Opinião

Abusos devem ser coibidos, mas WhatsApp deve respeitar Justiça brasileira

Autor

  • Thiago Rodovalho

    é professor-doutor da PUC-Campinas. Doutor e Mestre em Direito Civil pela PUC-SP com estágio pós-doutoral no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht em Hamburgo Alemanha.

13 de novembro de 2016, 6h30

Abordaremos, aqui, um interessante e polêmico caso que temos agora no Brasil, o famoso caso do WhatsApp, que, creio eu, tem ocorrido em outras partes do mundo, e cedo ou tarde, pode ser que os Senhores venham a ter de lidar com esse problema também.

O jovens da audiência certamente sabem mais do que todos nós a importância do WhatsApp como meio de comunicação. E desejam, como é justo, que a privacidade da conversa que mantêm em particular ou em grupos seja preservada.

Porém, infelizmente, não apenas os Senhores são os usuários. Criminosos, como sequestradores, traficantes de drogas, terroristas, corruptos, também se valem, como sói acontecer, dessa ferramenta tecnológica nova.

Pois bem, em diversos processos criminais no Brasil, houve ordem judicial para quebra do sigilo dessas comunicações e envio de seu conteúdo para instruir os aludidos processos.

O WhatsApp tem se recusado a colaborar com o Poder Judiciário brasileiro e a fornecer tais dados, em nome do direito à privacidade de seus usuários.

Mais do que isso, a partir de um determinado momento, e isso aconteceu em nível mundial, não só em razão do problema no Brasil, por evidente, o WhatsApp passou a criptografar, ponta-a-ponta, as conversas, sem possuir, ele próprio, o código para "quebrar" essa criptografia, a demonstrar, inclusive, a necessidade de regulação da criptografia no país, como bem apontaram Tercio Sampaio Ferraz Junior, Juliano Maranhão e Marcelo Finger, em artigo sobre o tema.[2]

Deste modo, passamos a ter um meio de comunicação quase indevassável, pois nem mesmo o WhatsApp possui esses dados, que só podem ser acessados, então, com o aparelho em mãos.

Assim, a partir desse momento, o WhatsApp passou a se negar a cumprir as ordens judiciais no Brasil ao argumento de que não mais possui os dados, o que é tecnologicamente verdadeiro.

Por conta disso, alguns juízes brasileiros começaram a proferir ordens judiciais suspendendo o funcionamento do WhatsApp no Brasil, por um ou dois dias, por exemplo, o que de fato já aconteceu em nosso país mais de uma vez.[3]

Agora, está questão está posta em nosso Supremo Tribunal Federal, através da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 403, movida pelo partido político PPS, e cujo julgamento deve ocorrer no próximo ano. Por louvável medida de seu relator, ministro Luiz Edson Fachin, sobreveio recentemente convocação para audiência pública para debater justamente o bloqueio do WhatsApp,[4] o que, inclusive, justifica a publicação dessas singelas linhas, redigidas no tom informal de palestra.

Pois bem, a questão tecnológica é nova, mas a questão jurídica é antiga.

Trata-se de um debate jurídico secular: a permanente tensão entre Estado e indivíduo, i.e., entre Estado e as liberdades individuais.

Ou seja, que parcela de nossa liberdade estamos dispostos a conceder ao Estado em nome de uma socialidade absolutamente necessária?

De fato, as limitações ao poder do Estado são uma conquista «civilizatória» dos cidadãos.

Nesse contexto, podemos observar que o marco moderno do que podemos chamar de Estado de Direito (Rule of Law, État de Droit ou Rechtsstaat) remonta a 1215, com a Magna Carta, em especial com sua célebre cláusula 39, que posteriormente passou a ser conhecida como a cláusula do due process of law.[5] E, como tivemos oportunidade de afirmar no ano passado, em um artigo justamente para celebrar seu aniversário: 800 anos depois, e a Magna Carta ainda continua a inspirar liberdades contra o Estado arbitrário.[6]

Esse movimento de luta pelas liberdades individuais do cidadão se acentuou alguns séculos mais tarde, em 1789, com a Revolução Francesa, que, se não concretizou o ideal da fraternidade, conquistou o ideal da liberdade, ainda que calcada em um ideal de igualdade meramente formal.[7]

Com essa conquista da liberdade no pós-revolução francesa, os homens passam a conviver cada vez mais com os problemas do excesso de liberdade e de um Estado excessivamente absentista.

Este é  o momento de conhecer mais de perto o homem como lobo do próprio homem.

