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O que há de bom na proposta do novo regime fiscal?

22 de novembro de 2016, 7h05

Por Júlio Marcelo de Oliveira

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O país está vivendo uma grave crise fiscal. União, estados e municípios estão enfrentando dificuldades sérias para o custeio de suas despesas primárias. Só no âmbito da União, anuncia-se um déficit primário de cerca de R$ 170 bilhões em 2015 e um déficit nominal de quase 9% do PIB.

Uma das causas para essa dificuldade é o contínuo crescimento dos gastos primários do governo acima do crescimento da economia, impulsionado sobretudo pelos gastos previdenciários, que crescem cerca de 4% ao ano.

Uma boa medida em discussão é a PEC 241/2016, já aprovada na Câmara dos Deputados, que se transformou em PEC 55/2016 no Senado. Ela pretende estabelecer na Constituição Federal, ainda que temporariamente, uma regra de limitação dos gastos primários ao valor efetivamente pago no ano anterior, corrigido apenas pela inflação, medida pelo IPCA.

O principal ponto positivo dessa proposta é obrigar o processo de elaboração do orçamento a observar a dinâmica que deveria ser sua principal característica: a de momento do grande debate nacional sobre as escolhas de alocação dos escassos recursos arrecadados da sociedade. Hoje, costumeiramente, pela via do otimismo irreal, a receita prevista para o orçamento é superestimada de tal modo que o orçamento possa atender aos inúmeros pleitos de diversos segmentos organizados, especialmente a aprovação de planos de cargos e salários.

Entretanto, a execução orçamentária depende da arrecadação efetiva. Observado que a arrecadação não será suficiente para a realização de todas as despesas orçadas, determina a Lei de Responsabilidade Fiscal limitações ao empenho de despesas e à movimentação financeira, o chamado contingenciamento, conduzindo a possibilidade de execução de despesas aos limites estabelecidos pela meta fiscal em vigor e pelo comportamento real de receitas e despesas.

A dinâmica atual produz grande frustração nos diversos segmentos que se acreditavam contemplados com dotações orçamentárias e esperavam a realização das despesas previstas.

O contingenciamento recorrente deforma o processo orçamentário e o próprio processo democrático, pois retira do orçamento grande parte de seu papel de planejamento da ação governamental, de transparência das intenções do governo, de legítima peça de alocação de recursos públicos, sendo substituída a escolha legítima e democrática do parlamento pela discricionária e sem transparência do Poder Executivo sobre quais despesas serão contingenciadas e quais não. O contingenciamento é uma grande frustração decorrente de uma grande mentira que é o orçamento inflado.

Ao impedir que as previsões de receitas sejam infladas por estimativas otimistas, o limite de gastos impõe ao parlamento escolhas difíceis dentro desse limite, priorizando algumas despesas e dizendo não para outras, sem espaço para deixar ao Executivo essa tarefa certamente impopular, mas legítima e democrática. Melhor ainda é que essas escolhas difíceis serão debatidas e feitas em praça pública, na arena adequada, no Congresso Nacional, e não nos opacos gabinetes da Esplanada dos Ministérios.

Não será mais possível aprovar um plano de carreira para servidores já bem remunerados, ignorando que os recursos por esse plano consumidos serão subtraídos de outras áreas, como saúde, educação ou segurança. O limite de gastos primários explicita os trade-offs sempre presentes em matéria de gasto público.

Contido o orçamento no limite de gastos, a probabilidade de necessidades de contingenciamento reduz-se dramaticamente. Sem inchaço na previsão de receitas e despesas, o grau de realismo do orçamento aumenta muito, o que reforça seu papel de instrumento de planejamento e sua capacidade de induzir investimentos e comportamentos, reduzindo a discricionariedade do Poder Executivo na eleição de despesas a serem contingenciadas ou protegidas do contingenciamento.

Vale lembrar a lição de Robert Klitgaard no sentido de que muita concentração de poder discricionário, com pouca transparência, cria o ambiente ideal para corrupção. Pouco poder discricionário e muita transparência reduz o espaço para práticas de corrupção e de captura dos recursos disponíveis por grupos de pressão.

Além disso, o limite de gastos reclamará e imporá a resolução de problemas conhecidos e sempre adiados, dado que extremamente impopulares, como a já atrasada reforma da previdência.

Nada obstante suas virtudes, a limitação de gastos primários não resolve por si só os problemas fiscais do país. É apenas mais um instrumento, ao lado da LRF, para tentar impor uma disciplina fiscal à União, que sirva de ponto de partida para a superação da crise fiscal atual. Trata-se, portanto, de apenas um ponto de partida, não de um ponto de chegada.

Algumas críticas têm sido feitas à proposta, sobretudo no sentido de que ela retiraria recursos da saúde e da educação. Propostas alternativas foram apresentadas como substitutivas, tais como a revisão de renúncias fiscais, o retorno da CPMF, a implementação do Imposto sobre Grandes Fortunas, progressividade do Imposto de Renda, todas no sentido do aumento da arrecadação. Há ainda a proposta de limitação dos gastos financeiros com juros.

