pequenininho da carga tributária que incide sobre todo mundo, é muito difícil defender os interesses difusos, e o resultado disso é um aumento da carga tributária, é um aumento do gasto público em função dos interesses de grupos da sociedade, quer dizer, esse é um problema geral nas democracias, né, não é um problema da nossa democracia. Mas quando a gente olha a estrutura de gastos do Estado brasileiro, a renda per capita nossa, e compara com os nossos ‘peers’, a impressão que dá é que tem alguma coisa, que não tá muito bem compreendida, eu já estimulei cientista político a esse tema inúmeras vezes, e até agora não consegui nenhuma resposta muito boa, já pensei um pouco esse problema, não tenho muita… um diagnóstico, mas tem alguma coisa no funcionamento do nosso sistema, eu acho que político, ou, nas nossas instituições em gerais, que faz com que o nosso Estado, o Tesouro Nacional seja muito mais sujeito à lógica da ação coletiva do Mancur Olson do que outros Estados. A soma dessas duas coisas, ou seja, eleitor mediano querendo aumento de carga tributária pra financiar transferência pra si, e os grupos… inúmeros grupos de pressão que existem colocando isenções e benefícios pra si… (…) ou seja, cada uma daquelas isenções teve um grupo de pressão que fez alguma pressão no Congresso Nacional e tal e votou uma isenção e que todo mundo paga essa isenção. Então, exemplos como esse abundam, são imensos (…)”[5].

A fala de Pessoa trata da quase incapacidade das instituições políticas de oporem resistência às demandas por privilégios e benefícios vindas de grupos de pressão da sociedade, de onde pode resultar o aumento desmedido dos gastos públicos, da carga tributária e das desigualdades socioeconômicas, um problema que está na raiz, por exemplo, da PEC 241, a famosa PEC do Teto de Gastos. A exposição de motivos da PEC afirma o seguinte:

“O governo, em vez de atuar como estabilizador das altas e baixas do ciclo econômico, contribui para acentuar a volatilidade da economia: estimula a economia quando ela já está crescendo e é obrigado a fazer ajuste fiscal quando ela está em recessão. A face mais visível desse processo são as grandes variações de taxas de juros e de taxas de desemprego, assim como crises fiscais recorrentes. (….)

Nos últimos anos, aumentaram-se gastos presentes e futuros, em diversas políticas públicas, sem levar em conta as restrições naturais impostas pela capacidade de crescimento da economia, ou seja, pelo crescimento da receita. (…) De fato, nossa experiência ensinou que o processo descentralizado e disperso de criação de novas despesas gerou crescimento acelerado e descontrolado do gasto. Isso posto, faz-se necessário a introdução de limites ao crescimento da despesa global, ao mesmo tempo em que se preservam as prerrogativas dos poderes constituídos para alocarem os recursos públicos de acordo com as prioridades da população e a legislação vigente”[6].

No trecho da exposição de motivos transcrito fica claro que a imposição de um teto é, em alguma medida, uma correção econômica imposta ao sistema político, ou seja, ao governo, de onde acredito ser fecundo analisarmos o singular conceito para o nosso sistema de governo, o “presidencialismo de coalizão”, no seu nascimento, com o fim de ver se é possível extrair da discussão que forjou aquela expressão algum esclarecimento sobre onde estariam as falhas do nosso sistema que o tornam tão frágil às pressões sociais.

Surgido em artigo publicado pelo cientista político e sociólogo Sérgio Abranches em 1988, o conceito de “presidencialismo de coalizão” aparece no contexto de uma discussão maior, a dos problemas provocados pela transição da ditadura à democracia, que estavam, por sua vez, ligados à organização de uma institucionalidade política que fosse ao mesmo tempo estável e legítima. No artigo de 1988, o autor optou por concentrar sua análise da questão na dinâmica das relações entre os poderes Executivo e Legislativo. O seu foco principal parecia ser o de como organizar um regime[7] que conseguisse tratar adequadamente as múltiplas e contraditórias demandas de uma sociedade heterogênea, o que seria condição da legitimidade do regime[8], sem, com isso, produzir uma instabilidade de tal magnitude que levasse ao excessivo desgaste do eixo gravitacional da ordem já estabelecida, no caso, as lideranças partidárias e o presidente da República[9]. Para o autor daquele artigo, as demandas da sociedade heterogênea cresceriam exponencialmente em razão do fim do período de repressão dos conflitos de interesse (ditadura militar). Já os problemas relacionados à autoridade e à estabilidade seriam potencializados pela falta de um consenso sólido sobre a nova ordem política que fosse além do vago compromisso com “a transição democrática”[10]. Esse é, na minha opinião, o problema que o texto de Abranches elabora e para cuja solução aposta na experiência histórica brasileira, com o “presidencialismo de coalizão”.