Passamos, então, a viver um retorno a um maior protagonismo do Estado.

E especialmente no pós Guerras Mundiais, quando o mundo conheceu de perto suas piores facetas, cada vez mais tornou-se relevante uma «permanente busca de equilíbrio entre Estado e Indivíduo».

Nesse contexto do tormentoso século XX, o "século das guerras", desenvolve-se o chamado "Estado Constitucional", que é justamente marcado por ser um Estado de Direito, com a submissão de todos à lei, um Estado Democrático, é dizer, o poder advém do povo, especialmente através do voto popular, e é também um Estado Social, na tentativa de concretizar o ideal da Fraternidade que não se conseguiu alcançar de fato na Revolução Francesa.[8]

No Estado Constitucional o indivíduo é livre, e o Estado somente intervém para «assegurar», «garantir» e «concretizar» direitos fundamentais.

Porém, saber quando e em que medida o Estado deve intervir é um problema secular e complexo.

E hoje, na era da hipercomunicação e da hiperexposição, a tensão entre Estado e liberdade do indivíduos relativamente aos direitos da personalidade somente ficou mais complicada.

A Constituição Federal de Portugal, por exemplo, em seu artigo 35º, procura trabalhar com a ideia de dados sensíveis e dados não-sensíveis, para tentar saber quando a proteção da privacidade deve ser feita com maior ou menor intensidade.[9]

Mas o que é dado sensível na era da hiperexposição, em que o indivíduo se reconhece e se realiza expondo-se nas mídias sociais? O que é privacidade nos dias de hoje?

Vivemos, hoje, por exemplo, um singular conflito entre a era da superexposição das pessoas e o direito ao esquecimento.

Estas já eram algumas dificuldades no tema, mas não as únicas,

O terrorismo, e especialmente o 11 de Setembro e os recentes atentados em solo europeu, impactaram sobremaneira a tensão entre Estado e liberdades individuais,

Por isso, não é errado afirmar que uma das vítimas do 11 de setembro foram também as «liberdades individuais», e as restrições a direitos e garantias em solo americano e europeu, e o Wikileaks, entre tantos outros exemplos, revelam-nos isso de maneira muito clara.

Assim, o terrorismo, especialmente nos EUA e na Europa, trouxe a necessidade de intervenção maior do Estado, e uma das vítimas tem sido justamente a privacidade.

Por isso, saber quando e como o Estado deve intervir tornou-se mais complexo.

E o caso do WhatsApp, e também do Telegram, que adota similar tecnologia, com a criptografia ponta-a-ponta, evidencia isso, como também o polêmico caso da Apple vs. FBI nos EUA, no qual a empresa recusou-se a auxiliar o FBI a acessar dados criptografados em um aparelho iPhone apreendido com um atirador (atentado de San Bernardino), vindo, depois, a processar o FBI para saber como a polícia federal estadunidense conseguiu quebrar a criptografia e efetivamente acessar os aludidos dados. Sobre esse caso, corretamente, afirma-se, a exemplo do que se passa, no Brasil, com o caso do WhatsApp: "The case marked one of the highest-profile clashes in the debate over encryption and data privacy between the government and a technology company".[10]

Nesse contexto, a discussão que se coloca atualmente no Brasil deve ir além do debate apenas sobre a proporcionalidade ou não das medidas judiciais adotadas, com a suspensão dos serviços do WhatsApp no país.

Em nosso sentir, o primeiro debate deve ser sobre se é possível esse modelo de negócio no Brasil. Se em nome do direito à privacidade, é possível essa criptografia ponta-a-ponta? Isso é constitucional?

Em que medida isso foi dialogado com a sociedade? Nós desejamos que haja um meio de comunicação secreto, um campo indevassável?

Note-se que discussão similar já se passou com relação ao Sistema Financeiro. Hoje, a preocupação com o terrorismo e a lavagem de dinheiro, tem levado quase a uma supressão de sistema financeiro secreto, com titular anônimo.

Retornando ao WhatsApp e Telegram, e à parcela de nossa liberdade que estamos dispostos a conceder ao Estado em nome de uma necessária socialidade, nós, como sociedade, queremos que o terrorismo, que os mais diversos atores de corrupção, que os traficantes, que os sequestradores, entre tantos outros, tenham para si um canal de comunicação secreto?

Assim, quando há o "interesse público legítimo" para restringir o direito à privacidade? E quando há o "interesse privado legítimo" para impedir a ingerência estatal?

