Opinião

É necessário o ato de ofício para configurar crime de corrupção passiva?

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18 de novembro de 2016, 5h55

No início da década de 90, o Supremo Tribunal Federal julgou a famosa AP 307/DF, em que se imputava ao ex-presidente, Fernando Collor, entre outros crimes, o delito de corrupção passiva, artigo 317, caput, do Código Penal. Na ocasião, o Plenário entendeu que “para a configuração do artigo 317, do Código Penal, a atividade visada pelo suborno há de encontrar-se abrangida nas atribuições ou na competência do funcionário que a realizou ou se comprometeu a realiza-la, ou que, ao menos, se encontre numa relação funcional imediata com o desempenho do respectivo cargo, assim acontecendo sempre que a realização do ato subornado caiba no âmbito dos poderes de fato inerente ao exercício do cargo do agente[1]. Consignou, ainda, de forma expressa não ter existido nenhuma prova da mercancia do ato de ofício pelo ex-presidente. De lá para cá, nada mudou na jurisprudência da mencionada corte. Em nenhum momento foi afastada, de forma expressa, a necessidade da existência de ato de ofício para a configuração do artigo 317 do CP.

De acordo com essa jurisprudência ato de ofício é uma elementar implícita do crime de corrupção, pois se trata de uma circunstância que caso não esteja presente afastará a existência do delito. Assim, é exatamente a partir da conexão entre a vantagem indevida e o ato de ofício mercanciado que se distingue a corrupção de um mero presente, ou de uma atividade típica do cotidiano. O limite do injusto do artigo 317 do CP, de acordo com esse entendimento, é dado pela existência ou não de um ato de ofício.

Acontece que recentemente o Supremo Tribunal Federal e outras cortes nacionais têm tergiversado ao analisar algumas denúncias pelo crime de corrupção, especialmente quanto à necessidade ou não da existência do ato de ofício. Dito de modo mais claro, não se sabe se hoje em dia os tribunais pátrios consideram necessária ou não a presença da mencionada elementar implícita para a que haja a tipicidade do artigo 317, caput, do CP. Em razão disso, parece-nos que é imprescindível a retomada da discussão acerca da possibilidade de mudança jurisprudencial em desfavor do réu.

Antes de mais nada, é necessária a consideração de que após o giro linguístico (hermenêutico/pragmático), com as contribuições de Wittgenstein e do debate entre Gadamer e Habermas, a ciência jurídica deixou de trabalhar com a dissociação entre interpretação e aplicação do direito. Nesse novo paradigma, a linguagem não é mais uma ferramenta neutra, utilizada para intermediar a relação entre o sujeito e o objeto. Ela, ao contrário, passa a ser um elemento constitutivo da vida social, compartilhado por uma determinada comunidade linguística.

Dessa forma, num Estado Democrático de Direito, a linguagem que expressa o injusto penal apenas pode ser compreendido se os elementos da delimitação da conduta proibida forem traçados por todos, “num processo de participação democrática[2], daí porque, para Juarez Tavares, “o sistema de valores sobre os quais se apoia a norma só pode ser compreendido pelo sujeito se a linguagem que expressa esse injusto for a linguagem cotidiana[3]. O mencionado professor-titular da UERJ capta com precisão os efeitos da denominada virada linguística, para a teoria do delito:

Aplicável ao injusto, o uso do recurso da linguagem implica que a constituição do ato ilícito ou antijurídico depende de como se interpretam os signos que determinam o que é proibido, imposto ou autorizado. A conduta injusta, assim, não será entendida como produto de uma pessoa, mas simplesmente um acontecimento simbolicamente reproduzido por meio da linguagem. Quem faz o injusto, no fundo, é o intérprete, com base na norma ou com base na compreensão de seu sentido[4].

