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PEC do Teto de Gastos também deveria limitar arrecadação de impostos

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  • é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

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1 de novembro de 2016, 7h00

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Os eventuais leitores desta coluna já devem ter notado a enormidade de coisas que não sei, em face das muito poucas que conheço. Algumas das que conheço foram reunidas em um livro da Editora ConJur, intitulado Crônicas de Direito Financeiro – Tributação, Guerra Fiscal e Políticas Públicas e vendido a preço de banana pela Livraria ConJur.

Essas poucas coisas que sei me levam a olhar com curiosidade o debate sobre a PEC 241, intitulada de PEC do Teto de Gastos Públicos, sobre a qual escrevi em meados de julho, analisando os poucos artigos que pretendem introduzir no ADCT da Constituição. Entre o texto enviado pelo governo Temer e o que foi aprovado na Câmara dos Deputados e encaminhado ao Senado (onde assume o número PEC 55), verifico que nada de efetivamente estrutural foi alterado, só alguns itens para ajustes conjunturais.

Passo a analisar o assunto por tema proposto na referida PEC.

1. A proposta de introdução dos artigos 101, 102 103 e 104 no ADCT da Constituição tratam da redução da despesa primária não financeira da União, o que pode ser traduzido para bom português como “congelamento de salários e demais penduricalhos remuneratórios” dos servidores públicos dos três poderes, incluindo o Ministério Público, o Tribunal de Contas e a Defensoria Pública da União, com a garantia da reposição inflacionária a cada ano.

Aqui se insere uma primeira dúvida sobre o assunto: por qual motivo os estados, o Distrito Federal e os municípios não estão inseridos nessa limitação? Não há dúvida de que alguns órgãos públicos estaduais extrapolam completamente qualquer parâmetro de razoabilidade. Foi divulgado pelo jornal O Globo que no Poder Judiciário do Rio de Janeiro todos os 180 desembargadores recebem acima do teto constitucional, e dos 679 juízes de 1ª instância só seis recebem abaixo do teto (confesso que fiquei estarrecido não só com a quantidade de magistrados que recebem acima do teto, mas também surpreso com os seis que recebem abaixo do teto — o que acontece com eles? Será que não tem amigos naquele tribunal? Estranho, não?). Segundo aquela reportagem, enquanto o teto constitucional hoje é de R$ 33.763, a média de todos os Judiciários estaduais chega a R$ 39.339. No Poder Judiciário sergipano está a maior média (R$ 54.086).

Outros órgãos estaduais Brasil afora possuem perfil semelhante, não sendo isso uma característica apenas do Judiciário. Pode ser vislumbrado no Ministério Público e em vários outros órgãos (veja algumas observações sobre isso). Seguramente, não falta direito positivo para a redução desses salários, a começar pelo artigo 169 da Constituição, mas quem controla o controlador? O problema aqui presente não é de direito positivo, mas de vontade política.

Não consigo vislumbrar resposta lógica para a ausência dos estados e municípios nessa limitação remuneratória da PEC. Existe uma possível explicação política, pois os deputados federais e senadores possuem base eleitoral nos estados e municípios, e não na União. A rigor, ninguém é “eleito pela União”, mas por estados e municípios. Logo, torna-se mais fácil limitar as despesas da União do que dos demais entes subnacionais — e esses deputados e senadores votam com os olhos voltados para suas bases eleitorais, o que dificulta a inclusão desses entes federados. Todavia, trata-se apenas de uma hipótese de trabalho, a ser conferida.

Não me parece que existam inconstitucionalidades nessa proposta de introdução dos artigos 101, 102, 103 e 104 ao ADCT da Constituição, porém a ausência dos estados e municípios fará com que o problema permaneça, deixando os governadores à mercê dessas forças políticas que podem, inclusive, criar muitos embaraços financeiros.

