Academia de Polícia

Colaboração premiada e polícia judiciária:
a legitimidade do delegado de polícia

Autor

  • Márcio Adriano Anselmo

    é delegado da Polícia Federal doutor pela Faculdade de Direito da USP mestre em Direito pela UCB e especialista em investigação criminal pela ESP/ANP e em Direito do Estado pela UEL.

29 de março de 2016, 8h05

Spacca
A operação mãos limpas (mani pulite)[1] marcou a Itália e toda a Europa no século passado, quando os suspeitos recebiam incentivos para colaborar com a Justiça (em um esquema semelhante a colaboração premiada), e o caso assumiu proporções que o levaram a ser conhecido como maxiprocesso. Quase 25 anos depois do início da operação mãos limpas na Itália, o Brasil tem hoje na colaboração premiada algumas das maiores discussões do processo penal brasileiro.

Observa-se, portanto, que o instituto da colaboração premiada nada mais é do que um meio de obtenção de prova, assim como diversos outros existentes no sistema de investigação criminal. Por outro lado, , para que o instituto tenha eficácia, indispensável que o mesmo se faça acompanhar de uma profunda investigação criminal, visando alcançar a reconstrução histórica dos fatos narrados pelo colaborador.

O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 127.483/PR, sob relatoria do ministro Dias Tóffoli[2], firmou entendimento no sentido de que:

No mérito, o Plenário considerou que a colaboração premiada seria meio de obtenção de prova, destinado à aquisição de elementos dotados de capacidade probatória. Não constituiria meio de prova propriamente dito. Outrossim, o acordo de colaboração não se confundiria com os depoimentos prestados pelo agente colaborador. Estes seriam, efetivamente, meio de prova, que somente se mostraria hábil à formação do convencimento judicial se viesse a ser corroborado por outros meios idôneos de prova. Por essa razão, a Lei 12.850/2013 dispõe que nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento exclusivo nas declarações do agente colaborador (grifos nossos).

Assim, segundo se depreende do entendimento do STF e de grande parte da doutrina, com o qual concordamos, a colaboração premiada tratar-se-ia de meio de obtenção de prova, e as declarações do colaborador, por sua vez, meio de prova, que, para a formação do convencimento do juiz, deve ser corroborado por outros meios idôneos de prova, tanto que a própria lei, em seu parágrafo 16, estabelece que “nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações de agente colaborador”.

Ainda na mesma decisão, a natureza da colaboração é asseverada como negócio jurídico processual. A colaboração premiada assume, portanto, a configuração de uma confissão, qualificada pela indicação de outros coautores e partícipes (ou outros resultados previstos no artigo 4° da Lei 12.850/13), cuja lógica premial vem de muito tempo na legislação brasileira, como no caso da confissão espontânea como atenuante (artigo 65, III, d do CP.

Sua expressão direta no Direito pátrio dá-se pela primeira vez por meio da Lei 8.072/1990 (Lei de Crimes Hediondos), embora ainda sem a menção à formalização mediante celebração de acordo, que introduziu a regra do artigo 159, parágrafo 4° do Código Penal, atinente ao crime de extorsão mediante sequestro: “Parágrafo 4º. Se o crime é cometido por quadrilha ou bando, o coautor que denunciá-lo à autoridade, facilitando a libertação do sequestrado, terá sua pena reduzida de um a dois terços, bem como regra semelhante ao crime de quadrilha ou bando, previsto no artigo 288 do Código Penal”.

E assim seguiram-se previsões semelhantes em diversos diplomas legislativos, tais como a Lei de Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional e a Lei de Crimes contra a Ordem Tributária, até que o instituto foi regulado, de maneira mais completa, com a Lei 9.807/99 (que “estabelece normas para a organização e a manutenção de programas especiais de proteção a vítimas e a testemunhas ameaçadas, institui o Programa Federal de Assistência a Vítimas e a Testemunhas Ameaçadas e dispõe sobre a proteção de acusados ou condenados que tenham voluntariamente prestado efetiva colaboração à investigação policial”).

Seu maior destaque reside no fato de ter tratado de maneira mais detida da colaboração, inclusive prevendo a possibilidade de concessão de perdão judicial, desde que levadas em consideração a personalidade do beneficiado e a natureza, circunstâncias, gravidade e repercussão social do fato criminoso.

