Opinião

A perempção e as possibilidades trazidas pelo novo regime da coisa julgada

Autores

  • Ravi Peixoto

    é doutor em direito processual pela Uerj mestre em Direito pela UFPE procurador do município do Recife professor da Faculdade de Direito do Recife (UFPE) e advogado.

  • M.Y.Minami

    é professor de Processo Civil (FAP-CE e URCA-CE) doutorando e mestre (UFBA) em Processo Civil. É técnico judiciário (TRE-CE) e membro da Associação Norte e Nordeste de Professores de Processo (Annep).

5 de novembro de 2016, 6h07

1. Da coisa julgada
A coisa julgada é, para usar expressão da lei, “a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso” — artigo 502, CPC/2015. Ao falar de autoridade, como bem lembra Cabral, o legislador quis fugir da discussão sobre se a coisa julgada é ou não eficácia[1]. Não sendo o momento para esse debate, o fato é que a lei traz os dois aspectos principais da coisa julgada: a imutabilidade e a indiscutibilidade. A primeira proíbe sua alteração posterior, seja pelas partes, seja por outros órgãos do próprio Judiciário ou pelos outros poderes (funções) do Estado. A indiscutibilidade trata da impossibilidade de rediscussão da matéria.

A coisa julgada, nos termos dos artigos 502 e 503, recai sobre a decisão de mérito. Topograficamente, essa decisão de mérito consta no dispositivo. Assim, tradicionalmente, a parte da decisão que não apenas resolve o caso, mas torna-se indiscutível e imutável, é o dispositivo. Eis o que se costuma chamar de limite objetivo da coisa julgada. Contudo, o Código de Processo Civil de 2015 inovou na matéria permitindo a extensão da coisa julgada para além do dispositivo em algumas situações[2].

Conforme o parágrafo 1º do artigo 503 do CPC/2015, as questões prejudiciais, mesmo decididas incidenter, ou seja, na fundamentação da decisão, são aptas à coisa julgada. É um novo paradigma para nosso direito.

O objetivo da alteração legislativa seria o de coibir a contradição lógica tornada possível pelo sistema anterior, além de impedir que uma determinada questão, originariamente discutida em um processo como prejudicial, possa ser rediscutida e decidida diferentemente em ações futuras[3]. Pela sistemática do CPC/1973, não ajuizada a ação declaratória incidental, seria possível imaginar a seguinte situação: em uma primeira ação, o juiz considera válido um contrato em uma demanda que questiona a inadimplência de juros. Em outra ação, acerca do mesmo contrato em que a parte venha requerer a compensação pelo inadimplemento dos termos do acordo, poderia considera-lo inválido. Assim, a alteração dos limites objetivos teria por objetivo impedir a existência de decisões conflitantes sobre uma mesma situação concreta.

A ocorrência dessa coisa julgada para além dos limites tradicionais — coisa julgada especial — requer o preenchimento de alguns pressupostos. Eles estão previstos nos parágrafos 1º e 2º do mesmo artigo 503. São cumulativos e em número de cinco:

a) a questão prejudicial resolvida incidenter a ser albergada pela coisa julgada deve ser imprescindível para a solução da questão principal. Ela não deve ser apenas relevante a ela, mas necessária[4]. Assim: a paternidade como prejudicial para alimentos; a validade de um contrato como prejudicial à sua cobrança; relação de emprego como prejudicial de uma cobrança de verbas trabalhistas;

b) deve ter havido decisão expressa sobre tal questão. Não há coisa julgada de questão prejudicial incidente implícita;

c) deve ter ocorrido contraditório prévio e efetivo, proibindo-se a formação desse tipo de coisa julgada em caso de revelia;

d) o órgão judicante deve ter competência absoluta para resolver a questão prejudicial caso ela viesse em análise principaliter;

e) por fim, o procedimento não pode conter qualquer restrição probatória, pois sem um devido contraditório não se pode cogitar de uma preclusão máxima sobre questão prejudicial incidental.

É importante salientar que a formação da coisa julgada prejudicial incidental independe de pedido. Se a questão é resolvida incidenter, é justamente porque não se fez sobre ela qualquer pedido. Essa conclusão é importante para nossas conclusões. Prossigamos.

2. Perempção
A perempção é uma espécie de caducidade. O prejudicado pela perempção não pode ingressar com uma ação caso tenha ingressado com essa mesma ação por três vezes e tenha abandonado o processo em todas elas (artigo 486, parágrafo 3º, CPC).

A perempção é um efeito anexo da terceira sentença fundada em abandono da causa[5]. Perde o autor o direito de levar aquela mesma demanda ao judiciário pela quarta vez, mesmo que por reconvenção[6]. Note-se que a vedação dirige-se apenas aos casos em que aquela demanda específica é veiculada como pedido em uma outra ação, não se impedindo que ela volte a ser analisada pelo Poder Judiciário a título de defesa ou mesmo a título de questão prejudicial/preliminar.

