Opinião

Até quando vamos permanecer na defesa de um modelo decisionista?

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24 de novembro de 2016, 6h28

Debate-se aqui a fundamentação trilhada por Estefânia Côrtes na publicação A possibilidade de limitação dos poderes instrutórios do juiz pelos negócios jurídicos processuais.

De acordo com Estefânia Côrtes, “a busca da verdade no processo com a finalidade de reconstruir o acontecimento real dos fatos, dentro do possível é um meio para que se alcance uma decisão justa”. E “por conta desse ideal, os poderes instrutórios do magistrado (…) representam uma atuação estatal publicista em nome do devido processo legal”. Sobre esta sua conclusão, correlaciona com a defesa do ativismo judicial dentro do processo e com a determinação judicial oficiosa para a produção de uma prova. Observemos então que quando a autora fala de busca da verdade no processo relaciona com a atividade do juiz, ou seja, atribui à função judicial.

Começo então pela polêmica afirmação da verdade no processo. Nos termos expostos por Estefânia, parece-me que a apontada relação entre “verdade”, “justiça” e “processo” é tão falsa quanto aquela existente entre a cor azul e o céu. Sou questionadora desse binômio “verdade-justiça”. As regras institucionais não priorizam a verdade, tanto é assim que não se admite mais a tortura para obtê-la. Prioriza-se as garantias!

Outra questão relevante é a quem cabe aportar provas ao processo. É a atividade do juiz voltada para a “busca da verdade”? Só há “justiça” com a “verdade alcançada pelo juiz”? Existem tantas “justiças” e “verdades” quanto pessoas definindo-as. Há uma diferença ontológica entre axiologia e deontologia e a autonomia/imperatividade do Direito não pode ser fragilizada por argumentos morais ou políticos. Do contrário, estaremos estimulando “solidarismos” e “decisionismos”.

Luigi Ferrajoli avesso a um processo decisionista o relaciona àobtenção de uma verdade substancial e máxima, fundada em valorações, perseguida discricionariamente, cujo caráter avaliativo das hipóteses acusatórias exige, além de provas, juízos de valor não contestáveis pela defesa, como a “justiça” e a “verdade”. Notemos que a simples possibilidade do julgador superior revogar a decisão inferior mostra que a verdade é um valor relativo. O decisionismo costuma ser solidário com o método inquisitório voltado à busca da verdade substancial.

Aquele modelo substancialista/decisionista baseia-se no sentido lato (ou de mera submissão) da garantia de submissão à jurisdição . Uma vez escolhido submeter um conflito ao Judiciário, a Constituição brasileira exige que tal garantia seja lida em seu sentido estrito que supõe a forma acusatória/dispositiva de processo.

Em contraposição, a linha apegada à irrestrita vigência da Constituição e da ordem jurídica vigente que com ela esteja de acordo, louva o juiz comprometido com a Constituição e as garantias constitucionais por ela asseguradas, não com valor, coisa ou pessoa distinta.  Oposto ao modelo decisionista de processo desenhado por critérios substancialistas e discricionários no bojo de um método inquisitório, o modelo garantista oferece um processo moldado pela legalidade (constitucional) por meio do modelo acusatório. Neste, além da validade dos provimentos do Poder Judiciário não residir no valor político do órgão Judicante nem no valor intrínseco da justiça de suas decisões, o aporte das provas ao processo é institucionalmente confiado a partes distintas e em conflito por serem portadoras de interesses antagônicos, ou seja, é atividade própria do ofício destas.

Concluí que a autora compartilha da concepção correspondentista segundo a qual a realidade externa existe e constitui o critério de referência que determina a veracidade ou falsidade dos enunciados que dela se ocupam.

Não sei, tal qual Ziel Ferreira Lopes e Lúcio Delfino (Streck, Fonseca Costa, Kahneman e Tversky: todos contra o ativismo judicial probatório de Michele Taruffo), o quanto é útil insistirmos em uma teoria jurídica fundada em uma concepção semântica de verdade como a subscrita por Taruffo, tampouco na ideia de existência de uma verdade absoluta à espera do encontro com o juiz investigador. Entendo que a única verdade sobre a qual se pode discorrer em relação ao embate processual é somente aquela resultante da possibilidade do contraditório entre as partes, (se é que assim se pode falar de verdade).

Ainda, afirma Estefânia que o poder instrutório do magistrado representa uma atuação estatal publicista em nome do devido processo legal. Mas sua iniciativa deverá ser “somente” complementar e subsidiária. Nesse tocante, lembramos que a semente do devido processo legal plantada pela Magna Carta de 1215 representa uma conquista dos barões ingleses contra decisões reais (em vista da onerosa carga tributária cobrada em seu reinado), ou seja, contra o abuso do poder. A defesa da discricionariedade judicial existente na alegada necessidade de instrução adicional a justificar a iniciativa probatória judiciosa contradiz o conteúdo jurídico do devido processo legal (ou como também é designado, la defensa en juicio).