O texto legal trata de duas situações:

  1. concessão do perdão judicial, com a consequente extinção da punibilidade, para o réu que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e o processo criminal, desde que dessa colaboração tenha resultado: I – a identificação dos demais coautores ou partícipes da ação criminosa; II – a localização da vítima com a sua integridade física preservada; III – a recuperação total ou parcial do produto do crime (artigo 13);
  2. redução de pena, de um a dois terços, para o indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais coautores ou partícipes do crime, na localização da vítima com vida e na recuperação total ou parcial do produto do crime (artigo 14).

Assim, amplia-se o espectro de negociação, que pode alcançar a concessão de perdão judicial, situação que deve ser analisada em conjunto com o dispositivo da Lei de Lavagem (Lei 9.613/98), cuja redação originária previa que:

Parágrafo 5º. A pena será reduzida de um a dois terços e começará a ser cumprida em regime aberto, podendo o juiz deixar de aplicá-la ou substituí-la por pena restritiva de direitos, se o autor, coautor ou partícipe colaborar espontaneamente com as autoridades, prestando esclarecimentos que conduzam à apuração das infrações penais e de sua autoria ou à localização dos bens, direitos ou valores objeto do crime.

O tratamento jurídico da colaboração premiada vem a se tornar mais completo, por fim, com a Lei 12.850/13 (Lei de Organizações Criminosas), que disciplina de forma mais exaustiva o instituto, de forma a trazer maior segurança à sua aplicação, prevendo disposições acerca do procedimento e direitos do colaborador.

O artigo 4° da referida lei estabelece que:

O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados:

I – a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas;

II – a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa;

III – a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa;

IV – a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa;

V – a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada.

No que diz respeito à legitimidade para proposição, a lei ainda aponta que:

Parágrafo 6º. O juiz não participará das negociações realizadas entre as partes para a formalização do acordo de colaboração, que ocorrerá entre o delegado de polícia, o investigado e o defensor, com a manifestação do Ministério Público, ou, conforme o caso, entre o Ministério Público e o investigado ou acusado e seu defensor (grifos nossos).

Eis aqui o ponto central do presente artigo. Como não poderia ser compreendido de maneira diversa, a lei assegura ao delegado de polícia, enquanto presidente do inquérito policial, a legitimidade para proposição do acordo de colaboração na fase de investigação. Em que pese posição divergente, capitaneada por Vladimir Aras, por meio de diversos artigos publicados em seu blog, onde defende a inconstitucionalidade[3] do dispositivo, observa-se que a mesma não encontra amparo legal.

Como pontua o também procurador da República Andrey Borges de Medeiros[4], “de qualquer sorte, mais importante é que haja atuação conjunta do Ministério Público e da Polícia. Contra o crime organizado, somente uma atuação coordenada e pautada pelo interesse comum da persecução penal é que interessa à sociedade, acima de disputas corporativas”.

Vejamos o tratamento do tema na perspectiva legislativa. A Lei 8.072, de 25 de julho de 1990, que dispõe sobre os crimes hediondos, tratou, no parágrafo único do artigo 8°: 

Parágrafo único. O participante e o associado que denunciar à autoridade o bando ou quadrilha, possibilitando seu desmantelamento, terá a pena reduzida de um a dois terços.

O artigo 6° da Lei 9.034, de 3 de maio de 1994:

Artigo 6º. Nos crimes praticados em organização criminosa, a pena será reduzida de um a dois terços, quando a colaboração espontânea do agente levar ao esclarecimento de infrações penais e sua autoria.

A Lei 9.080, de 19.7.1995, por sua vez, promoveu alterações nas leis 7.492/86 e 8.137/90, com a inclusão do artigo 25, parágrafo 2° e 16, parágrafo único, com a seguinte redação:

Nos crimes previstos nesta Lei, cometidos em quadrilha ou coautoria, o coautor ou partícipe que através de confissão espontânea revelar à autoridade policial ou judicial toda a trama delituosa terá a sua pena reduzida de um a dois terços (grifos nossos).

A lei brasileira de lavagem de dinheiro (Lei 9.613, de 3 de março de 1999) com pequena alteração legislativa introduzida pela Lei 12.683/2012, também previu que:

Parágrafo 5º. A pena poderá ser reduzida de um a dois terços e ser cumprida em regime aberto ou semiaberto, facultando-se ao juiz deixar de aplicá-la ou substituí-la, a qualquer tempo, por pena restritiva de direitos, se o autor, coautor ou partícipe colaborar espontaneamente com as autoridades, prestando esclarecimentos que conduzam à apuração das infrações penais, à identificação dos autores, coautores e partícipes, ou à localização dos bens, direitos ou valores objeto do crime (grifo nosso).