Em relação à saúde, a proposta em discussão prevê a antecipação para 2017 do percentual da Receita Corrente Líquida que seria devido apenas em 2020 (15%). No caso da educação, os recursos devidos ao Fundeb estão sendo excluídos dessa limitação de gastos, nela permanecendo, contudo os destinados ao ensino superior e ao ensino médio.

Registre-se, entretanto, que não estão sendo fixados limites para essas despesas, apenas um limite global, o que quer dizer que o legislador, ao votar o orçamento, poderá aumentar tais despesas, desde que reduzindo outras. Não procede, portanto, a afirmação peremptória de que a proposta de limitação de gastos primários retirará recursos da saúde e da educação, embora se possa conjecturar com razoabilidade que, em um cenário de crescimento de receitas acima da inflação, o que poderá ocorrer em algum momento, especialmente se a proposta for aprovada, o valor destinado à saúde poderia ser maior.

Não se olvide que, sem essa medida, dada a gravidade da atual crise fiscal, a perda de confiança dos agentes econômicos na capacidade do governo de gerenciar sua dívida e controlar seus gastos agravará a crise econômica e fiscal, com graves consequências como a aceleração da inflação, com muito maior potencial para reduzir recursos efetivos para a saúde e educação. A volta de um processo inflacionário intenso certamente será muito mais prejudicial para a saúde e para a educação, e para a ação governamental como um todo, que a aprovação de um limite de gastos primários. Vale dizer, há muito mais risco para a saúde e a educação, assim como para todas as demais despesas, com a rejeição ao teto de gastos que com sua aprovação.

As propostas alternativas apresentadas até o momento buscam resolver a crise fiscal pelo aumento da arrecadação. Quanto a isso, há duas considerações a se fazer. A primeira é que a carga tributária no Brasil já é muita alta vis a vis a qualidade dos serviços públicos oferecidos e o nível de desenvolvimento econômico do país. Nossa carga tributária já é comparável à de países escandinavos, e a sociedade brasileira não está disposta a aceitar aumentos da carga tributária para financiar o aumento continuo de despesas públicas, o que nos leva à segunda consideração: aumentar a carga tributária sem limitar o crescimento das despesas primárias vai apenas adiar e tornar mais difícil no futuro a solução da crise fiscal.

Qualquer alívio imediato trazido por um aumento de tributo ou instituição de nova tributação nos dará conforto imediato e ilusão de que os problemas impopulares e desagradáveis podem ser adiados. Se nossos gastos primários crescem estruturalmente acima da inflação, precisaríamos de uma carga tributária com igual capacidade de crescimento contínuo, o que é impossível.

Isso não quer dizer que muitas alterações tributárias não possam ou não devam ser feitas para tornar o sistema tributário mais justo, mais equitativo, mais eficiente, mais simples. Numa sociedade em que mais pessoas pagam impostos, todas podem pagar menos. Quanto menor a incidência individual da carga tributária, menor a disposição do contribuinte para a sonegação, maior a eficiência do sistema tributário. Portanto, reduzir renúncias de receitas, equalizar o Imposto de Renda da Pessoa Física com o da distribuição de lucros e dividendos para os sócios das pessoas jurídicas, melhorar a progressividade do Imposto de Renda, corrigir as distorções do ICMS etc. são todas medidas positivas que podem e devem ser adotadas, mas que nem por isso afastam a necessidade de se estabelecer um limite para o crescimento dos gastos primários.

Registre-se aqui a imensa dificuldade de se aprovar uma grande reforma tributária, sobre a qual nunca se chega a consenso algum. Reformas pontuais e graduais tem muito mais chance de serem aprovadas pelo Congresso Nacional pela simples razão de que é muito mais simples obter consenso e maioria ao redor de pequenas mudanças que de grandes e complexas alterações do sistema.

A proposta de limitação de gastos financeiros com pagamento de juros equivale a propor um calote da dívida pública a partir de certo nível de gasto com juros. Quem defende menor pagamento de juros, deve defender também menor endividamento, e por conseguinte, menor necessidade ou nenhuma necessidade de endividamento, o que pressupõe controle dos gastos primários e geração de superávits para redução da dívida. Quem consegue as melhores taxas de juros é justamente quem não precisa de empréstimos e que pode decidir tomá-los ou não por sua conveniência, não por necessidade.

Uma vez feita a dívida, ela tem de ser honrada. Moratórias e medidas de força resultam em piora do risco de crédito e aumento das taxas de juros por longos períodos, em vez de redução. Vide o exemplo da Argentina, até hoje vista com desconfiança, como mau pagadora.

Diz-se, ainda, que estabelecer um limite para os gastos primários por determinação constitucional seria desnecessário, bastaria o governo e o parlamento agirem de forma responsável na elaboração e execução do orçamento que tudo estaria resolvido, sem necessidade de “engessamento” do tema na Constituição.

