Pai da revolução

Advogado especialista em autodefesa, cubano Fidel Castro morre aos 90 anos

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26 de novembro de 2016, 12h30

Líder da Revolução Cubana e governante do país por 49 anos, Fidel Castro morreu na madrugada deste sábado (26/11), em Havana. Ele tinha 90 anos.

Ismael Francisco
Antes de comandar a Revolução Cubana, Fidel foi advogado de pessoas pobres.
Ismael Francisco

A morte do “comandante”, como era chamado, foi anunciada pelo seu irmão e sucessor na presidência de Cuba, Raúl Castro, em pronunciamento na televisão estatal.

"Em cumprimento da expressa vontade do companheiro Fidel, seus restos mortais serão cremados", afirmou Raúl, demonstrando emoção ao ler o breve comunicado.

Antes de liderar a revolta contra o governo de Fulgêncio Batista, Fidel estudou Direito na Universidade de Havana. Nos primeiros anos do curso, ele praticamente não assistia às aulas, preferindo aprofundar-se em livros e no movimento estudantil, como conta o jornalista Ignácio Ramonet no livro Fidel Castro – Biografia a Duas Vozes.  

No entanto, a partir do terceiro ano, a situação mudou, e Fidel Castro começou a dedicar-se aos estudos. Nessa época, ele chegou a matricular-se em três cursos (Direito, Direito Diplomático e Ciências Sociais), visando obter uma bolsa de estudos na Europa ou nos EUA. O futuro presidente de Cuba conseguiu terminar os dois primeiros, e ainda obteve um doutorado em Direito Civil.

Formado em 1950, Fidel passa a advogar para os pobres, mas seu principal cliente foi ele mesmo. Em dezembro daquele ano, o recém-formado e seu amigo Enrique Benavides foram acusados de participar de protestos estudantis contra o governo. Responsável pela defesa dele e de Benavides, Fidel proferiu um apaixonado discurso, no qual citou o clássico manifesto J'accuse, do escritor francês Émile Zola. “Fidel estava estupendo, com uma oratória transbordante que cativou toda a sala”, recordou o amigo em 2012. A argumentação foi eficaz, e os jovens foram absolvidos.

A sua mais célebre autodefesa, contudo, foi feita após o fracassado assalto ao quartel de Moncada, em Santiago de Cuba, em 1953. Já convencido de que a revolução era a única maneira de livrar o país do domínio dos EUA, Fidel Castro planejou tomar o posto militar acreditando que sua posição estratégica e seus armamentos seriam um importante ponto de partida para derrubar o ditador Fulgêncio Batista. Porém, soldados perceberam a movimentação dos rebeldes. Sem o fator surpresa, a ofensiva falhou, e o grupo foi preso.

Por isso, Fidel foi a julgamento em outubro de 1953, e ele caprichou na sua sustentação oral. A argumentação foi iniciada com uma crítica à violação de seu direito de defesa. “Nunca um advogado teve que exercer seu ofício em condições tão difíceis: nunca contra um acusado foram cometidas tantas esmagadoras irregularidades. Um e outro são neste caso a mesma pessoa. Como advogado, não pude nem sequer ver a denúncia e, como acusado, faz hoje 76 dias que estou preso encarcerado em uma cela solitária, total e absolutamente incomunicável, por cima de todas as prescrições humanas e legais.”

Em seguida, Fidel Castro explicou porque não buscou outro advogado para representá-lo. “Tive que assumir a minha própria defesa ante este tribunal por dois motivos. Um: porque praticamente fui privado dela por completo; outro: porque só quem tiver sido ferido tão profundamente e tenha visto a pátria tão desamparada e a Justiça tão aviltada pode falar em uma ocasião como esta com palavras que sejam sangue do coração e entranhas da verdade.”

A maior parte das quatro horas de sustentação oral foi usada para criticar o governo de Batista e opinar sobre os seis problemas de Cuba: o da terra, o da industrialização, o de moradia, o do desemprego, o da educação e o da saúde. A solução para esses imbróglios, segundo Fidel, passava pelas “cinco leis revolucionárias”: o restabelecimento da Constituição de 1940, a reforma agrária, o direito de os operários receberem 30% dos ganhos das empresas, o direito de os trabalhadores da indústria açucareira ganharem 55% das receitas das companhias, e o confisco dos bens daqueles que fraudaram o poder público.

Ao fim de seu discurso, o advogado não pediu sua liberdade, “como sempre fazem todos os letrados”. Isso não poderia ser requerido quando “meus companheiros estão sofrendo na ignominiosa prisão da Ilha de Pinos”, justificou, fazendo uma rara solicitação: “Enviem-me junto a eles para que eu possa compartilhar sua sorte, é inconcebível que os homens honrados estejam mortos ou presos em uma república que tem como presidente um criminoso e um ladrão”.       

Embora tenha agradecido aos juízes por terem permitido que se “expressasse livremente, sem coações mesquinhas” e dito que não guardava rancor deles, Fidel ressaltou que, mantendo livres os “verdadeiros culpados”, o Poder Judiciário teria sobre si uma “mancha sem precedentes”.

“E quanto a mim, sei que a prisão será dura como jamais foi para ninguém, cheia de ameaças, de ruim e covarde maldade, mas não a temo, como não temo a fúria do tirano miserável que tirou a vida de 70 irmãos meus”, alegou Fidel Castro, antes de encerrar sua defesa com a clássica frase que dá nome ao esse discurso: “Condenem-me, não importa, a história me absolverá.”