2. O artigo 105 proposto pela PEC adota as mesmas limitações acima referidas para as despesas com educação e saúde. Em vez de ser destinado a essas áreas sociais um percentual sobre a receita da União, como é hoje, tais despesas passarão a ser limitadas ao que vier a ser gasto em 2017, acrescido para os anos seguintes apenas da inflação do período. Reitero o que já afirmei anteriormente: trata-se de um artigo completamente inconstitucional, e deveria ter sido diretamente bloqueado durante sua tramitação, pois viola uma das cláusulas pétreas da Constituição (artigo 60, parágrafo 4º, IV), que proíbe a deliberação de proposta legislativa tendente a abolir os direitos e garantias individuais.

Certamente algum desavisado logo argumentará que não estão sendo atacados direitos individuais, que permanecem íntegros, mas está sendo proposto um teto para a fonte de financiamento dos direitos sociais, o que é diferente.

Tal argumento é de uma primariedade que, a rigor, não mereceria resposta, mas, como tenho a pretensão de ser considerado uma pessoa educada, respondo desde logo a tal primária objeção jurídica dizendo que os direitos sociais são um dos aspectos dos direitos individuais, com algumas peculiaridades, dentre elas a de que necessitam de dinheiro para serem efetivamente concretizados. Não é necessário ler a doutrina estrangeira para saber que os direitos têm custos — qualquer mendigo sabe disso; pergunte a um dos vários que habitam as ruas brasileiras. Exatamente por isso que o constituinte originário assegurou que, dentre diversos outros direitos fundamentais, apenas dois dos direitos fundamentais sociais (existem outros! Ver, por exemplo, o artigo 6º, CF), o de saúde e educação, devessem ter fonte de recursos assegurada. Logo, cortar essa fonte de recursos é inconstitucional — simples assim. Tais direitos se tornariam apenas “direitos no papel”.

Existe outro argumento jurídico que deve ser analisado. Suponhamos que o valor que vier a ser atribuído para as áreas de saúde e educação pela fórmula do artigo 105 da PEC seja superior ao que hoje consta na Constituição. Nesse caso, não haveria a inconstitucionalidade apontada. Esse é um argumento retórico, pois parte de uma suposição que ninguém poderá assegurar de antemão, e traz em si um paradoxo, pois, se é para gastar com esses direitos sociais o mesmo, ou acima, do que a norma atualmente prevê, por qual motivo querem tanto alterá-la? Não há resposta plausível para isso.

Logo, sugere-se aos senadores que introduzam um artigo nesse sentido na referida PEC, explicitando esse aspecto. Segue uma sugestão de redação:

Se o valor anual estabelecido por este artigo (refiro-me ao art. 105 da PEC) for inferior ao que a Constituição determina, ficará o Poder Executivo obrigado a incluir o montante correspondente à essa diferença, para custeio dos gastos com educação e saúde, na proposta orçamentária do ano imediatamente posterior, e o Poder Legislativo será obrigado a aprovar essa específica previsão orçamentária.

Fica essa sugestão aos senadores, que seguramente pode ser aperfeiçoada, pois isso permitiria que a tramitação da PEC se tornasse mais palatável à sociedade, garantindo juridicamente o que o governo vem alardeando, mas não escreveu.

3. Os artigos 106 a 109 apenas adaptam o sistema jusfinanceiro aos demais artigos da PEC, estabelecendo regras que, inclusive, já constam do artigo 169 da Constituição e da Lei de Responsabilidade Fiscal, mas que vem sendo “dribladas” por meio do famoso “jeitinho brasileiro” de conduzir as finanças públicas. Afinal, o entendimento presente no Brasil é que sendo “públicas” não são de ninguém, quando, na verdade, são “de todos”. Ora, se são “de todos”, a todos interessa, e não apenas a quem tem mais fácil acesso aos cofres públicos, seja por estar melhor colocado internamente no seio da máquina estatal, seja por ter mais fácil acesso aos ocupantes do poder — os atuais, os passados e os futuros.

É preciso criar regras estáveis que preservem as finanças públicas de eventuais predadores que afastam seu uso em prol do bem comum e as utiliza em favor de interesses individuais ou corporativos.

