Opinião

Livro de professor da USP analisa aspectos jurídicos dos leilões no Império Romano

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17 de novembro de 2016, 6h00

Nesta sexta-feira (18/11), será lançado o livro Direito Bancário Romano – Aspectos Jurídicos da Organização de Leilões Privados no Século I d.C., de autoria do amigo professor Bernardo Bissoto Queiroz de Moraes. O evento será na livraria Cia do Livos, no centro de São Paulo, às 19h.

Apesar de o professor Bernardo e eu termos uma atuação docente e de pesquisa que, no específico, localiza-se em campos distintos — ele, em Direito Romano, na Universidade de São Paulo; eu, em Direito Empresarial e Direito Societário, na Fundação Getulio Vargas —, temos, em comum, a atenção às formas e aos institutos jurídicos com os quais se desenvolvia a atividade econômica nas sociedades antigas, especialmente naquele particular período da civilização romana, entre os séculos II a.C. e III d.C., em que Roma estava no centro de um sofisticado comércio que tinha extensão mundial.

Um bom livro também começa pela capa: da imagem ao conteúdo
Já tivera a oportunidade de ler o trabalho tempos atrás, ao ser agraciado com um exemplar da tese que, em 2010, foi apresentada pelo professor Bernardo para a obtenção da livre-docência. Agora, porém, a resenha começa pela própria capa do livro que está sendo publicado. Aí está reproduzido um mosaico de uma “villa” romana portuária (encontrado em Bad Kreuznach – Alemanha) com imagens de um mercado de gêneros alimentícios e de um leiloeiro.

Mesmo que bela e espirituosa, a imagem da capa não é mero enfeite. Ao contrário, é totalmente correspondente ao conteúdo trazido pelo livro. De fato, a obra se debruça sobre os aspectos jurídicos da organização dos leilões privados por banqueiros romanos, estudo que se faz especialmente a partir de conjuntos de documentos arqueológicos (tábulas, sobretudo, mas também inscrições epigráficas e papiros) que reportam à concreta prática romana nessa matéria. Assim, o trabalho desenvolve as principais questões relacionadas às etapas do procedimento e às características do leilão privado conduzido por banqueiros romanos, trazendo, em paralelo, considerações com relação à atividade bancária e o procedimento dos leilões gregos, os quais teriam servido de modelo para aqueles. Em seguida, analisam-se as intrincadas relações que se estabeleciam entre as partes envolvidas no leilão romano — o vendedor, o banqueiro, o comprador e o leiloeiro —, superando o viés separado dessas relações, e tomando-as como complexas situações jurídicas multilaterais.

Essa reconstituição jurídica é precedida de uma sólida indicação da terminologia própria da atividade bancária e dos leilões em Roma e dos seus eventuais equivalentes gregos, esforço que se fez necessário porque, com relação a esses temas, os termos se distanciam da terminologia habitual do direito romano, ora sendo empregados de modo exclusivamente técnico, não pertencendo à vida cotidiana, ora sendo tomados de palavras de uso corrente, assumindo significado especial.

Entre a periferia e o mainstream da historiografia jus-romanística: o enorme valor da pesquisa realizada pelo professor Bernardo
O Brasil é um país relativamente periférico na pesquisa jus-romanística. É verdade que, em comparação com a constante e pujante produção jus-romanística que se vê nas universidades italianas, em que os professores e pesquisadores dedicados ao direito romano compõem uma comunidade de enorme peso e prestígio acadêmicos, qualquer país será considerado periférico nessa matéria. Esse é um fato que marca a jus-romanística mundial.

Mas, atenção!O fato de o Brasil estar na periferia jus-romanística não significa que não haja, entre nós, centros de tradição e de excelência nos estudos de direito romano, no âmbito do qual se produzem, ora coletivamente, ora individualmente, e até mesmo com alguma abnegação pessoal, trabalhos de grande qualidade e de relevância científica. Pense-se, especialmente, na cadeira de direito romano da Faculdade de Direito da USP e no seu grupo de mais próximos colaboradores, que vêm sempre produzindo notáveis trabalhos há muitas décadas. É desse contexto tipicamente brasileiro que o professor Bernardo é oriundo e no qual mantém a sua atuação universitária.

Não obstante essa combinação entre periferia e excelência, e talvez justamente por causa dela, desponta, da parte do professor Bernardo, um trabalho que está totalmente inserido no mainstream da pesquisa romanística que atualmente se observa no mundo. E isso não é nem surpresa, nem mera curiosidade: no mesmo sentido, veja-se a outra monografia já publicada pelo professor, resultante da sua tese de doutorado, intitulada Pacto de Melhor Comprador: Configuração no Direito Romano (‘in diem addictio’) e Projeções no Direito Atual.

