Opinião

Decisões envolvendo site opõem juízes de Campinas e de Curitiba

Autor

  • Marcelo Frullani Lopes

    é advogado do escritório Frullani Lopes Advogados especialista em Direito e Tecnologia da Informação pela Escola Politécnica da USP e mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP.

14 de novembro de 2016, 14h29

A promulgação do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/14) trouxe grande destaque a conflitos envolvendo privacidade, intimidade e dados pessoais no ambiente digital. Como esses debates ainda estão engatinhando no Brasil, nossa jurisprudência não apresenta, muitas vezes, uniformidade. Recentemente, um juiz de Campinas e outro de Curitiba pronunciaram duas decisões opostas tratando do mesmo site.

Trata-se de um portal (http://www.consultasocio.com) que oferece ao usuário a possibilidade de pesquisar, por meio do nome de uma pessoa, se ela é sócia de alguma empresa, ou integrante de alguma outra pessoa jurídica, como fundação, sociedade de advogados, igreja, ONG.

Os autores de ambas as ações alegam, em suma, que a divulgação dessas informações fere os direitos fundamentais à vida privada e intimidade (artigo 5°, inciso X, da Constituição Federal), bem como uma série de dispositivos do Marco Civil da Internet que tratam da proteção da privacidade e dos dados pessoais (artigo 3°, incisos II e III). Além disso, haveria desrespeito às regras presentes no artigo 7°, incisos VII a IX da mesma lei, em razão do fornecimento de dados pessoais sem o consentimento livre, expresso e informado dos titulares.

Ocorre que, analisando-se as provas juntadas aos autos, verifica-se que esse site nada mais faz do que compilar informações que se encontram públicas no portal da Receita Federal.

A diferença é que a pesquisa no site da Receita é feita pelo CNPJ, enquanto o Consultasocio.com possibilita a pesquisa pelo nome dos indivíduos.

Nos dois casos, porém, os dados disponibilizados são os mesmos, quais sejam: nome empresarial, título do estabelecimento, descrição do ramo de atividade, endereço, telefone e e-mail da pessoa jurídica, capital sócio e nomes dos integrantes. Ao fazer a pesquisa no site Consultasocio.com, verifica-se ainda a seguinte advertência: “Para obter acesso a demais informações como número do CPF, consulta de dívidas, processos e outras informações, acesse os sites oficiais. Este site permite consulta ao número de CNPJ, razão social, endereço completo e capital social de empresas. Para verificar demais informações, consulte os sites oficiais.” Ou seja, não se encontra cabalmente demonstrada a alegação de que o site em questão divulgaria dados confidenciais.

Ao constituir uma empresa ou integrar outra pessoa jurídica, o indivíduo consente com a divulgação de determinadas informações ao público. Por isso, não se deve exigir um novo consentimento dele a cada compilação ou divulgação dessas informações. Enquanto não se demonstrar o uso de informações confidenciais ou de acesso restrito, não há desrespeito à Constituição ou ao Marco Civil da Internet.

Se de um lado há o interesse do indivíduo de proteger sua privacidade e seus dados pessoais, de outro lado há o interesse público quanto à divulgação desses dados, o que se consubstancia no direito à informação. Nesse caso, deve prevalecer este último, visto que os referidos dados já são acessíveis ao público no site da Receita Federal. O portal Consultasocio apenas compila as informações e facilita o acesso a elas, mas não torna público o que antes era privado.

Quanto a essa questão do consentimento para uso de dados pessoais, os autores também invocam os artigos 4° e 5°, incisos V e VII, da Lei n° 12.414/11. Todavia, tais dispositivos tratam de bancos de dados com informações de adimplemento, de pessoas naturais ou jurídicas, para formação de histórico de crédito (o chamado “cadastro positivo”). Trata-se de uma situação completamente diferente daquela discutida nesses processos. Por isso, tais normas não são aplicáveis.

Outros argumentos apresentados pelos autores são no sentido de que os responsáveis pelo site, apesar de não cobrarem pelo acesso, lucram com publicidade. Além disso, o fato de a empresa administradora do site estar sediada na Austrália, o domínio estar situado nos Estados Unidos e o servidor de hospedagem ser da Hungria seriam provas de que a empresa busca se esquivar da legislação brasileira. Deve-se analisar se esses elementos são relevantes para o julgamento.

