Opinião

Presunção de inocência do réu não pode ser abalada por notícias

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5 de novembro de 2016, 6h30

O princípio da inocência implica o tratamento daquele envolvido na persecução penal como se fosse inocente (ZANOIDE DE MORAES, 2010, p. 427); contudo, no momento da law in action imputado está sujeito a situações que não tem paralelo fora da análise do caso penal; apenas na concretude dos atos do procedimento penal é que é possível a efetivação do princípio de inocência. Nesse artigo serão analisados o estado da arte de dois pontos específicos relacionados a esse princípio: a carga probatória no processo penal e a interferência da mídia na aferição da verdade processual. Ver-se-á que o princípio de inocência tem, em sua realização, uma função interna, referente aos sujeitos da persecução penal, e uma função externa, referente àqueles atores que não atuam diretamente no caso penal. Para tanto, serão confrontados diversos entendimentos da literatura jurídica com o do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais internacionais.

1. O princípio da inocência como regra probatória
O reconhecimento da autoria de um delito exige sentença condenatória transitada em julgado (artigo 5°, LVII, da Constituição). Antes disso, o imputado deve ser tratado como inocente. Cabe à acusação a carga probatória da demonstração de eventual culpa, além do que a prisão cautelar só pode ocorrer em situações excepcionais e de extrema necessidade.

Do princípio da inocência derivam-se duas regras (LIMA, 2011, p. 15): regra de tratamento (“ninguém será considerado culpado senão depois de sentença com trânsito em julgado”); e regra probatória ou de juízo in dúbio pro reo. O que é confirmado no artigo 386, VI e VII do Código de Processo Penal.

Verifica-se que na ponderação entre o direito de punir do Estado e o status libertatís do imputado, este último deve prevalecer. Este princípio mitiga, em parte, o princípio da isonomia processual, o que se justifica em razão do direito à liberdade envolvido – e dos riscos advindos de eventual condenação equivocada.

Na ordem internacional, o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, no seu artigo 66, enfatiza a regra do in dubio pro reo, bem como na Convenção Americana de Direitos Humanos no seu artigo 8º.

Por outro lado, para a maioria da doutrina (AVENA, 2014; RAMOS, 2014), o ônus da prova é bipartido quando se refere às excludentes de ilicitude; neste caso, a prova incumbiria à defesa, conforme afirma André de Caralho Ramos: “Ainda no processo de conhecimento, a presunção de não culpabilidade exige que a culpa do indivíduo seja demonstrada por provas requeridas pelo Acusador (in dubio pro reo), restando somente à defesa provar fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do autor (as chamadas exculpantes). Essa faceta da presunção de não culpabilidade é adotada pelo STF, como se vê nesse precedente: “(…) Não encontro justificativa alguma para que se inverta, em processo penal de condenação, o ônus da prova. Entendimento diverso, a meu ver, implicaria evidente ofensa à presunção constitucional da não culpabilidade (artigo 5º, LVII)” (HC 95.142, voto do relator ministro Cezar Peluso, julgamento em 18-11-2008, 2ª Turma, DJE de 5-12-2008).”.

Em sentido contrário, Aury Lopes Junior (2014): “a partir do momento em que o imputado é presumidamente inocente, não lhe incumbe provar absolutamente nada. Existe uma presunção que deve ser destruída pelo acusador, sem que o réu (e muito menos o juiz) tenha qualquer dever de contribuir nessa desconstrução (direito de silêncio – nemotenetur se detegere). (…) É importante recordar que, no processo penal, não há distribuição de cargas probatórias: a carga da prova está inteiramente nas mãos do acusador, não só porque a primeira afirmação é feita por ele na peça acusatória (denúncia ou queixa), mas também porque o réu está protegido pela presunção de inocência”.

O Supremo Tribunal Federal enfatiza que havendo dúvida quanto às atenuantes e as causas de diminuição de pena observa-se o princípio da presunção de inocência em seu vetor probatório. Por outro lado, de forma no mínimo incoerente, entende que as causas de exclusão de ilicitude e culpabilidade são ônus do acusado em prová-las (HC 103.225 e RE 133.489).

Noutro giro, no que toca a decisão de pronuncia e revisão criminal, conforme jurisprudência pátria e maioria da doutrina (AVENA, 2014; CAPEZ, 2014), o in dubio pro reo não incide, adotando-se, neste momento, o in dubio pro societate. Assim, enquanto persistir a dúvida, a decisão condenatória deveria ser mantida (STF, RE 540.999 e STJ, AgReg no AI 1.304.510).

No caso da revisão criminal, em função da segurança jurídica, prevalece o entendimento de que “na ação revisional, incumbe ao autor que a promove o ônus probandi, competindo-lhe fornecer ao juízo competente os elementos instrutores indispensáveis a comprovação dos fatos arguidos. E do peticionário, em sede revisional, o ônus de destruir a presunção de veracidade e de certeza que decorre da sentença penal condenatória transitada em julgado.” (HC 68.437).

