Direito Civil Atual

A influência do Direito Romano na obra do artista Vassily Kandinsky

Autor

  • Bernardo Bissoto Queiroz de Moraes

    é “perfezionato” pela Università di Roma I (La Sapienza) doutor em Direito Civil/Romano (USP) livre-docente em Direito Romano (USP) professor associado de Direito Civil e Direito Romano da Faculdade de Direito da USP e procurador federal (AGU).

14 de novembro de 2016, 7h00

Há pouco mais de um ano, ocorreu em São Paulo uma interessante exposição de 153 obras de Vassily Kandinsky (e alguns de seus contemporâneos)[1]. Bem organizada (por Evgenia Petrova e Joseph Kiblitsky), ela contava com explicações em painéis para as principais obras e uma destacada e detalhada linha do tempo em um salão principal, onde podiam ser lidos os principais fatos e realizações da vida desse importante artista russo (mais tarde naturalizado alemão e francês). Chamava a atenção que, nessa linha do tempo, a primeira marcação (depois do seu nascimento em 1866) era o início do estudo de “Economia e Direito Romano e Russo na Universidade de Moscou” (em 1885).

Para os apreciadores da arte do século XX em geral deve ser curioso saber que um dos principais professores da escola de vanguarda Bauhaus (fundada em 1919 pelo arquiteto Gropius) tinha formação jurídica tradicional. Mas para aqueles que, além de apreciadores da arte, tem mínima formação jurídica, a notícia pode causar ainda mais espécie, por ter sido Kandinsky um pioneiro da arte abstrata e ser a abstração um dos princípios mais importantes do Direito Romano. Haveria alguma conexão? Teria o Direito Romano de alguma forma influenciado Kandinsky? Em certa medida, sim.

O abstracionismo é um movimento que tem as suas raízes no século XIX (segundo alguns, já antes), mas a primeira pintura completamente não-figurativa é de Kandinsky (de 1910, quando já vivia em Munique). Com ele, houve um abandono claro (mas não definitivo) da ideia da arte como “imitação da natureza” (típica da Europa ocidental); para ele, as formas materiais deveriam ser reduzidas ao mínimo, personificando-se o conteúdo (“voz interna”) das pinturas em formas “não materiais”. Aliás, em função disso, talvez esse movimento artístico fosse melhor intitulado “não-figurativo”, mas “abstrato” foi como ficou conhecido.

A conexão com o Direito Romano parece nesse ponto muito distante. Além do fato de ter cursado Direito em Moscou, ainda muito jovem (antes de se mudar, em 1896, para Munique), foi-lhe oferecido o cargo de professor de Direito Romano na Universidade de Tartu (Estônia). Optou por abandonar a área jurídica para se dedicar ao estudo da arte na Alemanha, mas nunca conseguiu afastar a grande influência de seu curso em Moscou.

Ele mesmo afirmou isso em uma passagem muito interessante de “Reminiscências” (Rückblicke, 1913). Sua capacidade (“dom”) de se imergir no mundo interior do material, no abstrato, em busca do mundo espiritual, teria derivado do seu estudo de disciplinas como o Direito Romano (a primeira mencionada por ele nesse sentido). Este tê-lo-ia “encantado” por conta de sua intrincada, consciente e refinada construção, que, porém, não o satisfazia (como eslavo) por conta de sua muito fria, racional e inflexível lógica[2].

Ademais, o Direito Romano era para ele uma representação da influência europeia ocidental, que ele subvalorizava por não se fundamentar em um critério interior (Abstrakte Kunst, 1925). De fato, na época em que firmou os fundamentos da arte abstrata, pensava em um deslocamento do “centro da arte” do oeste europeu para o leste, em uma transição do “princípio romano” para o eslavo[3]. Havia, é claro, algo de político nessa transição; e seu grande interesse por cultura popular não nega isso (durante a faculdade teve, por exemplo, grande contato com rituais xamânicos, que deixaram nele marcas evidentes por toda a sua vida). Queria claramente valorizar a cultura local (eslava) na busca de uma inserção cada vez maior no “mundo espiritual” (em contraposição ao “mundo material”).

