Opinião

Incentivo à delação não pode servir de arapuca para se obter um processo

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7 de novembro de 2016, 5h42

Em Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski, o personagem Rodka Raskonikov, condenado psicologicamente e, após, confessar-se com Sônia, uma prostituta que lhe sugere a confissão de um crime, arrependido, vai diante do juiz de instrução Porfiri Pietróvitch e confessa ser ele o verdadeiro autor do crime e não Nikolai. A confissão traz um alívio psíquico a quem confessa e afasta os riscos de um duelo com a força estatal. Na colaboração ou delação premiada, o candidato que manifesta a vontade de cooperar está compelido a confessar o crime e a indicar fatos e provas, inclusive, que comprometam coautores, passando o juiz a tudo conhecer.

A Lei 12.850/13 incentiva à colaboração, estimulando a busca pelo alívio da confissão e cria a expectativa de ser o delator acolhido pelo Estado, recebendo pena leve e quiçá o perdão judicial. A boa-fé objetiva, que emerge de princípios constitucionais e de dispositivo literal da Codificação Civil e Processual Civil, é inseparável do Estado de Direito, cuja viga mestre se exprime no Contrato Social, o qual irradia deveres anexos, como o dever de lealdade e cuidado, o que é abraçado pelo Código de Processo Penal, por autorizar o diálogo das fontes com os citados princípios e subsidiariamente de normas infralegais.

A boa-fé recai não apenas sobre a acusação e a defesa, mas, também, sobre o julgador. Logo, o incentivo à delação não pode servir de arapuca para se obter um processo crime ou condenações, pois, a não homologação da colaboração sujeita o cooperador a ser julgado adiante por quem já formou a convicção sobre a sua pessoa e culpa. Ou seja, pode haver recusa de ser homologada a proposta de delação que não atender aos requisitos legais, ou não se adequar ao caso concreto, porém, nada diz a lei quais são os direitos e as garantias fundamentais do devido processo penal, que dão guarida à imparcialidade e à neutralidade do juiz, no caso de haver a comentada recusa, pois , a partir daí já houve o conhecimento de confissão, de fatos e de provas, independentemente de a lei dar a entender que cabe ao juiz apenas fiscalizar se o acordo de delação preenche ou não os requisitos necessários à homologação.

Quem irá sentenciar o reprovado candidato a cooperador não apaga da mente o que já soube sobre o crime, parecendo ser utópico pensar que fatores internalizados no Ser-juiz não irão influenciar uma tomada de decisão judicial, ainda, que, inconscientemente, exteriorizando certa irracionalidade ao decidir, que não raras vezes é ocultada na motivação e na fundamentação da decisão judicial. A própria lei faz surgir o risco de que o futuro julgado deixe de ser legalista e se transmute em ato moralizante, com o auxílio do rebusque jurídico para ocultar a verdadeira subjetividade da condenação.

Inexiste no Brasil, o juízo de garantias, que busca distanciar o Estado-juiz da contaminação com a fase investigativa de um crime, como ocorre na Europa e em alguns poucos países na América do Sul. Imagine-se, então, uma ação penal que coloca sobre os ombros do juiz o clamor público e midiático, a pressão social e política, que queira fazer vingança social ou política, não homologando a colaboração, ou se alicerçando no fato de que outros colaboradores já trouxeram informações e documentos mai s do que suficientes para julgar. A não homologação leva a crer que o candidato reprovado iniciará a ação penal já condenado pelo olhar punitivo da acusação e do julgador.

A dignidade da pessoa humana sobreposta pela violência de Leviatã, tornando utópicas a Carta Constitucional, as normas internacionais, as infralegais — que se pautam por uma ordem jurídica justa e imparcial —, a teoria da aparência da justiça — que protege a imparcialidade subjetiva e a objetiva para que a sociedade não crie qualquer dúvida sobre o julgamento de um Ser-juiz —, e a neutralidade do juiz — que na hipótese específica de delação, talvez careça de ser revista pela doutrina e jurisprudência, cujo reconhecimento está hoje à mercê só de casos ululantes. Hipoteticamente, pode-se pensar no caso de interessado que pretende fazer a delação premiada, em específica operação e na qual já há outras colaborações homologadas e prestes a serem homologadas em estágio já avançado de homologação. Diante de tal cenário, cooperar pode levar à estar entre a Cruz e a Espada, algo semelhante ao que ocorre na justiça americana, onde se aceita o acordo com a acusação, para se evitar injusta condenação ou maior que a justa, por decorrência da dificuldade que se tem de provar a inocência ou a condenação na medida de sua culpabilidade.

Enfim, colaborar em cenário tão difícil, pode criar o risco ao candidato a cooperar de sofrer até a Corte Maior, anos e mais anos, de pena contaminada por aquilo que confessou e foi fornecido na delação, sem homologação — e sem que o prejulgamento da culpa, já feito bem antes do último ato da defesa, que precede a sentença criminal, transpareça na decisão —, ou colaborar para obter a não homologação e partir para atacar a parcialidade e ou a perda de neutralidade de quem o julgará. Lado outro, por economia processual, também, parece surgir duas alternativas. Afastar-se o juiz da ação penal que sobrevém a não homologação, ciente de que não está livre de fatores intrínsecos e extrínsecos que acarretam o atuar com poder discricionário e até arbitrários incitados por ardente carga moral, ou acomodar o velho e o já sabido de outros delatores, com aparência de novo, para, alternativamente, homologar a delação. No mais, resta à opção de não delatar e provar a inocência, hoje presumida até a segunda instância e não como regra a Constituição Federal.

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