Em sentido contrário, Aury Lopes Jr. (2014) rechaça a possibilidade da aplicação do in dubio pro societate na pronúncia bem como na revisão criminal: “Ou seja, além de não existir a mínima base constitucional para o in dubio pro societate (quando da decisão de pronúncia), é ele incompatível com a estrutura das cargas probatórias definida pela presunção de inocência. A questão foi tratada com muito acerto por RANGEL, que ao atacar tal construção, afirma que o chamado princípio do in dubio pro societate não é compatível com o Estado Democrático de Direito, onde a dúvida não pode autorizar uma acusação, colocando uma pessoa no banco dos réus. (…) O Ministério Público, como defensor da ordem jurídica e dos direitos individuais e sociais indisponíveis, não pode, com base na dúvida, manchar a dignidade da pessoa humana e ameaçar a liberdade de locomoção com uma acusação penal” (2014).

Visto que a carga probatória no processo penal é da acusação, e que a dúvida deve favorecer o réu, passaremos a analisar a influência da mídia na aferição da verdade processual para podermos considerar se a atuação midiática vem sendo constitucional ou não.

3. A criminologia midiática
A influência da mídia no sistema penal é inegável, e, especialmente após a manipulação do medo realizada pelo governo americano pós-11 de setembro, os estudos da relação entre o sistema penal e a mídia se intensificaram; segundo Zaffaroni, primeiro “A criminologia midiática cria a realidade de um mundo de pessoas decentes frente a uma massa de criminosos, identificada através de estereótipos que configuram um eles separado do resto da sociedade, por serem um conjunto de diferentes e maus” (2012, p. 307).

Depois a mídia cria estereótipos por semelhança – o eles, o inimigo, assim, não é o autor de um fato, mas toda a classe estereotipada a qual um indivíduo acusado de determinado comportamento “pertença”; pela ação de um, toda uma classe que nunca cometeu qualquer delito – e nem vai cometer – é colocada no rol dos “inimigos”.  A ideia é que se um adolescente de um bairro pobre roubou alguém, então amanhã um outro “parecido” com ele fará o mesmo – portanto, seria necessário isolá-los a todos, por prevenção [sic.]. Mais que criar classes de “inimigos”, a criminologia midiática incentiva associações como se o “eles” fossem os responsáveis por todas as mazelas da sociedade – a prisão de um adolescente negro e pobre, é apresentada como se fosse realmente alterar a vida de milhões de pessoas; ele é um bode mágico expiatório. E as classes “inimigas” são constantemente ampliadas pela mídia: são os traficantes, os favelados, os policiais, os juízes, os menores, os pobres, os vândalos, os banqueiros, os políticos… – enfim, somos todos nós, etiquetados numa classe de “inimigos” já existente ou oportunamente forjada, sempre a critério da mídia. O “inimigo” passa a ser quem a mídia disser que é.

Em seguida, com a presença constante do inimigo na televisão e a também constante ameaça de um mal, faz-se também constante o medo. A partir disso, o próprio cidadão, numa resposta instintiva (e inocente), pede que se aumente o controle, justamente para se evitar a concretização do medo. E, de novo com Zaffaroni : “Como é necessária uma grande carga de medo para que as pessoas deixem de valorizar a intimidade e o espaço social de liberdade, a criminologia midiática constrói uma realidade temível” (2012, p. 318). A noção de medo é brutalmente manipulada pela mídia: o medo é um sentimento instintivo de autopreservação, todavia, quando a mídia coloca um único objeto como fonte de todos os riscos, o medo decorrente deixa de ser normal, por se ter deformado a real magnitude de sua temeridade; ao assim acontecer, o medo perde a sua função, pois ele não é mais proporcional ao risco, e, ainda, desvia a atenção do sujeito de outros riscos que muitas vezes deveriam ser mais temíveis (ZAFFARONI, 2012, p. 318).

O resultado deste procedimento é um espetáculo midiático criador de uma sociedade paranoica que vive em pânico e caos; e é este fenômeno que é usado como subterfúgio para o aumento do Estado policial: com mais Estado – visto aqui como onipotente – haveria mais controle social e menos espaço para os libertinos de plantão [sic.]. Nesse cenário, o indivíduo, em vez de sujeito de direitos – tal como do princípio da inocência – passa a ser tratado como coisa, e sua superexposição circense passa a não causar espanto algum.

4. A inconstitucionalidade da carga probatória midiática
Com a manipulação do entendimento da verdade e a influência da mídia no acertamento do caso penal, a definição da culpa de um investigado ou acusado vem sendo ditada pelos meios de comunicação e não pelas provas produzidas pela acusação (MP ou querelante), o que, como já colocado nesse trabalho, é absolutamente inconstitucional por ofensa direta ao artigo 5º, LVII, da Constituição.