A riqueza poética da sustentação oral e a oratória inflamada de Fidel, entretanto, não serviram de nada: ele foi condenado a 15 anos de prisão. Inesperadamente, foi anistiado por Batista após quase dois anos, e exilou-se nos EUA e, depois, no México.

Ismael Francisco
Ao derrubar Fulgêncio Batista, Fidel inspirou gerações de revolucionários.
Ismael Francisco

Revolução Cubana
No país dos revolucionários Emiliano Zapata e Pancho Villa, Fidel conheceu um médico argentino chamado Ernesto Guevara — que posteriormente seria imortalizado como Che Guevara, devido ao uso constante dessa expressão. Lá, eles reorganizaram o movimento, e, em 1956, retornam a Cuba com um ataque planejado. Mais uma vez, a ação fracassou, e os revoltosos se retiraram para Sierra Maestra, onde começaram uma guerra de guerrilha. A revolução cresceu, chegou a 10 mil pessoas e, em 1º de janeiro de 1959, triunfou, derrubando Fulgêncio Batista.

Logo depois que Fidel Castro tomou o poder, Estados Unidos e Cuba entraram em rota de colisão. O pano de fundo era a Guerra Fria, que dividiu o mundo em duas áreas de influência: uma capitalista no Ocidente, para o Estados Unidos, e outra, socialista e ao leste, para a União Soviética. Em 1960, começou a imposição de sanções e, em 1962, após Fidel declarar o caráter socialista da revolução, foi decretado o embargo econômico total.

O bloqueio suspendeu todas as importações e exportações e o estabelecimento de qualquer tipo de atividade econômica de americanos em Cuba. Calcula-se que, com o embargo, os prejuízos econômicos sofridos por Cuba possam ter chegado a US$ 1 trilhão.

Também ocorreram ataques mais diretos dos EUA. Em abril de 1961, o governo de John F. Kennedy promove a invasão da Baía dos Porcos com 1.400 cubanos financiados pela CIA. No entanto, a ofensiva é rapidamente derrubada. A instalação de uma base de lançamento da URSS na ilha caribenha gerou, em 1962, a crise dos mísseis, na qual os soviéticos e americanos ficaram a um passo de lançarem ataques militares uns aos outros. Além disso, Fidel Castro sofreu diversas tentativas de assassinato arquitetadas pelos norte-americanos.

Enquanto a União Soviética existia, Fidel conseguiu manter um padrão de vida razoável aos moradores da ilha. Ele criou sistemas públicos de educação e saúde que geram frutos até hoje. Com um novo método, o país extinguiu o analfabetismo, de acordo com a Unesco. Já o foco em medicina preventiva fez com que Cuba atingisse taxa de mortalidade infantil de 4,2 por mil nascidos vivos e expectativa de vida de 79,07 anos — índices melhores do que os dos EUA.

Contudo, o colapso da União Soviética em 1991 agravou, e muito, a situação do país. Os anos 90 foram especialmente duros, com os cubanos tendo que se alimentar de gatos e cavalos e reaproveitar itens descartáveis como isqueiros e desodorantes, como mostrou o jornalista Humberto Werneck em reportagem para a Playboy.

Influência para latinos
A imagem de Fidel Castro para a esquerda, contudo, permanecia forte na virada do milênio. Conforme os países da América Latina foram elegendo presidentes mais preocupados com o social, o cubano ganhou uma espécie de posto de guru espiritual para líderes como Luiz Inácio Lula da Silva, Cristina Kirchner (Argentina), Rafael Corrêa (Equador), Evo Morales (Bolívia) e, especialmente, Hugo Chávez (Venezuela). Este, inclusive, ajudou a reanimar a economia cubana com troca de petróleo por médicos cubanos.

Dono de uma saúde de ferro, a situação de Fidel começou a piorar em 2006, quando enfrentou uma hemorragia intestinal durante uma viagem à Argentina. Em 31 de julho daquele ano, ele delegou temporariamente o poder a seu irmão Raúl. Em fevereiro de 2008, Fidel Castro renunciou oficialmente ao cargo de presidente cubano e, desde então, era o principal conselheiro do Partido Comunista e do novo governo.

Oficialmente, Fidel dizia apoiar as reformas econômicas de Raúl, como o restabelecimento das relações diplomáticas com os EUA, iniciado no fim de 2014. Todavia, ele deixava claro que não confiava nas intenções de seus vizinhos. Quando o presidente dos EUA, Barack Obama, reabriu a embaixada do país em Cuba, Fidel subiu o tom e acusou os norte-americanos de ignorarem as agressões que cometeram. “Não precisamos que o império nos dê nada de presente”, disse, sustentando que a ilha produzia tudo o que precisava.    

Legado polêmico
Uma das figuras mais polarizadoras do século XX, Fidel Castro deixa um legado que será interpretado de acordo com a lente ideológica de cada um. Para a esquerda, ele foi uma inspiração, mostrando que era possível fazer uma revolução socialista e combater a influência dos EUA na América Latina. A criação de uma sociedade igualitária, e com serviços públicos de qualidade, também é considerado um feito por seus admiradores.

Na visão da direita, porém, Fidel foi um ditador que restringiu a liberdade de expressão no país, perseguiu desafetos e assassinou opositores ao regime. Ele também é acusado de barrar o acesso à modernidade aos 11,3 milhões de cubanos, que vivem com carros velhos, internet lenta e equipamentos obsoletos. Com informações da Agência Brasil.

Clique aqui para ler a íntegra da autodefesa de Fidel em 1953.

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