De fato, se essa fosse nossa tradição, nosso paradigma, a medida seria desnecessária e certamente nem estaríamos enfrentando nenhuma crise fiscal. O fato é que nossa experiência histórica de Estado gastador nos trouxe até aqui. Se a responsabilidade fiscal fosse um valor plenamente aceito e praticado por nossa sociedade e nossos gestores, não precisaríamos de Lei de Responsabilidade Fiscal, bastaria aplicar suas diretrizes e respeitar seus limites independentemente de sua existência.

Da mesma forma, por que precisamos estabelecer limites mínimos para aplicação de recursos na saúde e na educação se todos nós estamos de acordo que essas duas áreas devem ser prioritárias?

Estabelecemos essas balizas na Constituição Federal e nas leis porque não confiamos em nossa capacidade de racionalmente produzir peças orçamentárias e executá-las de forma responsável, de forma a dar prioridade ao que é efetivamente prioritário, de forma sustentável ao longo do tempo. Os espaços de liberdade orçamentária parecem ser habilmente capturados por grupos organizados, sejam eles empresariais, em busca de subsídios e subvenções, sejam eles constituídos por servidores públicos de carreiras influentes, como auditores da receita, servidores do Congresso Nacional, parlamentares, magistrados, policiais etc, que conseguem aprovar com frequência bons planos de carreira e aumentos de remuneração.

A fixação de um limite constitucional para o crescimento das despesas primárias por um período razoável de pelo menos dez anos, podendo ser revisto a partir de então, passa uma mensagem extremamente positiva para os agentes econômicos, de confiança no comportamento e na responsabilidade do Estado na gestão de seus recursos e na sua capacidade de honrar e gerenciar sua dívida.

Confiança em economia é tudo. Essa confiança é que, de um lado, permitirá a redução das taxas de juros da dívida pública, pois, gastando menos, a pressão inflacionária do Estado é menor, e menor também é sua necessidade de financiamento. Quem menos precisa de dinheiro emprestado é quem ao final consegue pagar menos juros.

De outro lado, a confiança, aliada à queda da taxa de juros, produzirá a retomada dos investimentos, o crescimento da economia, a queda do desemprego, o aumento da renda e do consumo, o incremento da arrecadação que propiciará redução da dívida pública e seu alongamento, gerando um ciclo virtuoso tendente a manter a economia em crescimento sustentável, induzido por saudável disciplina fiscal.

Isso, contudo, requer não somente o estabelecimento do teto de crescimento das despesas primárias, mas também e sobretudo a reforma da previdência, que será discutida adiante. Sem a reforma da previdência, as despesas com essa função estatal continuarão crescendo ininterruptamente, o que poderá produzir eventualmente desrespeito ao limite fixado, com toda a perda de confiança que isso geraria. Por isso, repita-se, o limite de crescimento ao gasto primário é apenas o ponto de partida do inadiável ajuste fiscal. Será fundamental também reformar a previdência.

Como se diz popularmente, a necessidade é a mãe da criatividade. Provavelmente a limitação de gastos nos levará finalmente a discutir como melhorar a eficiência do gasto público e como reduzir ou eliminar gastos desnecessários. Por exemplo, será que realmente o país deveria gastar meio bilhão de reais por ano para manter um Superior Tribunal Militar que julga pouquíssimos processos a cada exercício? Será que esses recursos não poderiam ser alocados para outra finalidade mais premente?

Será que devemos gastar tão mais em ensino superior do que gastamos em ensino fundamental? Será que não podemos admitir a cobrança de mensalidades pelas universidades públicas, como fazem diversos países da Europa e deixar mais recursos livres para investir na capacitação e valorização dos professores do ensino fundamental, sem prejuízo da concessão de bolsas universitárias para os alunos de famílias de baixa renda. Será que a cobrança de mensalidades nas universidades públicas não contribuiria para melhorar sua gestão e sua eficiência, já que alunos que pagam se sentem autorizados a cobrar qualidade e presença dos professores em sala de aula? Será que essa renda auferida diretamente pelas universidades não incrementaria a tão necessária autonomia universitária e não as libertaria da constante submissão orçamentária ao Ministério da Educação?

Será que não conseguimos reduzir os custos dos medicamentos, hemoderivados e vacinas que compramos dos grandes laboratórios? Será que não deveríamos gastar menos em publicidade oficial destinada a falar bem do governo e passar a gastar mais em campanhas educativas, de prevenção a doenças e acidentes?

Não somos um país rico, somos um país pobre, que ainda tem grande parcela de sua população na miséria. Temos obrigação de sermos eficientes no gasto público, de fazermos mais com menos. Certamente a limitação constitucional do crescimento dos gastos primários contribuirá pelo menos para que tais discussões ocorram e com elas possamos amadurecer como país nas escolhas de como gastar o dinheiro de todos nós.

Que venha o novo regime fiscal!