O devido processo legal precisa ser visto desde a ótica do cidadão, do jurisdicionado, como uma garantia que impõe limites ao poder! Serve de base para a participação da sociedade em concretizar seus direitos fundamentais pelo processo, jamais fugindo para a consciência isolada de um bom e justo julgador ou para poderes instrutórios oficiosos.

Quando a doutrina usa o devido processo legal para fundamentar juridicamente a iniciativa instrutória do juiz perde de vista que o processo é, em sua essência, uma garantia constitucional do cidadão servível para este legitimar a formação do provimento jurisdicional com sua participação. Do contrário, estar-se-á olhando o processo pela lente do “processo social” e do “autoritarismo”.

Mas nos encontramos em um Estado Constitucional e Democrático de Direito no qual tal atividade complementar sempre afetará direito probatório da parte e sempre prejudicará um dos interesses defendidos no processo.

Ensina Fermín Cantero que como o intérprete já antevê o resultado possível de sua pesquisa, não poderá determinar provas, ainda que adicionais, tendo em vista a impossibilidade psicológica de não possuir hipóteses acerca do resultado da prova. Pode-se com isso afirmar também que o juiz determina a prova de ofício numa busca mental de confirmação de uma hipótese por ele formulada. Defender esta atividade ofíciosa pelo desconhecimento do resultado da prova não viola a imparcialidade do juiz é insustentável porque o juiz, mesmo não sabendo quem o resultado da prova beneficiará, possuirá sempre uma ideia sobre a potencialidade de seu resultado útil.

Oportunas são as lições de Eduardo José da Fonseca Costa quando conclui que o juiz que se utiliza do expediente da prova de ofício assim o faz porque acometido por uma dúvida, pois, caso contrário, já sentenciaria.

A prova de ofício só pode beneficiar aquele que tem o ônus da prova e dele não se desincumbiu. No caso da defesa direta e quando o ônus probatório permanecer ao autor, por exemplo, optando o juiz por determinar a produção da prova ao invés de julgar improcedente, só há três possíveis resultados: (ii.1) a prova beneficia o autor, (ii.2) a prova beneficia o réu ou (ii.3) a prova é inconclusiva. Diante disso, quando beneficiar o réu ou for inconclusiva, o julgamento terá que ser pela improcedência, o que já era pronunciável antes da determinação instrutória oficiosa. Apenas quando beneficiar o autor (no caso da defesa direta e ônus probatório para o autor) é que o juiz poderá proferir sentença em sentido diverso daquele já pronunciável antes da prova de ofício. Se é impossível não prever hipóteses sobre o resultado da produção probatória, já se sabe, perfeitamente, quem será beneficiado.

O estudo empírico voltado à influência das ilusões cognitivas em decisões judiciais conduzido por Chris Guthrie, Jeffrey J. Rachlinski e Andrew J. Wistrich fortalece a conclusão de que, sendo previsíveis os resultados, resta violada a imparcialidade do juiz. Em se tratando das propensões egocêntricas, demonstra que as pessoas se engajam em buscas mentais confirmatórias por uma teoria que elas querem acreditar. Resta demonstrada que a naturalidade humana e a inconsciência com a qual poderá o juiz valorizar muito mais o resultado de uma prova por ele determinada do que aquele advindo de uma prova requerida pela parte. Essa tendência egocêntrica, por exemplo, pode ser vista em casos nos quais o juiz indefere requerimento instrutório da parte “porque inútil”, mas determina oficiosamente a produção de uma outra prova que entende útil. A conduta instrutória de um magistrado que assim age condiz com a autovalorização de suas próprias habilidades.

A afirmação da autora de que uma citada visão sobre os negócios jurídicos processuais resulta do desconhecimento generalizado a respeito do assunto não decore de uma propensão egocêntrica? Esta cadência está presente em todos os seres humanos, inclusive em mim, porque as pessoas tendem a supervalorizarem-se e a autoapresentarem-se como superiores à média em termos de conhecimento e qualificações. Novamente: é inconsciente!

Assim, admitir a iniciativa instrutória oficiosa é assumir o risco de conferir à figura subjetiva do intérprete/juiz o papel de dizer se as provas dos autos conduzem à “certeza” que legitima o próprio procedimento. Quer dizer, é o juiz que, não se sentindo “convencido” do que está provado, assume a função de investigar os fatos para se certificar de como eles “realmente” ocorreram. A imparcialidade também resta violada quando o juiz pratica atividade própria do ofício das partes (imparTialidade).