Ora, a empresa presta um serviço ao facilitar a pesquisa de empresas ou outras pessoas jurídicas que estejam em nome de determinado indivíduo, o que facilita a vida de credores que buscam essas informações. Compila dados públicos, portanto, para facilitar pesquisas por parte de usuários. Nada há de errado, portanto, em obter lucro indireto por meio de propaganda.

Em relação ao segundo ponto, o Marco Civil da Internet é claro ao estabelecer, em seu artigo 11, que em qualquer operação de coleta, armazenamento, guarda e tratamento de dados pessoais, caso algum desses atos ocorra em território nacional, devem ser respeitados a legislação brasileira, os direitos à privacidade e à proteção dos dados pessoais. A legislação brasileira claramente se aplica, portanto, ao caso analisado; por outro lado, não pode haver qualquer tratamento diferenciado a provedores ou empresas sediadas no exterior. Não pode ser relevante para a decisão o simples fato de a empresa, o provedor ou o servidor estarem sediados fora do país.

Em Curitiba, o juiz da 24ª Vara Cível [1] concedeu parcialmente a antecipação de tutela pedida pelos autores, determinando a retirada dos dados dos autores do site. O magistrado parte da premissa equivocada de que o site retira as informações das juntas comerciais. Nos sites destas há, de fato, certa restrição de acesso na medida em que os dados cadastrais das sociedades são disponibilizadas mediante prévio requerimento, com fornecimento de dados pessoais daquele que pleiteia, e em alguns casos exige-se até o pagamento de taxas.

No entanto, ao contrário do que afirma o magistrado, as provas até aqui apresentadas vão no sentido de que o site em questão apresenta exclusivamente informações que se encontram disponíveis ao público no site da Receita Federal, sem que haja necessidade de prévio cadastro ou pagamento de taxa. Dados como CPFs e endereços pessoais dos sócios, que são disponibilizadas pelas Juntas Comerciais, não se encontram no portal do réu. Não há prova, neste momento, de que foram obtidas informações confidenciais ou disponibilizadas de forma restrita ou controlada.

Ao final de sua decisão, apesar de mostrar um mínimo de cautela ao negar o pedido de bloqueio total do acesso ao site no Brasil, via provedores de backbone, o magistrado intimou esses provedores a inserir obstáculos tecnológicos capazes de inviabilizar o acesso àquelas informações pessoais dos autores. Segundo Omar Kaminski, gestor do Observatório do Marco Civil da Internet, há impossibilidade técnica para realização desse filtro de conteúdos específicos [2].

A decisão mais acertada foi aquela proferida pelo juiz de Campinas [3], que foi mantida pelo Tribunal de Justiça em agravo de instrumento [4], negando a retirada dos dados pessoais do autor, bem como qualquer tipo de bloqueio via provedores de backbone. As provas apresentadas em ambos os processos, até o momento, levam à conclusão de que o portal simplesmente compila informações disponibilizadas ao público pela Receita Federal e facilita o acesso, ao possibilitar a pesquisa por meio de nomes de indivíduos, e não pelo CNPJ. Enquanto não se provar de forma cabal que o site colhe seus dados aproveitando-se de informações confidenciais


[1] BRASIL. 24 Vara Cível de Curitiba. Ação de obrigação de fazer/não fazer n. 0005900-84.2016.8.16.0194. Autor: Cesar Eduardo Isaacson Buffara; Réu: Privacy Protection Service Inc. Decisão interlocutória de 13 de junho de 2016.

[2] Disponível em: < http://www.conjur.com.br/2016-jul-06/dados-brasileiros-site-exterior-responde-justica-brasil >. Acesso em 26 de outubro de 2016.

[3] BRASIL. 1ª Vara do Foro Regional de Vila Mimosa da Comarca de Campinas. Ação de obrigação de fazer/não fazer n. 1017998-54.2016.8.26.0114. Autor: Alex Vander Franco; Réu: Privacy Protection Service Inc. Decisão de 28 de julho de 2016.

[4] BRASIL. 1ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo. Agravo de instrumento n. 2177717-09.2016.8.26.0000. Agravante: Alex Vander Franco; Agravado: Privacy Protection Service Inc. Decisão de 12 de setembro de 2016. 

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