Direito Civil Atual

Como os deficientes devem ser acolhidos por instituições de ensino particular

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21 de novembro de 2016, 9h36

O recente julgamento improcedente pelo Supremo Tribunal Federal da Ação de Inconstitucionalidade 5.357, proposta pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenen) contra dispositivos da Lei 13.146/15, suscita reflexões acerca do equilíbrio contratual propugnado pelo Direito Civil, incluindo-se as relações de consumo. Tendo restada assegurada a prestação de serviços educacionais por parte das entidades privadas para o aluno com deficiência[1], sem a cobrança de valores adicionais, de qualquer natureza, na matrícula, mensalidade ou anuidade, despesas serão inquestionavelmente necessárias. A proteção da pessoa deficiente encontra espeque no arcabouço legislativo pátrio[2], bem como na Constituição Federal, mas também estão amparadas por normas jurídicas brasileiras a livre iniciativa no campo educacional e a sua regular manutenção.

 O acesso dos alunos deficientes na seara educacional privada, em condições de igualdade, conforme disposto pelo artigo 1o, da dita Lei,  pressupõe a concretização de uma série de providências por parte dos estabelecimentos de ensino. O arigo 28, incisos I e II, do Estatuto da pessoa com deficiência, determina que os sistemas educacionais deverão ser sempre inclusivos em todos os níveis e modalidades, disponibilizando serviços e recursos que eliminem as barreiras e promovam a inclusão plena. O aprimoramento constante para a facilitação do ingresso e da permanência destes discentes é outra exigência legal em prol de  se alcançar o máximo desenvolvimento possível de seus talentos e habilidades físicas, sensoriais, intelectuais e sociais, em conformidade com as suas características, interesses e necessidades de aprendizagem[3].

Para a inserção do aluno deficiente, a entidade particular terá que providenciar os recursos intelectuais, humanos e materiais necessários para que a sua inclusão social e o exercício da cidadania sejam concretizados de forma efetiva. No que tange aos primeiros recursos, urge que seja elaborado projeto pedagógico que institucionalize o atendimento educacional especializado, assim como os demais serviços e adaptações razoáveis, para atender às características dos estudantes com deficiência e garantir, em condições de igualdade, o seu pleno acesso ao currículo, promovendo a conquista e o exercício de sua autonomia[4]. Quanto aos recursos humanos, o quadro de pessoal da instituição de ensino terá que contar com a presença de docentes, tradutores, intérpretes de Libras e de pessoal de apoio que possam empreender planejamento educacional especializado, adotando-se medidas individualizadas e coletivas para propiciar o desenvolvimento acadêmico e social dos estudantes com deficiência. Os recursos materiais envolvem a acessibilidade para todos, os instrumentos e equipamentos didáticos, incluindo-se a tecnologia assistiva, o ensino da Libras e o Sistema Braille[5].  

Dúvidas não pairam que as instituições de ensino necessitarão fazer investimentos complementares, que não serão exíguos, para o pleno e eficiente cumprimento das estipulações legais acima aludidas, sendo-lhes vedada a exigência de valores adicionais para os responsáveis legais pela pessoa com deficiência. Crucial asseverar que o parágrafo único do artigo 27 da Lei 13.146/2005 considera que a criança, o adolescente, a mulher e o idoso, com deficiência, são especialmente vulneráveis. Ademais, consoante estatui o artigo 5º do Estatuto em epígrafe, a pessoa com deficiência deverá ser protegida de toda forma de negligência, discriminação, opressão e tratamento desumano ou degradante. Nessa senda, os proprietários e gestores das entidades educacionais precisam estar bastante atentos para que não criem obstáculos infundados para o recebimento de alunos com deficiência e sejam responsabilizados judicialmente.

