Opinião

Há um certo caos nas ações sobre ICMS em operações interestaduais de energia

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12 de novembro de 2016, 10h20

O STF está em vias de julgar o Tema 689 (RE 748.543/RS). Existe, porém, uma diferença entre o que de fato se discute nesse caso, selecionado como paradigma, e o que consta da respectiva decisão que lhe reconheceu repercussão geral. Essas diferenças têm redundado, nos tribunais ordinários, em hesitação quanto ao sobrestamento de processos sobre o mesmo assunto.

O pano de fundo
A Constituição proíbe a incidência de ICMS “sobre operações que destinem a outros estados petróleo, inclusive lubrificantes, combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, e energia elétrica”. Assim, ao menos, prevê textualmente o seu artigo 155, X, “b”.

Uma leitura rápida do enunciado faz crer que o constituinte, por alguma razão, não quis tributar as vendas interestaduais de petróleo e de energia elétrica. O legislador complementar, porém, enxergou no dispositivo uma mera regra de distribuição de competências tributárias e decidiu tributar esse tipo de operação diretamente no destino final. Estariam imunes as saídas de um estado para outro, mas não estariam imunes as entradas, vindas de outro estado. Foi essa orientação que inspirou a Lei Complementar 87/96.

O STF chancelou esse entendimento também ao apreciar o RE 198.088, julgado em 2000.[1] Na ocasião, restou vencido apenas o ministro Marco Aurélio Mello. A questão até parecia resolvida, e o precedente vinha sendo invocado na nossa jurisprudência desde a ocasião: a regra do artigo 155, X, “b”, era vocacionada unicamente ao arranjo de competências tributárias, e não para desonerar, nas “duas pontas”, as remessas de energia.

Quanto ao regime da lei complementar, o legislador livrou da incidência do imposto tão somente as operações interestaduais destinadas à comercialização ou à industrialização. O STJ vinha entendendo que essas ressalvas só se aplicavam quando a própria energia ou o próprio derivado do petróleo fossem comercializados ou industrializados.[2] Se a energia fosse, por exemplo, empregada em processo produtivo de um produto qualquer, o industrial, nesse caso, seria equiparado a um consumidor final e deveria pagar o ICMS.

Em suma, para o STJ, a Lei Complementar 87/96 teria instituído uma espécie de monofasia, em que a incidência do tributo seria diferida para o momento em que a energia ou o derivado do petróleo fossem consumidos, mesmo que em processo industrial.

Ao longo do tempo, houve, portanto, dois pontos de tensão interpretativa no que concerne às operações interestaduais de remessa de energia ou petróleo e seus derivados. Em linhas gerais,[3] cada um desses pontos foi resolvido por um dos tribunais superiores, em consonância com a vocação temática de um e de outro:

a) O STF exarou uma interpretação sobre o significado do artigo 155, § 2º, X, “b”, da Constituição, e concluiu que a competência para tributar pelo ICMS nas operações interestaduais era do Estado de destino.

b) O STJ interpretou os artigos 2º, § 1º, III e 3º, III, da Lei Complementar 87/96, e chegou à conclusão de que apenas se a energia elétrica e o petróleo e seus derivados fossem eles fossem ser comercializados ou industrializados, o ICMS deixava de incidir nas operações interestaduais.

Não é o objetivo deste texto discutir o mérito de cada uma das teses. Por ora, importa apenas que, depois de estabilizado esse cenário, aportou no STF o mencionado RE 748.543/RS, de relatoria do Ministro Marco Aurélio Mello, e foi novamente reconhecida a repercussão geral do tema no STF. A questão é: em que termos?

O RE 748.543
O recurso paradigmático teve origem em uma ação ajuizada por uma fornecedora de energia paranaense, que vendeu energia elétrica a uma indústria gaúcha para emprego em processo fabril, e não pagou ICMS – ao fisco gaúcho – sobre essa operação. Como o Rio Grande do Sul segue a orientação do STJ segundo a qual o imposto só não incide se a energia elétrica for, ela mesma, industrializada, a empresa remetente foi autuada por falta de recolhimento do ICMS.