A Polícia ou o Ministério Público, por exemplo, não podem, como por vezes já o desejaram (v. caso Orkut), ter acesso «direto» à comunicação dos cidadãos. Isso seria instituir aquilo que os germânicos chamam de "Polizeistaat", um Estado Policial no Brasil.

Por outro lado, a forma como a nossa Constituição Federal elegeu para mitigar o direito à privacidade e ao sigilo de informações foi justamente a "ordem judicial".

Assim o é com a privacidade do lar, com os sigilos bancário e fiscal, com o sigilo de comunicação etc.

Por isso, é legítimo um sistema que repila a atuação direta do chamado Estado Policial, mas não nos parece ser legítimo um modelo de negócio que nem mesmo após a atuação do Poder Judiciário, do exercício do direito ao contraditório e do devido processo legal, nem mesmo assim forneça os dados até então sigilosos, mas judicialmente quebrados, tal e qual tem se passado com o WhatsApp e o Telegram, com a nova tecnologia de criptografia ponta-a-ponta.

*O texto aqui reproduzido corresponde, com alguns acréscimos (especialmente de notas de rodapé) e correções, ao texto-base preparado para palestras proferidas pelo autor no IV Colóquio Luso-Brasileiro de Direito, ocorrido entre os dias 10 a 12 de maio de 2016, organizado pelo Instituto do Direito Brasileiro da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e pelo Instituto dos Advogados de São Paulo – IASP, e também no III Congreso Internacional de Derecho Civil de Huánuco, oorrido entre os dias  27 a 29 de outubro de 2016, organizado pela Universidad de Huánuco, daí sua informalidade.

[2] Tercio Sampaio Ferraz Junior, Juliano Maranhão e Marcelo Finger. WhatsApp mostra a necessidade de regulação da criptografia, disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-ago-16/whatsapp-mostra-necessidade-regulacao-criptografia, publicado em 16.8.2016.

[3] Sobre as referidas decisões judiciais, cfr. reportagem da Revista Consultor Jurídico: Fachin convoca audiência pública para debater bloqueio do WhatsApp, notícia disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-nov-02/fachin-convoca-audiencia-publica-debater-bloqueio-whatsapp2, publicada em 2.11.2016.

[4] A esse respeito, v. a notícia: Fachin convoca audiência pública para debater bloqueio do WhatsApp, notícia disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-nov-02/fachin-convoca-audiencia-publica-debater-bloqueio-whatsapp2, publicada em 2.11.2016. Foram convidados o Instituto Beta para Democracia e Internet, a Federação das Associações das Empresas Brasileiras de Tecnologia da Informação, o Instituto de Tecnologia e Sociedade, o Ministério da Justiça, a Polícia Federal e a Procuradoria-Geral da República

[5] Em tradução livre: “Nenhum homem livre será detido ou preso, nem privado se seus bens, banido ou exilado ou, de algum modo, prejudicado, nem agiremos ou mandaremos agir contra ele, senão mediante um juízo legal de seus pares ou segundo a lei da terra”.

[6] Thiago Rodovalho. Magna Carta ainda continua a inspirar liberdades contra o Estado arbitrário, disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-jun-15/thiago-rodovalho-magna-carta-continua-inspirar-liberdades, publicado em 15.6.15.

[7] Sobre o tema, cfr., entre outros, Thiago Rodovalho. O dever de renegociar no ordenamento jurídico brasileiro, in Fernando Araujo (Dir.). Revista Jurídica LusoBrasileira – RJLB, n. 6, 2015, pp. 1597/1613.

[8] Thiago Rodovalho. Abuso de direito e direitos subjetivos, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 42.

[9] A esse respeito, v. José Joaquim Gomes Canotilho e Vital Moreira. Constituição da República Portuguesa anotada, v. 1 (artigos 1.º a 107), São Paulo/Coimbra: Revista dos Tribunais/Coimbra Editora, 2007 (1.ª edição brasileira e 4.ª edição portuguesa), coment. II CF port. 35.º, pp. 551 et seq.

[10] Sobre o caso, cfr., entre outras, a reportagem da CNBC: Apple vs FBI: All you need to know, notícia disponível em: http://www.cnbc.com/2016/03/29/apple-vs-fbi-all-you-need-to-know.html, publicada em 29.3.2016.

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    é doutorando e mestre em Direito Civil pela PUC-SP, com Pós-Doutorado no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht em Hamburgo, Alemanha. Membro da Lista de Árbitros da CAM-FIEP, do CAESP, da CARB, da CAE, CBMAE, do CEBRAMAR, e da ARBITRANET.

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