Opinião

Explosão da litigiosidade é resultado da distância entre lei e realidade

Autor

  • André Augusto Salvador Bezerra

    é juiz de Direito em São Paulo professor no curso de mestrado profissional da Escola de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados mestre doutor e pesquisador com pós-doutorado concluído na Universidade de São Paulo (USP).

5 de novembro de 2016, 9h20

No presente mês de outubro, mais uma vez o Conselho Nacional de Justiça publicou o tradicional relatório Justiça em Números, revelando dados relativos ao movimento do Poder Judiciário brasileiro. De todos os indicadores publicados, certamente um dos mais impressionantes é a marca de cerca de 102 milhões de processos que circularam no ano de 2015 (incluindo os feitos extintos e aqueles não extintos).

Trata-se de dado suficientemente claro para revelar o elevado grau de congestionamento do Judiciário bem como a impossibilidade de prestação da atividade jurisdicional de forma eficaz. Como prestar serviço público de qualidade diante de um número assustador como o revelado pelo CNJ?

O quadro acima colocado, que não é hoje, tem ensejado discussões acerca das possíveis soluções para o abarrotamento do Judiciário brasileiro. Considerável parcela das discussões têm se centrado na questão da produtividade, cobrando-se de servidores e magistrados a extinção do maior número possível de processos, como se as sentenças proferidas fossem produtos de fabricação em escala industrial.

O presente texto procurará problematizar a almejada busca de melhoria de produtividade como solução para o abarrotamento do Judiciário. Para isso, abordará, ainda que brevemente, as origens do congestionamento de processos por que atravessa o Judiciário, contextualizando-as com as históricas desigualdades do país.

Explosão da litigiosidade
É preciso, antes de mais nada, ressaltar que Judiciário sobrecarregado não consiste em peculiaridade brasileira. Trata-se de problema que tem sua origem na Europa Ocidental do pós Segunda Guerra Mundial, período em que se consolidou o chamado Estado de Bem Estar Social, caracterizado pela legalização de uma série de direitos coletivos que, caminhando para além das fundamentais liberdades públicas oriundas das revoluções burguesas do século XVIII, prometem saúde, educação, condições dignas de trabalho, dentre outros valores.

Essa situação levou ao advento de um enorme abismo entre duas realidades: de um lado, a realidade das normas jurídicas contendo ambiciosos compromissos fundados no princípio maior da dignidade da pessoa humana; de outro lado, a realidade da vida da população, especialmente os estratos mais pobres, que não presenciavam a concretização das promessas das normas. 

O Judiciário, então, passou a ser visto como uma ferramenta para a redução da distância entre ambas as realidades. Tornou-se, em outros termos, instrumento de promoção de cidadania.

Tal fenômeno, de índole sociológica, é conhecido como explosão da litigiosidade. A verdadeira descoberta do Judiciário pela população transformou-o em poder abarrotado de processos, nem sempre capaz de atender prontamente as demandas daqueles que o procuram.

Foi o caso da Itália. A respeito, lembra Boaventura de Sousa Santos, em texto intitulado Introdução à Sociologia da Administração da Justiça (1986), que, no final da década de 1960, a média de duração de um processo civil entre os italianos era de seis anos e cinco meses.

Explosão da litigiosidade brasileira e o advento do CNJ
O Brasil do final da década de 1960 não era propício à explosão da litigiosidade vivida, por exemplo, na Itália.  Na época, a sociedade brasileira encontrava-se submetida à ditadura civil-militar que, em nome de projeto econômico de expansão do capital a todo custo, inseria o Judiciário como poder coadjuvante perante o Executivo.

Foi apenas no final da década de 1980 que o Brasil conheceu o fenômeno sociológico em questão. Cuida-se do período coincidente à promulgação da Constituição de 1988, cuja consagração de ampla gama de direitos de índole democrática fez eclodir uma distância colossal entre a realidade das normas jurídicas e a realidade da vida da população, em muito empobrecida com as políticas ditatoriais que pareciam superadas. 

Tal como sucedeu no Velho Continente, os cidadãos passaram a enxergar a atividade jurisdicional como instrumento de encurtamento da aludida distância. Uma avalanche de processos foi repentinamente ajuizada, evidenciando um Judiciário incapacitado de atender às mais diversas demandas cidadãs, em que pesem esforços de servidores e magistrados.

Inseriu-se, por isso, o Judiciário na ordem do dia nas discussões políticas, sendo o respectivo controle externo considerado, por diversos setores da sociedade, uma necessidade democrática visando à transparência e à eficácia do serviço público a ser prestado.  Deste quadro, no ano de 2004 aprovou-se a Emenda Constitucional 45, responsável pela criação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), entidade externa ao Judiciário, dotado, dentre outras, das funções de planejamento estratégico e gestão administrativa do poder.

A política de metas e a produtividade
Logo que instituído, o CNJ procurou buscar eficiência na administração da justiça. Contudo, assim o fez sem maiores preocupações quanto aos fundamentos da explosão da litigiosidade, centrando-se, quase que exclusivamente, na questão relativa ao rápido julgamento das causas.

A preocupação com a celeridade na solução dos litígios exteriorizou-se pela imposição de metas de produtividade aos juízes. Isto, como se os membros do Judiciário fossem prestadores de serviços ao mercado consumidor, sendo o cidadão que tem seu direito violado, um mero cliente.

Com a imposição de metas, partiu-se do pressuposto de que o Judiciário é lento porque os respectivos membros não julgam as causas rapidamente como se deveria.  Considera-se, em outros termos, o Judiciário um poder de baixa produtividade.