4. O que ainda falta nessa PEC? A meu ver faltam dois aspectos importantíssimos para que ela seja algo mais do que o estabelecimento de um teto salarial para o setor público, que é o expresso intento dos artigos 101 a 104, e que garanta a fonte de recursos para saúde e educação, o que deve ser corrigido acrescendo ao artigo 105 alguma norma no sentido acima referido. Os dois aspectos são: limitação do gasto com juros e limitação da arrecadação.

5. O pagamento de juros da dívida pública é o único item de gasto que não tem limitação expressa no orçamento. Todos os demais itens de gasto possuem um teto — que muitas vezes é furado, como se vê nos exemplos referentes ao Poder Judiciário, acima descritos (trata-se de um teto com muitas goteiras, para usar uma metáfora). Todavia, o gasto com juros não tem teto. Nenhum. É preciso estabelecer algum teto para isso — mesmo que seja ajustado ao longo do período de 20 anos estabelecido para a duração da PEC.

Não ter teto implica em deixar um cheque em branco nas mãos do Poder Executivo para que ele gaste como bem entender — o que é, no mínimo, inadequado.

Logo, sugere-se que seja estabelecido no Senado um teto. Qualquer teto, mas que seja um teto por meio do qual o Legislativo possa efetivamente controlar os gastos do Executivo. Hoje isso está sem controle.

6. E o último teto que deve ser acrescido à PEC é o teto de arrecadação. Com a economia crescendo — e irá inegavelmente crescer, mais dia, menos dia — a arrecadação crescerá, pois fortemente vinculada a faturamento (PIS, Cofins), renda (IRPJ e IRPF) e produção e circulação de mercadorias (IPI e ICMS). Logo, é inexorável o crescimento da arrecadação tributária, assim que a crise arrefecer — a crise não precisa nem cessar, basta arrefecer que a arrecadação aumentará.

Logo, é necessário estabelecer um limite arrecadatório para os diversos governos — federal, estadual e municipal —, por meio do qual eles sejam obrigados a reduzir a carga tributária no ano posterior ao que o teto seja rompido. Assim, apenas a título de exemplo, caso seja estabelecido um teto de arrecadação de 10% do PIB a título de Imposto sobre a Renda, e esse teto seja rompido em determinado ano, pois a arrecadação com esse imposto chegou a 11%, o governo federal deverá encaminhar ao Congresso no ano seguinte uma proposta de redução da carga tributária desse imposto, de modo a calibrá-la para que o excesso seja eliminado.

O simples fato de haver certeza de que no ano posterior o excesso virá a ser corrigido já trará maior segurança nas relações público-privadas intermediadas pelo sistema jusfinanceiro. E assegurará mais dinheiro nas mãos do setor privado da economia, seja das pessoas físicas, seja das jurídicas.

Não criar um teto para a arrecadação implicará em deixar nas mãos do Poder Executivo um dinheiro solto, vago, sem vinculação, pois os principais gastos públicos estarão limitados pelos demais artigos da PEC — exceto os gastos com juros, que também devem ser limitados. Pode-se até dizer que sobrará mais dinheiro para investimento — porém, isso também não está escrito. Pode-se ainda alegar que essa “folga” será deliberada anualmente, quando for votada a lei orçamentária, mas, olhando historicamente as relações entre Legislativo e Executivo no Brasil, sabe-se de antemão quem vencerá a queda de braço — não será o Parlamento.

A criação de um teto de arrecadação é uma sugestão para que os senadores proponham alterações na PEC em favor de quem custeia todo o setor público da economia, que são as pessoas físicas que pagam seus tributos dia a dia, quando compram leite, pão ou carne, ou quando recebem uns caraminguás a título de salário ao final do mês.

É necessário que se ouça o grito contido no interior dessas normas financeiras, pois muitos males poderão criar para a população brasileira se não forem feitos os ajustes ainda na fase legislativa. Deve-se evitar que um abacaxi dessa monta venha a ser descascado pelo Supremo Tribunal Federal. Cada um deve se responsabilizar pelo papel que assumiu na condução deste país, e não terceirizar soluções para outros órgãos. Isso ocorrendo, só restará a lamúria dos deputados e senadores contra o que alegam ser judicialização da política.

Autores

  • é advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados; professor da USP e livre docente em Direito pela mesma universidade.

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