Todavia, tal fato possui entendimentos diversos nos tribunais internacionais e no STF. O TEDH, no caso Allenet de Ribemont v. France (1995), decidiu que o princípio da inocência deve ser respeitado tanto pelo Judiciário bem como por qualquer autoridade pública (§ 36) e que “Freedom of expression, guaranteed by Article 10 (art. 10) of the Convention, includes the freedom to receive and impart information. Article 6 para. 2 (art. 6-2) cannot therefore prevent the authorities from informing the public about criminal investigations in progress, but it requires that they do so with all the discretion and circumspection necessary if the presumption of innocence is to be respected.”(parágrafo 38). No mesmo sentido, no caso Lavents v. Letônia (2002): “[…] l'article 6 § 2 exige que les représentants de l'Etat – les juges chargés de l'affaireen premier lieu, mais également les représentants des autres autorités investies du pouvoir publique – s'abstiennent de déclareren public que l'accusé est coupable d'avoir commisl' infraction incriminée, avant que saculpabilité aité té régulièr ementétablie par le tribunal.” (parágrafo 125). Igualmente, em Butkevicius v. Lituânia (2002): “The Court recalls that the presumption of innocence enshrined in Article 6 § 2 of the Convention is one of the elements of a fair criminal trial guaranteed by Article 6 § 1. It will be violated if a statement of a public official concerning a person charged with a criminal offence reflects an opinion that he is guilty before he has been proved so according to law.” (§ 49). Entendimento confirmado também, v.g., em Y.B. v. Turquia (2004) e Ismoilov v. Russia (2008).[1]

No STF, o ponto central de sua jurisprudência é o julgamento da ADPF 130, que declarou que a Lei de Imprensa (5.250/1967) não foi recepcionada pela Constituição de 1988. Nesse julgamento, é de singular importância o voto do ministro Cezar Peluso, pois nele afirmou-se que a liberdade de imprensa, tal como todos os princípios jurídicos, não é absoluta, devendo ser relativizada frente aos demais princípios constitucionais, sendo esta a orientação seguida nos casos futuros da Corte, nas palavras do ministro: “A mim me parece, e isso é coisa que a doutrina, tirando – ou tirante – algumas posturas radicais, sobretudo no Direito norte-americano, é pensamento universal que, além de a Constituição não prever, nem sequer em relação à vida, caráter absoluto a direito algum, evidentemente não poderia conceber a liberdade de imprensa com essa largueza absoluta e essa invulnerabilidade unímoda. […] a liberdade da imprensa é plena nos limites conceitual-constitucionais, dentro do espaço que lhe reserva a Constituição. E é certo que a Constituição a encerra em limites predefinidos, que o são na previsão da tutela da dignidade da pessoa humana.” (STF, AI 595.395).

Diferente do TEDH, o STF considera apenas a dignidade da pessoa humana e o direito à integridade da honra e da imagem como limites à liberdade de imprensa e não enxerga como tal o princípio da inocência; por exemplo, no julgamento da Medida Cautelar em Mandado de Segurança 24.832/DF, o Supremo decidiu que: “Não aparentam caracterizar abuso de exposição da imagem pessoal na mídia, a transmissão e a gravação de sessão em que se toma depoimento de indiciado, em Comissão Parlamentar de Inquérito.”

Dessa forma vê-se os pressupostos teóricos distintos entre as Cortes bem como a incoerência do STF nos julgamentos relacionados à matéria, o que provoca um estado de incerteza na efetivação do princípio da inocência. Ainda, considerando o princípio constitucional da inocência (Constituição, artigo 5º, LVII) e a consequência de sua observância na atribuição da carga probatória exclusivamente sobre a acusação (MP ou querelante); considerando que a mídia tem o dever de respeitar qualquer pessoa investigada ou acusada de um delito; e, considerando também o papel que a mídia vem desempenhando na manipulação social e no entendimento de verdade para o processo, pode-se afirmar que o STF tem sido omisso e permitido a – absolutamente inconstitucional – influência da mídia no processo de acertamento do caso penal.

Conclui-se que, após a análise do estado da arte da aplicação princípio da inocência no momento da law in action, especificamente quanto à regra probatória do in dubio pro reo e sua relação com a mídia, conclui-se que os meios de comunicação devem respeitar o status de inocente do acusado não interferindo no acertamento do caso penal. Conclui-se também que tanto a literatura jurídica quanto os tribunais são incoerentes e partem de bases teóricas distintas no estudo da matéria, o que provoca um estado de incerteza na efetivação do princípio da inocência.

[1] Para um estudo amplo da matéria nos Tribunais Internacionais vide: ZAPPALÀ, Salvatore. Human Rigths in international criminal proceedings. New York: Oxford, 2008.

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