Para além da hipótese específica e delimitada com a qual o professor Bernardo agora se entretém e que persegue com grande rigor formal e metodológico, é notável como a pesquisa que resultou no livro Direito Bancário Romano só se desenvolveu graças a um absoluto domínio e controle de toda a literatura sobre a economia romana antiga, em geral, e sobre a atividade bancária em Roma, em particular. De fato, avolumaram-se, em tempos mais recentes, os estudos que reconhecem a importância e a dispersão e esclarecem as várias modalidades e os vários aspectos daquilo que, em Roma, corresponde ao exercício da atividade financeira e bancária no mundo contemporâneo.

A pesquisa do professor Bernardo se faz no curso desses estudos, e, uma vez aí dentro, oferece uma contribuição inovadora, ao precisamente reconstituir e elucidar, em termos jurídicos, o procedimento do leilão privado não de modo geral, mas no âmbito da atividade desempenhada por banqueiros romanos, e as relações entre os sujeitos que dele tomavam parte.

Também constitui um avanço científico a sugestão de que os leilões privados romanos, organizados por banqueiros, baseavam-se num modelo grego anterior ao período da maior expansão comercial romana, especialmente se se considerar que a atividade bancária grega teve o seu apogeu antes da romana.

O trabalho do professor Bernardo se insere, assim, na jus-romanística mundial, e tranquilamente poderá ser aproveitado nas sucessivas discussões que essa comunidade virá a desenvolver a respeito desse tema.

Note-se, ademais, que o professor Bernardo igualmente se coloca no mainstream quando demonstra dominar todos os instrumentos de pesquisa próprios da ciência jus-romanística, muitas deles de difícil acesso ao pesquisador brasileiro: a tese do professor Bernardo não se desenvolve só a partir da articulação das informações presentes nos grandes manuais ou nas melhores monografias que porventura tenham se dedicado ao capo temático em questão, mas por meio da direta análise de fontes jurídicas e literárias, auxiliada pelo ferramental exegético, e, especialmente, por meio da análise de documentos primários (tábulas, inscrições e papiros, sobretudo) que constituem um testemunho direto de negócios que homens em concreto realizaram. Para tudo isso, é imprescindível, ainda, o conhecimento de línguas como o latim e o grego.

São essas as características que traçam a linha que separa o romanista diletante, por mais que tenha grande afeição e conhecimento sobre o direito romano, do pesquisador profissional.

As formas e institutos jurídicos relativos à atividade econômica de uma sociedade antiga: a pesquisa jurídica a partir da observação da efetiva prática econômico-social romana
Merece ser mencionado ainda outro aspecto do livro, que dá adicional valor a esse Direito Bancário Romano: a proximidade da pesquisa com a realidade econômico-social da época considerada, por meio da aprofundada consideração de documentos que foram produzidos por ocasião de negócios que efetivamente foram praticados por homens romanos.

Note-se que a pesquisa jus-romanística pode se fazer ora cogitando-se e sistematizando-se em abstrato, ora observando e analisando o que em concreto os agentes econômicos e sociais faziam naquela sociedade em questão. Tanto de uma como de outra perspectiva podem sair resultados esclarecedores, mas a conjugação de ambas as perspectivas, como acontece nesse trabalho do professor Bernardo, alcança um nível ainda superior, fornecendo um testemunho vivo e empolgante para o leitor.

Entre a pesquisa histórica pura e os problemas do mundo atual: o que esses romanos têm a dizer às pessoas de hoje?
Por fim, mencione-se que o autor, como bom romanista-civilista que é, busca retirar do direito romano algumas sugestões para respostas a problemas atuais. Não se trata, claro, de dizer que o direito romano possa, nessa temática, ter influenciado diretamente o mundo atual, ou que as regras atuais se constituam como uma direta derivação das regras romanas. Pretender nesse sentido seria uma “forçação histórica”, e em nada contribuiria para a compreensão seja do direito romano, seja do direito atual.

Mas é possível que, a partir de paralelos entre a matéria dos leilões no direito romano e no direito atual, a experiência antiga ofereça elementos para a reflexão sobre problemas contemporâneos. Nesse sentido, o professor Bernardo aponta três questões que, ainda que en passant, despontam da sua pesquisa: (i) A ampliação conceitual da noção de assinatura para abranger a assinatura digital pode ser melhor compreendida a partir da noção romana de assignatio; (ii) As condições gerais do negócio que são largamente impostas pelas empresas que atualmente organizam leilões virtuais já eram empregadas pelos banqueiros romanos e a sua abusividade era controlada pela noção romana de boa-fé; e (iii) Tende-se a considerar, embora o ponto não esteja consolidado, que a compra e venda derivada de um leilão virtual ocorre entre aquele que procura o serviço da empresa e o licitante vencedor, assim como no direito romano o contrato de compra e venda se estabelece entre o dominus auctionis e o licitante vencedor, vinculando-se o banqueiro através de obrigações verbais (stipulationes) e de um contrato consensual (locatio conductio).

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