Em suma, para ele o Direito Romano tinha um aspecto dual. Ele o “amava” e pensava nele com gratidão por conta da “inspiração” que lhe deu[4]. Já sua “refinada” abstração era de ser evitada somente na medida em que representasse o mundo ocidental. Ora, é relevante tentar entender como o Direito Romano poderia ser fonte de “inspiração” para Kandinsky ao conceitualizar a arte abstrata.

Tendo estudado essa disciplina entre o final do século XIX e o início do século XX, primeiro em Moscou, depois em Munique, não se pode negar que o que ele chamava de Direito Romano na verdade devia ser o direito como era estudado pela Pandectística. Portanto, um direito baseado no Corpus Iuris Civilis, mas adequado e mesclado ao direito local; e que foi consolidado no BGB (de 1896). Evidente, daí, que o pensamento (jurídico) abstrato alemão de então (baseado no Direito Romano) deve tê-lo marcado.

Além disso, na época que frequentou a faculdade na Rússia, iniciavam-se os trabalhos de composição de um primeiro Código Civil. Havia uma grande admiração pelos modelos da Europa ocidental (deve-se incluir aqui também o Code Civil), mas na Rússia o contexto político era de um aumento de poder da autoridade estatal, sendo os novos Códigos (modelos escritos do direito russo) verdadeiros garantidores do poder dos czares. Por conta de imposição estatal, esses novos modelos ocidentais não eram adaptados e mesclados ao direito local, fazendo com que o povo russo sentisse uma falta de identificação com o direito estatal (veja-se, por exemplo, a dificuldade de adequação da noção “romana” de propriedade à tradicional propriedade coletiva das famílias de camponeses).

Assim, a crítica de Kandinsky ao Direito Romano na verdade era uma crítica velada à forma como o governo russo conduziu uma adaptação dele ao direito consuetudinário que regia as relações privadas de então. Por isso, admirava ele, por um lado, a refinada construção romana e criticava a sua “frieza” frente ao elemento eslavo.

Seja como for, é muito significativa a vinculação do Direito Romano com o pensamento abstrato. Na mesma época em que Kandinsky ainda vivia na Alemanha, Schulz escreveu uma clássica obra de Direito Romano na qual procurou enumerar uma dezena de seus princípios (Prinzipien des römischen Rechts, publicada somente em 1934). Um deles era a “abstração”.

É claro que houve uma grande oscilação nos mais de 1300 anos de evolução do que se convencionou chamar de “Direito Romano” (século VIII a.C. a VI d.C.). Abstração havia em todos os períodos, mas o grau dela variava de acordo com características de cada período. De uma forma geral, nunca se chegou ao mesmo nível dos pandectistas no século XIX, que culminou na sua produção máxima: o BGB. Cita-se, a propósito, com muita frequência um famoso fragmento de Javoleno: “omnis definitio in iure civili periculosa est” – D. 50, 17, 202. Mas não é razoável pensar que os romanos resistiam a qualquer abstração. O sentido da frase de Javoleno foi perdido ao longo dos séculos, mas comparações com versões bizantinas do texto indicam que aparentemente quis ele dizer que os conceitos são “perigosos” em textos legais (porque podem ser alterados), embora possam ser adequados (aliás, desejáveis) inter doctos homines, ou seja, como produto de atividade científica (doutrina).

No final da República e em época justinianeia houve uma clara busca por conceitos gerais classificados em função de seu grau de abstração. Cícero afirmou expressamente que no ius civile deveriam ser destacados os mais importantes gêneros, mas em pequeno número (“perpauca genera” – De oratore I, 189-190). E, de fato, houve tentativas interessantes da iurisprudentia romana em conceituar e sistematizar. Um dos pioneiros nesse aspecto foi Múcio Cévola, mas o mais famoso foi Gaio, que fixou conceitos que seriam a base de parcela significativa dos sistemas de Códigos Civis atuais (Code Civile, em especial).