Importante, nesse contexto, as lições de Didier Jr.:

O que perime, porém, não é o direito de ação, muito menos o direito material litigioso. Perde o autor o direito de demandar sobre aquela mesma situação substancial […]. A pretensão material do autor resta incólume: ele poderá deduzi-la como matéria de defesa, como contradireito (exceção substancial; compensação, por exemplo), caso venha a ser demandado[7].

A perempção nada mais é do que sanção aplicada pelo abuso do direito do autor. Ele teve três oportunidades para agir e, em todas elas, não deu seguimento ao processo iniciado.

3. Perempção e coisa julgada da questão prejudicial incidental
A perempção impede pedido sobre determinada questão, mas não impede sua análise no processo. Prova disso é a própria menção do parágrafo 3º do artigo 486 possibilitando alegação da matéria perempta em defesa.

Um exemplo facilita a compreensão.

Imagine que alguém tenha ingressado por três vezes com ação de investigação de paternidade e, nas três vezes, tenha abandonado a causa. Não poderá propor, pela quarta vez, a mesma ação. Isso não impede, contudo, a análise da questão paternidade em processos futuros. O mesmo autor pode ajuizar ação de alimentos cuja questão prejudicial seja justamente a paternidade. Ele só não poderia realizar a cumulação de pedidos (reconhecimento da paternidade e condenação ao pagamento de alimentos).

Impede-se, com isso, que, sendo autor, a parte possa ter aquela questão acobertada pelo regime comum da coisa julgada. Entretanto, o CPC/2015 permite uma nova estratégia processual que faça com que aquele tema, vedado de ser reproposto principaliter, possa ser acobertado pela coisa julgada. E essa seria o regime especial da coisa julgada, voltado às questões prejudiciais (artigo 503, parágrafo 1º).

É que, como vimos, a formação de coisa julgada da questão prejudicial incidental independe de pedido. Se determinado ponto for analisado na fundamentação, nos termos dos parágrafos 1º e 2º do artigo 503, tornar-se-á imutável e indiscutível.

No exemplo utilizado, não será mais possível ao interessado ingressar com ação de investigação de paternidade autônoma ou mesmo cumulá-la com o pedido de alimentos. Caso o faça, pela ausência de um dos pressupostos processuais, a ação deverá ser extinta. Mas a coisa julgada sobre a matéria ainda será possível. Basta que o autor ingresse com outra ação submetendo a matéria impedida de ser veiculada em ação autônoma como questão prejudicial incidental. Nesse caso, a coisa julgada poderá ser formada, apenas o seu regime será diverso. Assim, ainda no nosso exemplo, se o autor ingressar com ação de alimentos, poderá obter coisa julgada acerca da paternidade, desde que ela seja analisada nos termos dos parágrafos 1º e 2º do artigo 503.

Eis mais um dos efeitos colaterais da coisa julgada de questão prejudicial incidental que aos poucos vão surgindo, permitindo uma nova estratégia processual e que, certamente, não foram pensados quando da redação do dispositivo legal.


[1] CABRAL, Antonio do Passo. Comentários ao art. 503. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Breves comentários ao Novo Código de Processo Civil/ Tereza Arruda Alvim Wambier… [et al.], coordenadores. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 1281.
[2] É curioso ressaltar que o CPC de 1939 tratou do tema em seu art. 287: “A sentença que decidir total ou parcialmente a lide terá força de lei nos limites das questões decididas. Parágrafo único. Considerar-se-ão decididas todas as questões que constituam premissa necessária da conclusão”.
[3] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. O que é abrangido pela coisa julgada no direito processual civil brasileiro: a norma vigente e as perspectivas de mudança. Revista de Processo. São Paulo: RT, abr.-2014, p. 81.
[4] CABRAL, op. cit., p. 1292.
[5] DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 17. ed. Salvador: Ed. Jus Podivm, 2015, v. 1, versão eletrônica.
[6] Idem, ibidem.
[7] Idem, ibidem.

Autores

  • Brave

    é advogado e procurador do município de João Pessoa, além de mestre em Direito pela UFPE e membro da Associação Norte e Nordeste de Professores de Processo (Annep), do Centro de Estudos Avançados de Processo (Ceapro), da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro) e do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP).

  • Brave

    é professor de Processo Civil (FAP-CE e URCA-CE), doutorando e mestre (UFBA) em Processo Civil. É técnico judiciário (TRE-CE) e membro da Associação Norte e Nordeste de Professores de Processo (Annep).

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