Propugna-se, assim, por uma análise econômica da problemática em apreço[6], reconhecendo-se que os estudantes com deficiência devem ser recepcionados pelas instituições de ensino sem imbróglios e empecilhos, mas que os custos sejam socializados entre os fornecedores dos serviços educacionais, demais usuários do sistema de ensino e o poder público. Ressalta-se que o parágrafo único do artigo 27 da multicitada Lei preconiza que constitui dever do Estado, da família, da comunidade escolar e da sociedade assegurar educação de qualidade à pessoa com deficiência. Para a manutenção da estabilidade econômica das entidades educacionais particulares diante da presença dos estudantes com deficiência, que devem ser protegidos como consumidores, o fornecedor arcará com o ônus previsto em sede legal. No entanto, dentro da perspectiva financeira, a repartição de parte dos gastos denota-se necessária, tendo as instituições de ensino que onerar um pouco mais as contraprestações pecuniárias, para se manterem saudáveis e em atividade. O poder público poderá ainda instituir incentivos para que as escolas, que recebam maior número de acadêmicos deficientes, possam usufruir de benesses fiscais, estimulando-as a prosseguir nesta caminhada.

Interessante rememorar a mitologia grega sobre Hefestos, filho de Zeus e Hera, que tinha uma deficiência física nunca aceita pelos próprios pais e pelo povo, razão pela qual fora atirado de um penhasco, sendo, porém, recolhido por Tetis e Eurinome, filhas do Oceano, que lhe deram guarida na ilha de Lemos. Nesse local, trabalhou, tornou-se poderoso artesão e, após, retornou ao Olimpo, casando-se com Afrodite e assumindo definitivamente o seu local entre os deuses[7]. Que nos sirva de incentivo as lições mitológicas e que sigamos as instruções de Diderot que, desde 1749, na “Carta sobre os Cegos para o uso dos que os vêem”, defendia o respeito ao direito educacional dos deficientes, como dito acima, através da assunção dos custos necessários pelas escolas, colaboração dos demais usuários dos serviços e do governo, com esteio em uma perspectiva econômica crítica! 

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFBA e UFMT).


[1] De acordo com o art. 2º da Lei 13.146/15, considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.
[2] A  Lei 7853/89, alterada pela Lei 8.028/90 e  regulamentada pelo Decreto 3.298/90, dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência. O Decreto 3956/01 promulgou a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência. (Convenção da Guatemala). A  Lei 10216/2001 versa sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental.
[3] Assim, dispõe o caput do art. 27 da Lei 13.146/15.
[4] CONSULTAR: Savelsbergh, G. J.; Netelenbos, J. B.; Whiting, H. T. (1991). Auditory perception and the control of spatially coordinated action of deaf and hearing children. The Journal of Child Psychology and Psychiatry. 32,489-500. Hindley, P. A.; Hill, D. P.; McGuigan, S.; Kitson, N. (1994). Psychiatric disorder in deaf and hearing impaired children and young people: A prevalence study. The Journal of Child Psychology and Psychiatry. 35 ,917 – 934. Farrugia, D. L. (1986). An Adlerian perspective for understanding deafness. Individual Psychology Journal of Adlerian Theory: Research and Practice. 42. 201-213. 
[5]  Cf: MANTOAN, Maria Teresa Eglér. A integração de pessoas com deficiência. Contribuições para uma reflexão sobre o tema. São Paulo: Memnon, 2008. ______. Caminhos pedagógicos da inclusão. São Paulo: Memnon, 2009. ______.Inclusão escolar: o que é? por quê? como fazer? São Paulo: Moderna, 2010. BRYAN, Jenny. Conversando sobre Deficiências. São Paulo: Moderna, 2010. WERNECK, Cláudia. Sociedade Inclusiva: Quem Cabe no seu Todos?  São Paulo: WVA, 2009.  
[6] Consultar: COASE, Ronald. The Problem of Social Cost. The Journal of Law and Economics v. 3, n.1 (1960). CALABRESI, Guido. Some Thoughts on Risk Distribution and the Law of Torts, Yale Law Journal. PARISI, Francesco e ROWLEY, Charles K. The Origins of Law and Economics – Essays by the Founding Fathers. Mass.: The Locke Institute, 2005, MERCURO, Nicholas e MEDEMA, Steven G. Economics and the Law – From Posner to Post-Modernism and Beyond. Princeton University Press, 2006.

[7] MARCH, Jenny. Mitos Clássicos. São Paulo: Civilização, 2000.

Autores

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    é promotora de Justiça do Consumidor do MP-BA. Professora Adjunta de Direito das Relações de Consumo da FDUFBA. Doutora em Direito pela UFBA. Diretora do Brasilcon para a Região Nordeste. Coordenadora Científica do Projeto de Extensão ABDECON/FDUFBA.

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