MP no Debate

Chegou a hora de ampliarmos, com seriedade, o debate sobre a educação

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7 de novembro de 2016, 7h00

Dois temas educacionais têm suscitado discussões em nosso país atualmente: a reforma do ensino médio, com propostas de flexibilização do currículo escolar nessa fase (permite ao aluno escolher áreas do conhecimento de acordo com sua vocação e projeto de vida) apresentada pelo governo federal via medida provisória, e a “Escola sem Partido”, no qual escolas públicas e particulares seriam impedidas de doutrinação política e ideológica, assim como quaisquer outras condutas do corpo docente ou administrativo escolar que imponham ou induzam ao alunado opiniões político-partidárias, religiosas ou filosóficas, proposta feita por pais e simpatizantes e que pretendem se torne lei (municipal, estadual ou mesmo nacional).

Reconhecemos que são pautas na agenda da sociedade e devem ser discutidas da forma mais ampla possível.

Todavia, não pretendemos evoluir muito no cerne desses temas em razão da limitação espacial de que dispomos e, também, porque pretendemos explorar alguns pontos relevantes que os antecedem ou circundam.

Para essas reflexões, adotamos a separação conceitual entre educação e instrução ou ensino[1], aquela de âmbito bem maior que estes; a educação entendida como um trabalho de formação de personalidades, de formação para o exercício da cidadania, enquanto a instrução é tida como a mera transmissão de conhecimentos, de técnicas e habilidades.

Sobre a educação, optamos pela concepção que pode ser sintetizada nas conclusões da comissão internacional sobre educação para o século XXI, sob o título Educação – Um Tesouro a descobrir, comumente conhecido como Relatório Jacques Delors, produzido pela Unesco, in verbis: "Tudo nos leva, pois, a dar novo valor à dimensão ética e cultural da educação e, deste modo, a dar efetivamente a cada um, os meios de compreender o outro, na sua especificidade, e de compreender o mundo na sua marcha caótica para certa unidade. Mas antes, é preciso começar por se conhecer a si próprio, numa espécie de viagem interior guiada pelo conhecimento, pela meditação e pelo exercício da autocrítica"[2].

A magnitude do direito à educação obriga um olhar mais alargado para os sérios problemas educacionais que enfrentamos (será que enfrentamos mesmo?) que vão muito além dos propostos neste texto.

Nos parece que algumas ideias — como as duas acima referidas — são lançadas na mídia e apresentadas por meio de propostas legislativas como verdadeiras “cortinas de fumaça” para encobrir as reais mazelas no nosso sistema de ensino.

Basta notarmos alguns pontos.

O primeiro é a distância entre os discursos, sempre encharcados de conteúdo político partidário, daqueles que são ou já foram responsáveis por estabelecer políticas educacionais.

Na edição de 16 de outubro, na seção "Tendências e Debates", da Folha de S.Paulo, dois articulistas se confrontam sobre as reformas do ensino médio: José Mendonça Bezerra Filho — atual ministro da Educação e ex-deputado federal e governador de Pernambuco, ou seja, ao que se saiba sem qualquer vinculação profissional com a educação — e Fernando Haddad — prefeito de São Paulo e ex-ministro da Educação e com experiência no magistério (não sei se com o estudo da educação).

O primeiro lança sobre o segundo a responsabilidade por termos um sistema de baixa qualidade, com os piores resultados de aprendizagem da educação básica, no qual 25% dos jovens de 17 anos estão fora da escola (algo em torno de 1 milhão de pessoas), e muitos sabem, atualmente, menos português e matemática do que em 1997, segundo o Ideb.

Já o segundo vangloria-se de ter atingido, em sua gestão, patamar de qualidade de educação de país desenvolvido, com todas as metas atingidas ou superadas, compensando o “desastre dos dez anos precedentes”.

Afinal, em que dados devemos acreditar? Quem está levando a educação, de fato, a sério?