Foi contra a interpretação conferida pela legislação local à Lei Complementar 87/96 que a empresa investiu inicialmente[4] ao pedir a anulação dos dois autos de infração contra ela lavrados. E a controvérsia seguiu pautada nesses termos, até que, já no STJ, em embargos de declaração, a 1ª Turma do STJ, inovou na discussão e, fazendo inusitada referência ao voto vencido do Min. Marco Aurélio no RE 198.088/SP, aventurou-se na hermenêutica constitucional:

Quando a Constituição se refere a operação ela não está a dizer que a não incidência do ICMS se restringe, apenas, à saída da mercadoria, mas, sim, à saída e à entrada, pois não há operação de circulação sem saída e entrada. Caso o objetivo do legislador constituinte fosse permitir a incidência do ICMS e atribuir a respectiva receita ao Estado destinatário da mercadoria, como quer o embargante, teria se utilizado da mesma técnica que empregou na redação do art. 155, § 2o., IX, a, cuja redação é dotada de maior especificidade. ”

O Estado do Rio Grande do Sul acabou então recorrendo ao Supremo Tribunal Federal, onde os autos foram distribuídos ao próprio ministro Marco Aurélio, que votou pelo reconhecimento da repercussão geral. A decisão de repercussão geral – unânime – e a respectiva ementa, no entanto, trouxeram ainda mais confusão:

IMUNIDADE TRIBUTÁRIA – ARTIGO 155, § 2º, INCISO X, ALÍNEA “B”, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL – ALCANCE – INTERMEDIÁRIA NA AQUISIÇÃO E ALIENAÇÃO DE ENERGIA ELÉTRICA – RECURSO EXTRAORDINÁRIO – REPERCUSSÃO GERAL VERIFICADA. Possui repercussão geral a controvérsia acerca do alcance da imunidade tributária, prevista no artigo 155, § 2º, inciso X, alínea “b”, da Constituição Federal, à intermediária que adquire energia elétrica e a aliena a consumidores no mesmo estado.[5] (grifamos)

Ao contrário do que constou da ementa, a empresa a que a energia estava destinada não era intermediária na operação e muito menos havia qualquer transação envolvendo energia elétrica no mesmo estado. O recurso extraordinário não deixa dúvidas a respeito:

“Isso porque se trata aqui da definição dos contornos materiais da imunidade tributária (ICMS) prevista no artigo 155, § 2º, X, "b", da CRFB, que versa sobre operações que destinem a outros Estados petróleo, inclusive lubrificantes, combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, e energia elétrica. Há, pois, uma questão federativa importantíssima que subjaz ao debate e que se refere à repartição da arrecadação do ICMS no território nacional (Estado da origem ou Estado do destino da operação tributável), na medida em que a finalidade da imunidade sob enfoque é harmonizar a distribuição das receitas tributárias entre os entes federados produtores e os destinatários da energia elétrica.

(…)

A prevalecer, portanto, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, haverá uma subversão do conteúdo finalístico do instituto da imunidade do ICMS sobre remessas interestaduais de energia elétrica, que visam a beneficiar os Estados de destino – e não os consumidores finais (!) –, criando, nas palavras do eminente Ministro Maurício Corrêa, um verdadeiro caos de difícil reparação entre os Estados”

O parecer do PGR, em um parágrafo, também foi mais preciso ao delimitar a controvérsia sub judice:

Originariamente, o recorrido, agente autorizado para compra e venda de energia elétrica no mercado atacadista e sediado no Estado do Paraná, sofreu diversas autuações do fisco do Estado do Rio Grande do Sul, materializadas nos Autos de Lançamento 0012592625 e 0012592633, por ter celebrado contrato de compra e venda de energia elétrica com a Ipiranga Petroquímica S/A, posteriormente sucedida pela Braskem S/A, empreendimento com domicílio fiscal no Estado do Rio Grande do Sul, cujo objeto era o fornecimento de trinta megawatts médios para o processo de industrialização de polietilenos e propilenos pelo período de 1º de janeiro de 2003 a 31 de dezembro de 2006.”

