Tribuna da Defensoria

Projeto das 10 medidas contra a corrupção deve ser fatiado

Autor

  • Caio Paiva

    é defensor público federal especialista em ciências criminais professor e coordenador do Curso CEI. É autor do livro “Audiência de Custódia e o Processo Penal Brasileiro” e coautor de “Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos”. Sua página no Facebook: www.facebook.com/professorcaiopaiva.

1 de novembro de 2016, 8h46

Vivemos atualmente um momento singular na história no Direito Processual Penal brasileiro, em que as pretensões de reforma da legislação têm como prioridade o combate à corrupção, desconsiderando ou anuindo com os efeitos colaterais que serão produzidos para a persecução penal que chamarei aqui de ordinária, aquela dirigida contra acusados da prática de crimes que não lesam a administração pública.

Este momento, que transita do trágico ao cômico, com poucos (mas importantes) sinais de lucidez, pode ser desenhado a partir de pelo menos três pontos: I) A polarização do debate. Não há ambiente para consensos argumentativos. Se eu não concordo com a sua proposta, a considero de índole fascista, nazista, autoritária etc., e você logo me considera conivente com a corrupção, “garantista demais”. Esta polarização, como não poderia deixar de ser, cria guetos de interação por onde transitam apenas os semelhantes, que se aplaudem, se abraçam e se admiram como se fossem os iluminados, seres detentores de uma sabedoria intransmissível e incompreensível para os demais; II) A busca pela correspondência das expectativas sociais[1]. Não importa que a legislação proíba determinado expediente (divulgar para imprensa conversa telefônica interceptada, por exemplo), pois este será praticado se atender às expectativas da sociedade. A legitimação do provimento decisório não advém, aqui, da Constituição, e sim da recepção majoritária pela população; e III) A utilização do Direito como meio para se fazer ou para se interferir na política. Este talvez seja o sintoma mais grave deste momento de crise, que não pode ser resumido na ideia de “criminalização da política”, utilizada deliberadamente por alguns que, saudosistas de um período no qual políticos eram imunes à lei penal, atribuem à toda e qualquer persecução penal o viés de perseguição. Não é disso que tratamos aqui. Me refiro ao processo, que, definitivamente, não é involuntário nem espontâneo por parte da sociedade, e sim impulsionado estrategicamente, de pavimentar o caminho da política por meio da atuação judicial.

No centro deste cenário, temos as dez medidas contra a corrupção propostas pelo Ministério Público Federal, que atualmente tramitam na Câmara dos Deputados por meio do Projeto de Lei 4.850/2016[2]. A campanha que precede e que calibra o discurso das dez medidas utiliza uma linguagem estruturada tanto a partir de recursos argumentativos clássicos, como o medo (“a corrupção mata!”), a mentira (“o Brasil é o paraíso da impunidade!”) e o moralismo-heroico (“precisamos salvar o país!”); quanto de técnicas de marketing modernas, a exemplo da articulação para o envolvimento de atores e atrizes globais, da escolha numérica da proposta (por que dez medidas e não doze, quinze ou dezoito?) e da atuação permanente nas redes sociais.

O apoio popular às dez medidas não deveria impressionar nem muito menos pressionar, sobretudo porque a maior parte dos cidadãos que aderiu e assinou o projeto não tem o mínimo de conhecimento jurídico necessário para compreender discussões em torno de nulidades, de regime probatório, de sistema recursal, de definição de prazos prescricionais etc. Não se tem registro histórico, aliás, em nenhum lugar do mundo, de projeto de iniciativa popular com quase setenta artigos, a maioria deles tratando de questões técnicas e complexas até mesmo para os profissionais da área. Estamos diante de uma concretização da democracia direta ou de um inusitado caso de estelionato legislativo?

Seja qual for a resposta para esta pergunta, o fato é que o MPF venceu a primeira etapa e conseguiu levar o pacote das dez medidas para o Congresso Nacional. Algumas medidas não somente avançam positivamente no combate à corrupção, como também melhoram o funcionamento do sistema de justiça criminal. Cito, por exemplo, a definição de prazo para devolução do processo para o membro de tribunal que pedir vista, a extinção da prescrição retroativa, a definição do crime de corrupção como hediondo, o estabelecimento de rotinas de accountability para buscar mais eficiência no processamento das ações penais etc. Outras medidas, porém, se afastam do objetivo inicial de combater a corrupção para modificar eixos centrais do processo penal. Me refiro às proposições sobre sistema recursal, regime probatório, habeas corpus, nulidades, prazos prescricionais etc. Há também medidas sem qualquer respaldo na técnica processual, como a oitiva do promotor natural no procedimento do habeas corpus, a criação de um recurso de agravo (?) para que o Ministério Público simplesmente peça prioridade no julgamento e provoque a interrupção do curso da prescrição, entre outras.

Finalizo este breve e primeiro texto sobre o PL 4.850 com a certeza de que o contexto do combate à corrupção projeta um ambiente hostil e desfavorável para o debate sobre direitos fundamentais e garantias processuais. É por isso que o mais correto seria um fatiamento do projeto das dez medidas, conservando no PL 4.850 apenas as questões que guardem estrita pertinência temática com a corrupção, remetendo para as comissões de debate sobre o novo Código Penal e sobre o novo Código de Processo Penal as demais medidas capazes de repercutirem no sistema de justiça criminal como um todo.


[1] Sobre o tema, recomendo a leitura de MARTINS, Rui Cunha. A hora dos cadáveres adiados: corrupção, expectativa e processo penal. São Paulo: Atlas, 2013.

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    é defensor público federal, especialista em ciências criminais, professor e coordenador do Curso CEI. É autor do livro “Audiência de Custódia e o Processo Penal Brasileiro” e coautor de “Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos”.

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