Opinião

Presente e futuro da lei de improbidade no livro do ministro Campbell Marques

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

9 de novembro de 2016, 11h38

O tema da improbidade administrativa é central no direito público brasileiro contemporâneo. Preocupa o cidadão, é permanente aviso para o homem público, municia a imprensa, ronda os tribunais, anima discussões de doutrina. A esperança de que legisladores, julgadores, administradores e servidores públicos sejam efetivamente probos é legítima aspiração de todos nós. Transcende, no entanto, de mera expectativa para a mandatória categoria de obrigação potestativa. É um assunto radical.

Não se trata de dimensão quantitativa — não se gradua alguém como mais, ou menos probo — trata-se de dimensão qualitativa: a probidade é uma condição total, não negligenciável, integral. A responsabilidade para com a coisa pública, para com os superiores princípios éticos e para com a honesta e eficiente alocação de recursos públicos é o pano de fundo e o fundamento do marco legal que regula o assunto. Refiro-me à Lei 8.429, de 2 de junho de 1992, eixo temático do livro que comento em seguida.

O ministro Mauro Campbell Marques, relator de inúmeros processos no Superior Tribunal de Justiça que tratam desse assunto, e de toda a matéria conexa, reuniu, com seu prestígio e respeitabilidade, grupo expressivo de analistas que enfrentam o assunto, com visões e percepções de vários ângulos de exploração dessa importante questão. Esses ensaios estão reunidos em livro editado pela Forense[1], lançado nesta quarta-feira (9/11) em Brasília, no Superior Tribunal de Justiça. (Leitores da ConJur têm 15% de desconto nas obras publicadas pelo Grupo GEN. Para participar, basta, ao confirmar a compra, preencher o campo "Cupom de Desconto" com a palavra "CONJUR")

Entre as nuances do tema da improbidade administrativa exploradas nesse precioso livro elenca-se tópico de interesse da atuação do Ministério Público, e me refiro a ensaio sobre a legitimidade do MP estadual para atuar como parte no STF e no STJ em questões de improbidade[2]. A improbidade e a prerrogativa do foro, assunto de topo da agenda política de hoje, é explorado em ensaio denso, que sintetiza toda a jurisprudência do STF[3]. A relação entre as penalidades da improbidade administrativa e a lei do ficha limpa, foram exploradas à luz do princípio da autonomia das penas[4]. O tema da improbidade, por seus reflexos práticos, tornou-se também matéria de direito eleitoral, como se comprova em inovador ensaio que explica os reflexos da improbidade administrativa na elegibilidade do cidadão[5].

O livro também contém amplo material no qual se discutem problemas processuais, em matéria de competência para processamento de ação civil pública[6], também quando há prejuízos para uma sociedade de economia mista[7]. Cuida-se igualmente do tema da prescrição na lei de improbidade administrativa[8], das medidas de urgência[9], do importante assunto do cabimento da tentativa e aplicação do princípio da insignificância em discussões de improbidade[10] e da interface entre decisões administrativas, penais e civis no contexto da improbidade[11].

Há além disso olhares sobre questões muito pontuais, a exemplo do assédio, moral e sexual, como fatores de responsabilização por improbidade administrativa[12] e da contratação temporária como elemento indicativo de ato de improbidade[13]. O livro dirigido pelo ministro Campbell ainda contempla importantíssimo estudo sobre fórmulas para ressarcimento do Erário, no qual se explora medida necessária e importante para tentativa de redução dos incalculáveis prejuízos decorrentes dos atos de improbidade[14].

As relações entre o due process of law e a situação do demandado foram tratadas em ensaio que cuida e explica do princípio da congruência[15], cujo objetivo é garantir que os litigantes saibam, com “(…) clareza e precisão, o que exatamente lhes é demandado, evitando-se as surpresas do juízo e em juízo, especialmente quando se cuida de processos acusatórios (…)”[16]. A sobriedade da análise nos convida a uma visão equilibrada do assunto, sem histerias e maniqueísmos, porque condição mesma da democracia é a igualdade de armas no processo e um conjunto de premissas que garantam a exploração objetiva e imparcial da verdade.

De minha parte, colaborei com ensaio relativo à responsabilização do advogado público parecerista, pelo conteúdo do parecer, no contexto da lei de improbidade administrativa. Um julgado do ministro Campbell Marques[17] é o fio condutor de minha colaboração, forte na concepção de que não se deve criminalizar a opinião e que a responsabilização, nesse caso, deve ter como pressuposto a comprovação de fraude e de má-fé. O ministro Campbell Marques, com sua iluminada e equilibrada visão sobre o assunto, influenciou na construção da regulação da matéria no Código de Processo Civil e na legislação que afeta o advogado público.