O trecho deixa muito claro que não há nenhuma revenda interna de energia elétrica na discussão. Mais uma vez sem adentrar o mérito da discussão sobre o sentido da regra do artigo 155, § 2º, X, “b”, da Constituição, o que se vê é um franco desencontro entre o que está em discussão no recurso extraordinário e o que consta da decisão que reconheceu a repercussão geral.

A necessidade de revisão da decisão de repercussão geral
Em vista dessa contradição, há um certo caos nos processos que gravitam em torno do Tema 689. Pautados pelo teor equivocado da decisão, os tribunais têm negado o necessário sobrestamento de processos que versam exatamente sobre o tema que está sob análise do Supremo Tribunal Federal, em conformidade com o art. 1.030, III do novo CPC.

Foi, por exemplo, o que aconteceu recentemente, com a 4ª Câmara Cível do TJ-BA. Levada a erro pelo que consta da decisão, negou o sobrestamento de apelação cível porque “o recurso extraordinário apontado como paradigma (RE 748.543) trata da incidência do ICMS quando a energia elétrica é adquirida por intermediária [o que não é verdade!] que a aliena a consumidores do mesmo Estado [o que tampouco é verdade!, enquanto que a hipótese dos autos cuida de operações interestaduais de compra e venda de energia elétrica por consumidor final, no caso a Impetrante/Apelante”. [6]

Como há o risco de que a emenda fique pior do que o soneto a essa altura, e, por outro lado, casos podem ser julgados pelo Brasil na pendência de uma decisão do STF em repercussão geral, o RE 748.543 há de ser julgado o mais rápido possível.


[1] TRIBUTÁRIO. ICMS. LUBRIFICANTES E COMBUSTÍVEIS LÍQUIDOS E GASOSOS, DERIVADOS DO PETRÓLEO. OPERAÇÕES INTERESTADUAIS. IMUNIDADE DO ART. 155, § 2º, X, B, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Benefício fiscal que não foi instituído em prol do consumidor, mas do Estado de destino dos produtos em causa, ao qual caberá, em sua totalidade, o ICMS sobre eles incidente, desde a remessa até o consumo. Conseqüente descabimento das teses da imunidade e da inconstitucionalidade dos textos legais, com que a empresa consumidora dos produtos em causa pretendeu obviar, no caso, a exigência tributária do Estado de São Paulo. Recurso conhecido, mas desprovido.

(RE 198088, Relator(a):  Min. ILMAR GALVÃO, Tribunal Pleno, julgado em 17/05/2000, DJ 05-09-2003 PP-00032 EMENT VOL-02122-03 PP-00618)

[2] REsp 1117139/RJ, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 25/11/2009, DJe 18/02/2010; REsp 1340323/RS, Rel. Ministro ARI PARGENDLER, PRIMEIRA TURMA, julgado em 06/08/2013, DJe 31/03/2014

[3] A bem da verdade, no julgamento do RE 198.088/SP, alguns votos dos ministros do STF chegaram a equiparar o industrial à condição de consumidor, e essa interpretação inspirou também a orientação do STJ. De qualquer forma, por conveniência explicativa, mantenhamos o paralelo entre a controvérsia constitucional e a infraconstitucional.

[4] Segue trecho da inicial: “Quisesse o legislador que a regra interpretada de modo a restringir seu alcance aos casos em que a energia fosse utilizada na industrialização ‘da própria energia’, como apregoa, sem razão, o réu, assim teria procedido, sem qualquer dificuldade, bastando ter acrescentado no dispositivo a menção ‘da própria energia elétrica’.”

[5] RE 748543 RG, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, julgado em 24/10/2013, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-024 DIVULG 04-02-2015 PUBLIC 05-02-2015

[6] Apelação 0521771-71.2014.8.05.0001, 4ª Câmara Cível, Rel. João Augusto Alves de Oliveira Pinto, j. em 19 de abril de 2016.

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