Antes de entrar na análise da solução defendida por Abranches, é preciso apontar uma premissa de ordem sociológica essencial para compreender a sua posição. Para aquele autor, a legitimidade da nova ordem política dependerá do preenchimento de dois requisitos. O primeiro é o atendimento das demandas dos grupos de interesse ou, no caso de isso não ser inteiramente possível, contê-las “legitimamente”[11]. O segundo é a adaptação da institucionalidade político-constitucional à realidade socioeconômica do país, o que o autor chama de “institucionalidade concreta”[12]. Tentando traduzir nas minhas próprias palavras, é preciso que o sistema político se legitime em dois níveis: um, racional e consciente, no qual as pessoas reconheçam no sistema capacidade para atender às suas demandas, ou, pelo menos, para tratá-las e, se for o caso, negá-las de forma reconhecida como compreensível; outro, sociológico e inconsciente, no qual a legitimidade é a adaptação entre estrutura social e regra institucional. Ambas as premissas são comuns nas reflexões sociológicas sobre o Brasil[13], embora sejam questionáveis[14].

Com base nessas premissas, o autor propõe, como solução para aqueles problemas, a opção pelo sistema de voto proporcional para a Câmara dos Deputados e o multipartidarismo, no âmbito de um presidencialismo imperial à americana, opções que o autor identifica como as bases da tradição republicana brasileira[15]. Esse modelo teria a legitimidade sociológica, porquanto não se firmou “arbitrária ou fortuitamente ao longo de nossa história”, mas “expressa necessidades e contradições, de natureza social, econômica, política e cultural, que identificam histórica e estruturalmente o processo de nossa formação social”[16]. E teria, também, a legitimidade racional, que é o atendimento, ou a contenção reconhecidamente legítima, dos interesses sociais, culturais e econômicos dessa nossa sociedade heterogênea[17].

O núcleo do artigo é dedicado à defesa do sistema proporcional combinado com o multipartidarismo sem correções contra as críticas que já então se levantavam. São aproximadamente nove páginas recorrendo a análise comparativa, com a utilização de exemplos de países europeus e da República de 1946[18]. O autor afirma que a combinação de sistema proporcional com multipartidarismo traz os benefícios exigidos pela necessidade de legitimação ao mesmo tempo em que não gera os riscos de fragmentação de que seus detratores o acusam[19]. A dinâmica eleitoral por si só seria suficiente para conter a fragmentação parlamentar, ou partidária[20]. Não apresentando esses riscos, o sistema proporcional pode conviver com um multipartidarismo livre de qualquer mecanismo de correção[21].

A dimensão textual da defesa do sistema proporcional sem a adoção de regras de controle da fragmentação, associada à preocupação também textual com a legitimidade, já abordada acima, levam-me a defender que o artigo de Abranches foi, mais do que uma tentativa de descrever as relações entre os poderes no regime político brasileiro, a defesa da opção por uma institucionalidade capaz de absorver ao máximo as demandas mais plurais possíveis da sociedade heterogênea de então, alimentando, assim, a sua própria legitimidade e levando, por isso mesmo, à consolidação da sua estabilidade. Uma proposta de regime, portanto, que respondesse aos desafios da transição de uma ordem autoritária para uma ordem democrática. Essa proposta, de fato, atendia às necessidades da fase de transição e, talvez por acharem isso, os constituintes mantiveram mais ou menos o que foi defendido por Abranches[22].

Assim, o texto de Abranches revela uma concepção de organização política voltada para o relacionamento com os cidadãos e os grupos sociais organizados, e não tanto para o relacionamento dos poderes entre si. O sistema proporcional autorregulado, defendido pelo cientista social, foi desenhado para ser permeável à sociedade e tratar, generosamente, suas demandas. E esse é o aspecto do texto de Abranches que parece que tem sido deixado de lado nas análises constitucionalistas: a possibilidade de que tenhamos desenhado um sistema de governo propositadamente aberto a todas as influências sociais e, por isso mesmo, incapaz de resistir a elas. Evidentemente, essa já débil incapacidade de resistência só piorou com o aumento da fragmentação partidária, mas isso não muda o fato de que o sistema foi feito para isso.

