Opinião

Governo é eterno perigo para a liberdade de imprensa

Autor

8 de novembro de 2016, 5h15

“Daí-me a liberdade para saber, para falar e para discutir livremente, de acordo com a consciência, acima de todas as liberdades.”[1]

O jornalista espanhol Domingo del Pino relata em seu livro sobre a guerra civil libanesa que quando as tropas sírias invadiram o Líbano em 1976, em meio ao conflito, por ordens do então presidente Hafez Al-Assad, teve início “uma vasta campanha de repressão aos meios de informação.”[2] Segundo ele, “as primeiras unidades sírias que entraram no Líbano no começo de 1976 haviam-se dedicado como providência inicial a silenciar toda a imprensa que era hostil ao regime baasista sírio.”[3](sem grifos no original)

Esse episódio é testemunho do eterno perigo que o governo representa para a liberdade de imprensa: de todas as liberdades, parece ser ela aquela que o governo procura por primeiro suprimir. E esse perigo é tanto maior quanto mais sutis e velados se tornam os meios pelos quais o governo procura atingir esse intento.

Esses meios sutis e velados a que me refiro muitas vezes se manifestam mediante fórmulas eufemísticas, tais como “regulação”. Esse breve panfleto a favor da liberdade de imprensa procurará desmentir essa falsa necessidade de regulação e o fará de duas maneiras: primeiro explicando o funcionamento da produção jornalística e televisiva; em seguida, explicando porque qualquer contato do governo com os meios de comunicação jamais poderá produzir qualquer benefício.

Muitos são aqueles que defendem a regulação da mídia[4] sob a alegação de que, ao divulgar as matérias que divulga e da forma como divulga, ela incentiva a violência, a desinformação e o falseamento da realidade. Há aqui, na verdade, uma má compreensão do fenômeno. O economista austríaco Von Mises dizia que “não é porque existem destilarias que as pessoas bebem uísque, é porque as pessoas bebem uísque que existem destilarias.” Ou seja, primeiro aparece a demanda por algo, para depois surgirem aqueles que irão satisfazer essa demanda. Com a imprensa não é diferente: são as preferências dos leitores que determinarão o que ela publicará, e não o contrário. Se ela desvia por um momento sequer daquilo que as pessoas gostam de ler, ver e ouvir, ela deixará de faturar. O sociólogo francês Gustave Le Bon, ao estudar a Psicologia das multidões, chegou à mesma conclusão:

Quanto à imprensa, que antes dirigia a opinião, ela teve, assim como os governos, de ceder lugar ao poder das multidões. Seu poder é decerto considerável, mas somente porque reflete exclusivamente as opiniões populares e suas incessantes variações. (…). Segue todas as mudanças do pensamento público, e as exigências da concorrência obrigam-na a isso sob o risco de perder leitores.[5]

Se, portanto, subitamente brotasse nas pessoas um ávido interesse pelos sonetos de Shakespeare, estes não tardariam em aparecer nas primeiras páginas dos jornais. Nisto reside a incompreensão a respeito da imprensa e aquilo que é por ela diariamente publicado.

No que se refere à regulação da imprensa, nada mais prejudicial a uma nação do que um governo estabelecendo aquilo que deve ou não deve chegar ao conhecimento do público. Benjamin Constant bem observou os efeitos de tal prática:

“Uma religião professada por governo implica perseguição, mais ou menos disfarçada, a todas as outras. O mesmo ocorre com opiniões de qualquer tipo.”[6]

Ora, se aqueles que defendem a regulação da imprensa o fazem sob o fundamento de que ela falseia a realidade e persegue opositores, o que lhes assegura que nas mãos do governo seria diferente? Digo-lhes que não só não seria diferente mas, também, que seria muito pior.[7] E, como dito alhures, o perigo é hoje ainda maior do que outrora, pois não raro as investidas contra essa liberdade vêm disfarçadas em termos jurídicos e pomposos.

De se lembrar que há sempre a possibilidade de responsabilização a posteriori daqueles que se excederem no exercício da profissão do jornalismo. O que se afigura arbitrário e antidemocrático é a imposição de controle a priori desse mister.

Em realidade, se o que se pretende é diminuir o poder da imprensa, a própria liberdade que se lhe dispensa é o suficiente, como bem observou Tocqueville:

“Qual é, segundo vossa opinião, o meio para diminuir o poder da imprensa periódica? Estou perfeitamente convicto de que o mais eficaz de todos é multiplicar tanto quanto seja possível o número de jornais, e processá-los só em casos extremos. Sua força diminui à medida que eles são mais numerosos.”[8](sem grifos no original)

O benefício supremo da liberdade de imprensa é prover as pessoas com opiniões, ideias e pensamentos de todos os tipos, favorecendo o pluralismo e a crítica. E não há dúvidas de que a sua regulação pelo governo certamente privaria a humanidade desse benefício.

E não se deve jamais esquecer que, com todos os danos que ela possa eventualmente provocar, “a imprensa é um instrumento tal que a liberdade não pode mais viver sem ela.”[9] Cuidemos dela, portanto, pois é nela que repousa a resistência dos povos contra a tirania. 


[1] MILTON, John. Areopagítica:Discurso pela liberdade de imprensa ao parlamento da Inglaterra. Editora Topbooks, p.169.

[2] DEL PINO, Domingo. A tragédia do Líbano: retrato de uma guerra civil. Editora Clube do Livro, p.120.

[3] Op. cit. p, 120.

[4] Veja aqui a opinião do jurista Celso Antônio Bandeira de Mello, que chega a defender abertamente a censura sem nenhum constrangimento: http://www.conjur.com.br/2012-ago-12/entrevista-celso-antonio-bandeira-mello-advogado-constitucionalista.

[5] LE BON, Gustave. Psicologia das multidões. Editora Martins Fontes, p. 139.

[6] CONSTANT, Benjamin. Princípios de política aplicáveis a todos os governos. Editora Topbooks, p. 509.

[7] Basta notar o que ocorre em países como a Coréia do Norte, Cuba, Venezuela e a própria Síria.

[8] TOCQUEVILLE, Alexis de. Viagem ao Estados Unidos. Editora Hedra, p. 47.

[9] CONSTANT, Benjamin. Princípios de política aplicáveis a todos os governos. Editora Topbooks, p. 203.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!