Essas tentativas de delimitação dos conceitos-chave do direito e de sistematização deles pela elegante iurisprudentia clássica (em suma, de “abstração”), que exigiam um grande esforço lógico para se atingir a “essência” dos fenômenos jurídicos, podem ter chamado a atenção de Kandinsky (que, no fundo, buscava algo equivalente na arte). A tal ponto que vinculou o nome do movimento à abstração (quando, repita-se, essa arte poderia ser melhor intitulada “não-figurativa”).

Nesse sentido, também é relevante observar que Kandinsky viveu em um momento no qual o Direito Romano, cujo objeto fundamental de estudo era o Corpus Iuris Civilis, teve de se reinventar por conta da entrada em vigor do BGB (pois os textos jurídicos romanos deixaram de ser o principal objeto de estudo dos civilistas). Esse fato, associado às importantes descobertas e desenvolvimento da papirologia e epigrafia do final do século XIX, ocasionou uma imediata “historicização” do Direito Romano. Em outros termos, os romanistas, ao invés de estudarem os textos jurídicos romanos como um corpo único com vistas à aplicação prática atual (para a solução de conflitos interpessoais), começaram a enfatizar o aspecto diacrônico dele, destacando períodos e buscando as características de cada um. O mais importante era, sem dúvida, o clássico.

Houve, assim, um deslocamento temporal: do direito justinianeu para o clássico, muito mais científico no que diz respeito à clareza e objetividade de raciocínio, à elegância de conceitos e originalidade das tentativas de sistematização (uma obra famosa que deriva dessa mudança de enfoque foi o livro escrito por Schulz durante a Segunda Guerra Mundial: Classical Roman Law, publicada somente em 1951). Por ter vivido na Alemanha justamente nos anos em que essas ideias eram muito discutidas (deixou a Alemanha somente em 1933, após a ascensão dos nazistas ao poder), é muito provável que Kandinsky as conhecesse e compartilhasse a mesma admiração pela produção dos jurisconsultos romanos de época clássica (não por acaso, a arte abstrata pode ser entendida como uma “redução ao essencial”, através da busca da necessidade interior e a perda do figurativo).

Outro aspecto pode também ter chamado a atenção de Kandinsky. Como ele explicitamente menciona a “amada disciplina” que estudou na Faculdade quando explica o abstracionismo e como o “abstrato” para ele indica mais o “não-figurativo”, é provável que ele quisesse também destacar o fato de o Direito Romano clássico ter conseguido, ao contrário de outros sistemas jurídicos da Antiguidade, certo universalismo, na medida em que se adequou direitos de outros povos que lhe eram subordinados, ou seja, na medida em que era universal. E assim sendo, conseguia, de certa forma, atingir a essência do fenômeno jurídico.

Enfim, não importa o motivo. Fato é que um dos mais influentes artistas do século XX se deixou influenciar sobremaneira pelo estudo do Direito Romano feito na juventude. Fundou um movimento artístico baseado em elementos vários, mas cuja forma de pensar é tributária em parte do Direito Romano.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Lisboa, Girona, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC e UFMT).


[1]Kandinsky: tudo começa num ponto”, organizado pelo Centro Cultural do Banco do Brasil (de 08/07/2015 a 28/09/2015).
[2] W. Kandinsky, Complete Writings on Art, Boston, Da Capo, 1994, p. 362.
[3] W. Kandinsky, Complete Writings cit., p. 512.
[4] W. Kandinsky, Complete Writings cit., pp. 362 e 363.

Autores

  • é “perfezionato” pela Università di Roma I (La Sapienza), doutor em Direito Civil/Romano (USP), livre-docente em Direito Romano (USP), professor associado de Direito Civil e Direito Romano da Faculdade de Direito da USP e procurador federal (AGU).

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