Alguém poderia argumentar que é bom que o sistema político seja pensado dessa forma, isto é, para extrair da sua resposta às demandas sociais, a legitimidade que ele tanto precisa. Isso, no entanto, é mais verdadeiro para a fase de transição, durante a qual Abranches escreveu o texto, do que para o momento atual, no qual a sociedade consegue articular demandas mais universais e menos setoriais, como a melhoria dos serviços públicos, o crescimento econômico e a contenção do aumento da carga tributária. E é aqui que pode estar o problema: será que o Estado brasileiro será capaz de impor alguma resistência às demandas setoriais e, com isso, viabilizar o atendimento a essas demandas globais sem reformar sua organização política? A releitura de Abranches, sob a ótica aqui proposta, pode ter a resposta.

Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).


[1] Sérgio Antônio Ferreira Victor. Presidencialismo de coalizão. Exame do atual sistema de governo brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 90 e 95. O livro é uma dissertação de mestrado e contém alentada análise e discussão do presidencialismo de coalizão da perspectiva constitucionalista.
[2] Sérgio Henrique Hudson Abranches. Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro, in Dados. Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro. Vol. 31, n. 1, 1988, p. 5-34.
[3] Sérgio Henrique Hudson Abranches. Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro, in Dados. Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro. Vol. 31, n. 1, 1988, p. 10 e 21.
[4] Evento Crescimento, distribuição de renda e democracia: em busca de um novo modelo, informações disponíveis em http://fundacaofhc.org.br/debates/crescimento-distribuicao-de-renda-e-democracia-em-busca-de-um-novo-modelo e http://fundacaofhc.org.br/videos/crescimento-distribuicao-de-renda-e-democracia-em-busca-de-um-novo-modelo.
[5] Transcrição feita por mim do vídeo da palestra disponível no endereço https://www.youtube.com/watch?v=_xXho1BL9po&t=828s.
[6] Exposição de Motivos Interministerial 00083/2016 MF MPDG, de 15 de junho de 2016.
[7] Abranches, p. 9.
[8] Abranches, p. 10.
[9] Abranches, p. 9.
[10] Abranches, p. 9.
[11] Abranches, p. 28.
[12] Esse pressuposto também se revela em afirmações como “as regras de representação e o sistema partidário expressam essa pluralidade; não a podem regular, simplificando ou homogeneizando aquilo que é estruturalmente heterogêneo (…). Isto indica, precisamente, que a regra institucional adapta-se à realidade social, garantindo, assim, a representatividade e a estabilidade da ordem política”, Abranches, p. 21 (destacamos).
[13] Assim, por exemplo, em 1997 Roberto Damatta publicava, em Carnavais, Malandros e Heróis, uma reflexão sobre a contradição entre regras institucionais e práticas sociais no Brasil.
[14] A questão da adaptação entre regras e realidade social é questionável a partir da própria concepção do que é o Direito, isto é, da questão sobre se é possível derivar ou não o “dever-ser” do “ser”. Já a questão do atendimento das demandas da sociedade com o fim de produzir legitimidade política é apenas uma opção ideológica entre várias outras possíveis.
[15] Abranches, p. 10.
[16] Abranches, p. 10.
[17] Abranches, p. 21.
[18] Abranches, p. 10-19.
[19] “Na Assembleia Nacional Constituinte existem quatro partidos com mais de 5% de cadeiras na Câmara, tornando o nosso multipartidarismo rigorosamente médio e desmentindo a preocupação exagerada, hoje corrente, com a ‘proliferação excessiva de partidos’”, Abranches, p. 12.
[20] Abranches, p. 13.
[21] “Ao contrário, a tentativa de controlar a pluralidade, reduzindo artificialmente o número de partidos representados no parlamento e aumentando as distorções distributivas na relação voto/cadeira, pode tornar-se um forte elemento de deslegitimação e instabilidade”, Abranches, p. 14.
[22] Ver Sérgio Antônio Ferreira Victor, p. 88.

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