Nesse novo contexto, os tribunais pátrios, especialmente os com Jurisdição em todo território nacional, passam a ser emissores do conteúdo proibido pela norma penal. E, portanto, devem garantir que a norma jurídica, como ato de comunicação, seja transmitida em conformidade com os preceitos de um Estado Democrático. Isso para que o cidadão jurisdicionado possa captar com precisão a forma como deve conduzir a sua vida. Imagine um indivíduo que em determinado momento pratica uma conduta tida por atípica pelo Supremo. Parece-nos claro que a garantia da irretroatividade da norma penal impõe que ele não pode ser criminalizado anos mais tarde por uma mudança de entendimento da corte. A proteção do indivíduo não pode ficar ao relento ou submetida às inconstâncias da composição e do entendimento dos tribunais.

A proteção contra a mudança de entendimento jurisprudencial em desfavor do réu encontra previsão normativa. A garantia constitucional do artigo 5º, inciso LX, da CF, é complementada pelo Pacto de São José da Costa Rica e pela Declaração Universal dos Direitos Humanos[5], as quais delimitam o preceito da irretroatividade da lei penal, assegurando que “[n]inguém poderá ser condenado por atos ou omissões que, no momento em que foram cometidos, não constituam delito, de acordo com o direito aplicável”. A aplicabilidade do direito, nos termos do mencionado Pacto e da Carta Universal de Direitos Humanos, diz respeito ao entendimento das cortes com jurisdição em todo território nacional, especialmente do Superior Tribunal de Justiça e do STF. Daí porque apenas pode ser imputado ao indivíduo aquelas condutas tidas por criminosas, pelos tribunais pátrios, no momento da sua conduta.

Além disso, o Supremo Tribunal Federal começou a se manifestar sobre a matéria da irretroatividade de entendimento jurisprudencial em matéria penal desfavorável ao réu. Na ocasião, o ministro Edson Fachin consignou o que se segue, in verbis:

Faz sentido afirmar a impossibilidade de retroatividade in pejus das alterações jurisprudenciais. Afinal, o cidadão quando pratica uma conduta, pode nutrir em sua consciência a ideia de que ela não é criminosa em razão de esse ser o entendimento dominante nos tribunais. Tanto é assim que se sustenta a irretroatividade da jurisprudência nesses casos com fundamento na existência de erro de proibição à luz do artigo 21 do Código Penal.

Como a regra constitucional do inciso LV, do artigo 5º, dita apenas que “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”, entendo que a extensão dela aos entendimentos jurisprudenciais estaria permitida apenas às hipóteses em que o entendimento jurisprudencial se refere à configuração do fato como ilícito, mas não a todas as hipóteses em que reflexamente se atinge a punibilidade[6].

Infelizmente, a constitucionalidade de mudança jurisprudencial desfavorável ainda aguarda a apreciação pelo STF. Mas, de toda sorte, os preceitos contidos no voto apresentado pelo ministro Fachin são aplicáveis ao caso do ato de ofício na corrupção passiva. Isso porque eventual guinada no entendimento da corte modificará “a configuração do fato como ilícito”.

Nesse contexto, parece-nos que mesmo que se entenda pela desnecessidade do ato de ofício, a mudança jurisprudencial apenas poderá ter efeito ex nunc. Ou seja, caso o Supremo Tribunal Federal entenda pela desnecessidade do ato de ofício, para a configuração do artigo 317, caput, do CP, essa guinada jurisprudencial apenas poderá surtir efeitos sobre as condutas praticadas após o julgamento da corte.


[1] Fl. 100 da AP 307-3/DF.

[2] TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 103.

[3] TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 103.

[4] TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 103.

[5] Artigo 11° […]

2.Ninguém será condenado por ações ou omissões que, no momento da sua prática, não constituíam ato delituoso à face do direito interno ou internacional. Do mesmo modo, não será infligida pena mais grave do que a que era aplicável no momento em que o ato delituoso foi cometido.

[6] HC nº 123.971/DF, Plenário. Relator p o acórdão. Ministro Roberto Barroso.

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