Substancialmente, a improbidade é a contra-face do princípio da moralidade, decorrente de uma categoria ética, da qual se irradiam pautas de comportamento. A correção de desvios é imperativo categórico em uma sociedade democrática, e os fórmulas de correção são de difícil articulação. Isto é, nos termos de nuclear ensaio elencado no livro organizado pelo ministro Campbell, “A prova do ato de improbidade é difícil. Negociatas com dinheiro público são geralmente praticadas à sorrelfa. A preterição do interesse público pelo interesse egoístico não é confessado. A demonstração de sua ocorrência é revelada, assim como a comprovação do desvio de finalidade, por sintomas convergentes e pela análise dos atos da Administração (…), do acervo patrimonial e da conduta dos envolvidos (…)”[18].

A tensão entre valores republicanos de correção e punição e desvios, cotejados com valores também republicanos de devido processo legal e de livre contraditório dão os contornos das discussões judiciais em tema de improbidade administrativa. No foro, o debate transcende de sua formatação doutrinária e se realiza na vida efetiva, pautando a jurisprudência, e firmando um realismo jurídico latente, que precisamos reconhecer como imanente e presente. O estado da arte do problema, como fixado pela dogmática dos tribunais superiores, é definido nos estudos sobre a jurisprudência do STF[19] e do STJ[20].

O livro dirigido pelo ministro Campbell Marques, como todo livro, tende a se desprender de seu tempo. Ainda que seja valioso guia para a discussão e compreensão presente do problema, um “companion” da tradição literária norte-americana, é também um depositório de farto material para os historiadores do futuro. Historiadores do direito de gerações vindouras poderão, na consulta desse precioso livro, captar os problemas morais de nosso tempo, as fragilidades de nossa política, as hesitações de nosso país, algumas de nossas conquistas e muitas de nossas preocupações e tentativas de correção. Se acertamos, ou não, só esses historiadores do futuro poderão dizer, com o benefício do retrospecto histórico.


1 Mauro Campbell Marques (coord.), Improbidade Administrativa- temas atuais e controvertidos, Rio de Janeiro: Forense, 2017.

2 Alessandro Tramujas Assad, A legitimidade dos Ministérios Públicos Estaduais para atuar como parte perante o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça e os reflexos nas ações civis de improbidade administrativa, pp. 1-18.

3 Teori Zavascki, Improbidade administrativa e prerrogativa de foro, pp. 365-379.

4 Rogério Favreto, Improbidade administrativa: penalidades e reflexos na Lei da Ficha Limpa, pp. 343-364.

5 José Antonio Dias Toffoli, Improbidade administrativa e seus reflexos sobre a elegibilidade do cidadão, pp. 159-176.

6 Mauro Campbell Marques e Fabiano da Rosa Tesolin, Aspectos processuais relacionados à competência e ao recebimento da petição inicial da ação civil de improbidade administrativa, pp. 257-274.

7 Arruda Alvim, A competência para processor e julgar ação civil de improbidade administrativa e face de atos praticados em detrimento de sociedade de economia mista federal, pp 77-92.

8 Marcelo Figueiredo, A prescrição na Lei da Improbidade Administrativa, pp. 209-224.

9 Araken de Assis, Medidas de urgência na ação de improbidade administrativa, pp. 39-56.

10 Rodrigo Janot Monteiro de Barros e Silvio Roberto Oliveira de Amorim Junior, O cabimento da tentativa e a aplicação do princípio da insignificância no âmbito da improbidade administrativa, pp. 311-342.

11 Fábio Medina Osório, A inter-relação das decisões proferidas nas esferas administrativa, penal e civil no âmbito da improbidade, pp. 93-112.

12 Humberto Martins, O assédio moral e o assédio sexual, enquadrados como improbidade administrativa: inovação da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, pp. 141-158.

13 Marçal Justen Filho, Contratação temporária e a configuração de ato de improbidade administrativa, pp. 209-224.

14 Alexandre de Moraes, A necessidade de ajuizamento ou de prosseguimento de ação civil de improbidade administrativa para fins de ressarcimento ao erário público, mesmo nos casos de prescrição das demais sanções previstas na Lei 8.429-1992, pp. 19-38.

15 Néviton Guedes, O princípio da congruência na ação civil pública de improbidade administrativa, pp. 275-310.

16 Néviton Guedes, cit., p. 277.

17 STJ, AgRg no Ag 1.297.921-MS.

18 Márcio Fernando Elias Rosa e Wallace Paiva Martins Júnior, A teoria da cegueira deliberada e a aplicação aos atos de improbidade administrativa, p. 227.

19 Gilmar Ferreira Mendes, A improbidade administrativa no Supremo Tribunal Federal, pp. 113-140.

20 Mauro Cambpell Marques, A indisponibilidade de bens em ação civil pública de improbidade administrativa: requisitos e limites na jurisprudência do STJ, pp. 241-256. 

Autores

  • Brave

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela USP e doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP. Tem MBA pela FGV-ESAF e pós-doutorados pela UnB e pela Boston University. Professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

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