Entendo incoerente defender, de um lado, o binômio “verdade-justiça” como finalidades do juiz (e do processo ao imputar este fim ao sujeito processual “juiz” por meio de seus poderes instrutórios oficiosos) e o ideal de obtenção de uma decisão justa que norteia os poderes instrutórios do magistrado sob uma atuação estatal publicista, e, de outro, a limitação desses mesmos poderes por convencionamento das partes. Como saber quando justificar seus posicionamentos pela via do publicismo ou do privatismo, pela filosofia política liberal ou social…? Isso decorre das incoerências resultantes de modelos mistos.

Num primeiro momento a autora defendeu que “o direito à prova é uma garantia fundamental do jurisdicionado e, não, do Estado-juiz”, mas admitiu que a “requisição oficiosa poderá ser admitida”, pois, em suas palavras, o direito à prova é uma garantia constitucional assegurada às partes somente numa análise “a priori”. Ainda, defendeu a busca da verdade no processo com a finalidade de reconstruir os acontecimentos reais dos fatos, mas isso só “dentro do possível”. Impressionou-me a facilidade para relativização dos institutos sempre que desejável.

Questiono porque não seria democrático e adequado para nosso Estado Democrático de Direito o modelo dispositivo/acusatório. A Constituição Democrática de 1988 adotou o princípio político fundamental de que todo cidadão tem o direito de ser julgado por um juiz que não se envolva com a acusação, o que é a síntese do sistema acusatório e do garantismo (oposto ao decisionismo). Juiz democrático não é aquela figura que acusa, produz prova, julga e executa – porque juiz democrático é juiz que decide. Por isso que devemos ter cuidado com o “princípio do livre convencimento motivado”.

Nas entrelinhas da defesa da autora parece-me reside a consciência do velho autoritarismo, contra o qual até mesmo o modelo cooperativo defendido no texto e no novo CPC rechaça parte da premissa de um processo sem protagonismos (para partir do ponto de vista da própria autora). Além disso, entendo inconstitucionais os poderes instrutórios oficiosos previstos no artigo 370, e por conseguinte, não estou de acordo com qualquer posicionamento que negue ser a atividade confirmatória própria somente do ofício das partes pois tem outras prioridades que não o processo como garantia de debate. Hugo Botto Oakley (Inconstitucionalidad de las medidas para mejor proveer) muito nos ensina sobre o tema.

Indo além, de pronto esclareçamos que as partes não “produzem prova dos fatos por elas próprias trazidos”! Entre aqueles que não se afastam integralmente da teoria da correspondência, para que intentemos debater dentro das mesmas premissas da autora, podemos citar explicações de William Santos Ferreira, Luigi Ferrajoli e Alvarado Vellosso. 

O primeiro nos diz que os fatos não são rigorosamente obtidos pelos meios de prova, mas cognoscíveis por estes. A conclusão obtida será de muito provavelmente ter ocorrido (ou não), estar ocorrendo (ou não) ou poder ocorrer (ou não).

Por sua vez, Luigi Ferrajoli assevera que a verdade processual fática resulta de uma ilação representada por uma inferência indutiva cuja conclusão é uma hipótese de probabilidade de causalidade entre o fato aceito como provado e o conjunto dos fatos adotados como probatórios..

Por aí também o garantismo processual de Adolfo Alvarado Velloso prefere o vocábulo “confirmação” cujo objeto é um fato suscetível de ser confirmado e significa reafirmar uma probabilidade, dar crédito, e não gerar certeza.

Por fim, registro ter como incorreto discutir o art.190 relacionado à instrução probatória desde o problema filosófico-político-ideológico da confirmação para alcançar conclusões técnicas-dogmáticas. Ou seja, a possibilidade da limitação das fontes ou dos meios de prova é compreensão que não deve resultar da análise sobre a importância da divisão de poderes dos sujeitos processuais, tampouco de ser referido dispositivo uma regra de cunho liberal (o que não nego ser). Considerando que o objeto da “confirmação” é um “fato”, o debate deve permear o exame de tais “fatos” cuja confirmação estará sendo negociada.

Tomando em mãos a lente correta sobre a discussão, que não é a que olha o papel do juiz e das partes no processo, mas a que mira a “(des)necessidade de confirmação de determinar tipo de fato”, temos alegações fáticas que deverão ser necessariamente confirmadas independentemente de terem sido negadas, como ocorre quando esteja comprometida a ordem pública. Poderão aí limitar a instrução a determinadas fontes ou meios de prova? Ademais, há situações que a lei autoriza a ausência de negações ou negações genéricas. E por fim, temos os fatos insuscetíveis de confirmação como os evidentes, os notórios, os presumidos legalmente e os negativos. Assim, parece-me ser correto tratar das possibilidades de negócios jurídicos processuais sobre confirmação fática quando a análise tiver em conta o fato do caso concreto.

*Texto atualizado às 9h26 do dia 24/11.

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    é advogada. Mestre em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Mestranda pela Universidade Nacional de Rosário – Argentina. Membro fundador da ABRADEP. Membro do IBDPub. Membro da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/SP.

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