Origem legítima

Suprema Corte dos EUA impede bloqueio de dinheiro para pagar advogado

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31 de março de 2016, 11h21

A Suprema Corte dos EUA decidiu, nesta quarta-feira (30/3), que é inconstitucional congelar, antes do julgamento, recursos financeiros ou propriedades “inocentes” (isto é, não derivados do crime alegado) se a pessoa acusada precisa de dinheiro para pagar um advogado de defesa de sua escolha. A decisão foi por maioria de 5 votos a 3.

O caso se refere a fraudes cometidas contra o Medicare (o seguro-saúde de aposentados nos EUA) pela empresária Sila Luis, de Miami. Em um período de seis anos, a fraude lhe rendeu quase US$ 45 milhões. No processo de indiciamento, um juiz autorizou o estado a congelar US$ 40,5 milhões, entre recursos financeiros e outros bens da empresária que ainda estavam disponíveis.

No entanto, US$ 2 milhões (dos US$ 40,5 milhões confiscados) seriam economias feitas pela empresária, nesses seis anos de trabalho. Nesse caso, o estado deveria ter confiscado US$ 38,5 milhões, segundo a corte. Os US$ 6,5 milhões restantes (a diferença entre 38,5 e 45 milhões) foram “dissipados” pela empresária, em investimentos no México, carros de luxo e joias.

Os três votos dissidentes defenderam o direito do estado de confiscar todos os recursos financeiros e propriedades que pudesse encontrar. O ministro liberal Anthony Kennedy, acompanhado do ministro conservador Samuel Alito, escreveu em seu voto que qualquer recurso de um réu, derivado ou não de um crime, deve ser congelado, uma vez que o estado estabeleça “causa provável”, e que o dinheiro será, um dia, confiscado para fins de restituição e de qualquer outra despesa.

“Sabemos que dinheiro é fungível. E, algumas vezes, é difícil dizer se uma conta bancária particular contém fundos “criminosos” ou “inocentes”, afirmou.

A ministra liberal Elena Kagan escreveu seu próprio voto dissidente, no qual argumentou que a ré não tem direito de usar seus bens para pagar um advogado, porque o governo estabeleceu “causa provável” e, a qualquer tempo, irá recuperar o dinheiro.

“A ladra, que imediatamente dissipa seus ganhos adquiridos de forma ilícita e, portanto, preserva seus outros recursos, não é mais merecedora de um advogado de sua escolha do que outro ladrão que gasta o dinheiro dos dois potes em ordem inversa”, escreveu.

Maioria
No entanto, a maioria, formada pelos ministros liberais Stephen Breyer, Ruth Ginsburg e Sonia Sotomayor e pelos ministros conservadores John Roberts (presidente da corte) e Clarence Thomaz (que escreveu um voto separado), decidiu que o direito do réu a um advogado de sua escolha – e, portanto, de o réu reter os recursos que precisa para pagá-lo — tem primazia sobre a necessidade do governo de recuperar os recursos da fraude.

“O direito [do réu] de ser ouvido [em um julgamento] teria pouco valor, em muitos casos, se não abranger o direito de ser ouvido através de um advogado. Mesmo um leigo inteligente e bem-educado tem pouco ou nenhum conhecimento da ciência da lei. Se for acusado de um crime, ele é incapaz, geralmente, de determinar, por si mesmo, se a acusação é boa ou ruim”.

“As regras da prova não lhe são familiares. Deixado sem a ajuda de um advogado, ele pode ser colocado em julgamento sem a acusação apropriada e condenado com base em prova incompetente ou prova irrelevante à questão ou, de alguma forma, inadmissível. Falta a ele a habilidade e os conhecimentos para preparar, adequadamente, sua defesa, mesmo que pudesse ter a defesa perfeita. Ele precisa da mão orientadora do advogado, a cada passo dos procedimentos contra ele. Sem isso, mesmo que ele não seja culpado, enfrenta o perigo de ser condenado, porque não sabe como estabelecer sua inocência”.

A decisão diz que a corte se norteia por quatro parâmetros: 1) as decisões se referem, com frequência, ao fato de o direito a um advogado ser fundamental; 2) esse direito é descrito como um grande mecanismo pelo qual um homem inocente pode tornar a verdade de sua inocência visível; 3) o direito do réu indigente, para se defender de crimes, menos os considerados leves, de requerer a nomeação de um advogado para defendê-lo; 4) a constatação de que a privação errônea do direito a um advogado é um erro estrutural, que afeta toda a estrutura de um julgamento, a ponto de tribunais sequer se perguntarem se o erro prejudicou o réu.

“Em vista do relacionamento de trabalho necessariamente estreito entre o advogado e o cliente, a necessidade de confiança e a importância fundamental da confidencialidade, a Suprema Corte já decidiu que a Sexta Emenda da Constituição garante ao réu uma ‘oportunidade justa’ de contratar um advogado de sua própria escolha. Essa ‘oportunidade justa’ tem limites, no entanto. Por exemplo, um réu não tem direito de contratar um advogado que não seja membro da ordem dos advogados [American Bar Association] ou que tenha um conflito de interesse, devido a seu relacionamento com a parte oponente. Da mesma forma, um réu indigente, embora tenha o direito a uma representação adequada, não tem o direito de pedir ao estado que pague um advogado de sua preferência”, escreveram os ministros.

Sobre a questão de o dinheiro ser “fungível” e não se saber que dinheiro é “criminoso" ou “inocente” e necessário para pagar um advogado, a maioria argumentou que os tribunais sabem fazer contas. “O dinheiro pode ser fungível, mas os tribunais, que usam regras de rastrear dinheiro em casos, por exemplo, de fraude e direitos de pensão, têm experiência em separar ativos derivados de crime de ativos não derivados de crime, da mesma forma que têm experiência para determinar qual é o dinheiro necessário para cobrir os honorários de um advogado”.

A maioria também ressaltou que há uma diferença bem visível entre o dinheiro obtido “legalmente” e o obtido pela pilhagem do ladrão, da cocaína do traficante, das ferramentas do assaltante ou ainda de propriedades usadas para o planejamento e realização de um crime.

Nesses casos, como matéria de lei da propriedade, o interesse de propriedade do réu é imperfeito. Por exemplo, o fruto de um roubo pertence à vítima, não ao ladrão — e deve ser devolvido ao legítimo dono. Se o ladrão gastou o dinheiro de um roubo na compra do carro, o carro deve ser destinado à vítima. A cocaína e o contrabando são considerados confiscáveis pelo governo e isso não está em discussão.

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