Apesar dos inúmeros problemas estruturais que o Judiciário brasileiro apresenta, é difícil sustentar que se trata de uma função de baixa produtividade. Somente no ano de 2013, quando a política de metas do CNJ encontrava-se a todo vapor, foram julgados pelos juízes de primeira instância 14.978.709 processos.

Esses milhões de processos extintos sob o regime de metas não diminuíram o acervo processual. No mesmo ano de 2013, ingressaram em primeira instância 17.271.369 processos: cerca de dois milhões a mais do que os julgados.

O Relatório Justiça em Números de 2016 revelou que a situação persiste: em 2015, o estoque de processos aumentou em 1,9 milhão em relação ao ano anterior.  Cuida-se de ampliação de 3%, a qual, se confrontada com o ano de 2009, alcança a impressionante taxa de crescimento de 19,4%, ou seja, 9,6 milhões de processos a mais.

Grandes litigantes e direitos violados
A insuficiência da política de metas sobre o Judiciário brasileiro, enquanto instrumento de efetivação de direitos socialmente conquistados sob um processo democrático que levou à Constituição de 1988, revela-se, portanto, de forma cristalina.

É preciso questionar os motivos pelos quais tantas demandas são ajuizadas anualmente; é necessário perguntar os motivos pelos quais os cidadãos tanto procuram o Judiciário; é preciso, em suma, verificar os fundamentos da explosão da litigiosidade brasileira.

A resposta pode ser avistada a partir dos números divulgados pelo próprio CNJ. Como já foi mencionado, no ano de 2015, teve-se a circulação de cerca de 102 milhões de processos no Judiciário. Trata-se de volume que, sob uma análise mais superficial, enseja a conclusão de uma suposta média de um processo por brasileiro (levando em conta que cada processo envolve, via de regra, no mínimo duas pessoas).

Dados oficiais, inclusive do próprio CNJ, elidem, contudo, tal conclusão. Nem todo brasileiro é parte em um processo judicial; na verdade, há brasileiros – ou não brasileiros – que participam mais de processos do que outros.

Tem-se no Brasil uma categoria conhecida como grandes litigantes. Já no ano de 2011, por exemplo, foi constatado que 38% dos processos envolviam o setor público federal; 8% o estadual; 5% o municipal. Vale dizer, 51% dos processos apresentavam como parte os entes federativos brasileiros, suas autarquias e empresas públicas; o Estado brasileiro, em suma. 

Existem outros dados reveladores do mesmo ano: 38% das ações envolviam bancos e 6% telefonia. Outros litigantes, como, por exemplo, inquilino contra locador, vizinho contra vizinho, empresas privadas que discutem cláusulas contratuais, dentre outras, somavam, ao todo, apenas 5% de todos os processos.

Tais números, que, na essência, mantém-se em 2016, confirmam o que já se disse. A explosão da litigiosidade brasileira está relacionada à distância existente entre a realidade das normas e a realidade da vida.

Não por outro motivo, aquele que detém o papel primordial de efetivar direitos (o Estado) e as duas categorias de empresas que representam o capitalismo globalizado (bancos e telefonias) deste início de século XXI são os que abarrotam o Judiciário de processos. Eis os grandes violadores dos direitos conquistados com a Constituição de 1988.

Ressalve-se que isso não significa que as grandes litigantes são derrotadas em todos os processos e nem tampouco que nada fazem para não violarem direito alheio. Isso também não significa que inexistem abusos ou instrumentalização da atividade jurisdicional para violação de direitos gerados por outros estratos populacionais. O fato, contudo, é que o congestionamento do Judiciário gerado por apenas três espécies de litigantes revela alguma patologia nas estruturas políticas e econômicas brasileira, que deságua, inexoravelmente, em um absurdo volume de trabalho para todos os agentes do sistema de justiça.

Observações finais
A despeito das importantes demandas conquistadas pela sociedade brasileira a partir da democratização após 1988, a elidirem qualquer saudosismo dos sombrios tempos ditatoriais, as promessas normativas presentes na vigente Constituição ainda se encontram demasiadamente distantes de concretização.  Basta lembrar, por exemplo, que no ano de 2005, as Organizações das Nações Unidas (ONU) revelaram que o Brasil ainda ocupava a 8a posição de país mais desigual do mundo, em que pese situar-se entre as sete maiores economias do planeta.

É evidente que, diante de um texto constitucional tão ambicioso em termos de justiça social, como o que vigora, e diante de uma realidade tão socialmente injusta, como a que subsiste, haverá um Judiciário sobrecarregado, tal como revelado pelo Justiça em Números. É assim em outras democracias cujos textos normativos também contém promessas de justiça social; não haveria de ser diferente em um dos países mais desiguais do mundo, como o Brasil.

Procurar solucionar o problema da explosão da litigiosidade a partir da lógica privatista de metas significa desconsiderar as históricas e persistentes injustiças sociais brasileiras. Significa também esquecer que a atividade jurisdicional consiste em serviço público universal cujas deficiências não são resolvíveis da forma que uma empresa privada soluciona entraves de produtividade perante um mercado consumidor mais restrito (até porque grande parcela da população brasileira sequer se insere na sociedade de consumo).

Na verdade há apenas um caminho possível para a solução de todo o problema colocado. Trata-se de lutar para a efetivação das promessas constitucionais, exigindo-se do aparelho estatal e dos grandes representantes do sistema econômico a plena obediência aos direitos socialmente conquistados a partir de 1988.

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