Quais as reais esperanças de que a educação alcançará, para todos, os seus quatro pilares traduzidos pelo mencionado relatório Delors como aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a ser e aprender a viver junto?

E as escolas cumprem seu papel?

A nova proposta — que não é tão nova assim, se retomarmos os filósofos clássicos — é de uma escola inclusiva, uma escola para todos, independentemente dos talentos, deficiência, origem socioeconômica ou cultural dos seus integrantes (as crianças refugiadas já são uma realidade entre nós), escolas e salas de aula provedoras, local onde todas as necessidades dos alunos são satisfeitas. Um ambiente democrático por excelência.

Sua tarefa é levar a criança a “ser”, a se descobrir e a afirmar sua existência, fixando seu centro na ampliação de conhecimento de si próprio (e lembramos Sócrates: conhece-te a ti mesmo), do outro, do tempo e do espaço do seu existir.

Infelizmente, nada ou muito pouco disso é o que temos visto.

O mercantilismo educacional corre solto (grandes conglomerados dominando o ensino superior privado). E ainda se quer interferir, negativamente, nesse ambiente que deve ser democrático, para restringir ao aluno o acesso a informações importantes, como a História brasileira e mundial (história que minha querida professora da pós-graduação na PUC Maria Garcia sempre lembra ser psicanalítica, por permitir que se entenda muito do passado e do presente), ou a ideologias que, por definição, significam uma “visão de mundo”.

Outro ponto importante: há estreita relação entre educação e economia (educação de qualidade custa caro, e uma boa economia pública facilita isso).

Como pensar em educação num país impregnado de uma corrupção sistêmica que desfalca bilhões que deveriam ser destinados à melhora da educação? E querem congelar os investimentos por 20 anos.

Um fenômeno recentemente revelado em estudo do Banco Mundial (relatório Fora da Escola e Fora do Trabalho: Risco e Oportunidade para os ‘nem-nem’ latino americanos) e trazido por Jorge Familiar, seu vice-presidente para a América Latina e o Caribe, em matéria jornalística  também publicada na Folha de S.Paulo[3], aponta que um em cada cinco latino-americanos entre 15 e 24 anos (adolescentes e jovens, para nossa realidade) acorda pelas manhãs sem ter uma escola para frequentar ou um trabalho remunerado, engrossando o caldo dos chamados “nem-nem” (nem estuda nem trabalha) e que representam 20 milhões de pessoas.

Entre os principais fatores para a ocorrência desse fenômeno estão restrição econômica, gravidez precoce, violência ou baixas expectativas, o que traz às claras o amplo espectro de fatores que influenciam para o bom desenvolvimento da educação em um país[4].

Sem dúvida que essa é também nossa realidade, e pouco ou nada se discute a respeito.

Chegou a hora de ampliarmos, com seriedade, o debate sobre a educação, em âmbito nacional e com participação de todos os protagonistas desse processo, sem nos deixarmos render a dizentes “especialistas”, que muitas vezes estão mais preocupados com a “casa” do que com a “causa”.


[1] Derivado de ensinar, do latim insignare: ministrar o ensino de, instruir, lecionar (Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. Novo Dicionário da Lingua Portuguesa, 1ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980, p.532.  
[2]UNESCO. Educação – Um tesouro a descobrir, 5ª ed. São Paulo: Cortez. Brasília: MEC, 2001, p.16.
[3] Em "Tendências e Debates", de 7 de fevereiro de 2016.
[4] Esse estado de coisas ajuda a perpetuar a desigualdade intergeracional porque a carência de educação e habilidades técnicas tende a mantê-los em condições de baixa renda de uma geração para a seguinte. Como as meninas representam, segundo o relatório, dois terços dos “nem-nem”, é importante o desenvolvimento de uma política pública com programas escolares para evitar a gravidez e as iniciativas que visem ajudar as grávidas e as mães das adolescentes a permanecerem na escola.

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