A Lei 9.807, de 13 de julho de 1999, que trata da proteção a vítimas e a testemunhas trouxe uma maior regulação da situação do colaborador, sobretudo estabelecendo medidas sobre sua proteção. Assim prevê seus artigos 13 e 14:

Artigo 13. Poderá o juiz, de ofício ou a requerimento das partes, conceder o perdão judicial e a consequente extinção da punibilidade ao acusado que, sendo primário, tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e o processo criminal, desde que dessa colaboração tenha resultado:

[…]

Artigo 14. O indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais coautores ou partícipes do crime, na localização da vítima com vida e na recuperação total ou parcial do produto do crime, no caso de condenação, terá pena reduzida de um a dois terços. (grifos nossos)

Observa-se que o único texto legal que fazia menção a um acordo com o Ministério Público foi a Lei 10.409, de 11 de janeiro de 2002, (a antiga lei de drogas), embora de curto período de vigência (revogada pela Lei 11.343, de 23 de agosto de 2006), trouxe dispositivo acerca da colaboração premiada, em seu artigo 32, cuja redação, nos parágrafos 2° e 3°, assim dispunha:

Parágrafo 2º. O sobrestamento do processo ou a redução da pena podem ainda decorrer de acordo entre o Ministério Público e o indiciado que, espontaneamente, revelar a existência de organização criminosa, permitindo a prisão de um ou mais dos seus integrantes, ou a apreensão do produto, da substância ou da droga ilícita, ou que, de qualquer modo, justificado no acordo, contribuir para os interesses da Justiça.

Parágrafo 3º. Se o oferecimento da denúncia tiver sido anterior à revelação, eficaz, dos demais integrantes da quadrilha, grupo, organização ou bando, ou da localização do produto, substância ou droga ilícita, o juiz, por proposta do representante do Ministério Público, ao proferir a sentença, poderá deixar de aplicar a pena, ou reduzi-la, de 1/6 (um sexto) a 2/3 (dois terços), justificando a sua decisão (grifos nossos).

A referido texto legal foi revogado pouco tempo depois e, em sua nova redação (Lei 11.343/2006), trouxe, no artigo 41:

O indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais coautores ou partícipes do crime e na recuperação total ou parcial do produto do crime, no caso de condenação, terá pena reduzida de um terço a dois terços (grifo nosso).

Em todos os outros dispositivos legais que tratam do instituto, há menção aos termos “autoridade policial” (leis 7.492/86 e 8137/90), “autoridades” (Lei 9.613/98), colaboração com a investigação policial e o processo criminal (leis 9.807/99 e 11.343/2006). Assim, a posição que considera o Ministério Público como única autoridade com legitimidade a propor a colaboração premiada não encontra amparo na legislação. 

Considerando que o delegado de polícia preside a investigação criminal feita por meio do inquérito policial (Lei 12.830/2012), nada mais coerente que o mesmo detenha legitimidade para celebrar acordos de colaboração no bojo da investigação.

Ademais, é na fase de investigação o momento mais propício para que a colaboração premiada ocorra e para que os fatos possam ser completamente esclarecidos, notadamente mediante a conjugação de outros meios de obtenção de prova, cuja participação da autoridade que preside a investigação é fundamental.

Ainda acerca da legitimidade da autoridade policial para celebração do acordo, o tema foi tratado por Henrique Hoffmann Monteiro de Castro e Francisco Sannini Neto em texto com o título Delegado de polícia tem legitimidade para celebrar colaboração premiada, no qual os autores pontuam que “a presidência do inquérito policial é exclusividade da polícia judiciária, como não se cansa de afirmar a suprema corte”, atacando os argumentos que buscam negar legitimidade à autoridade policial.

Observa-se, portanto, que não há qualquer impeditivo para que os acordos de colaboração premiada possam ser propostos no âmbito do inquérito policial, pela autoridade legalmente incumbida de presidi-lo. Ademais, a fase de investigação é a mais propícia para a efetivação da medida, sobretudo em razão da proximidade decorrente da contemporaneidade dos fatos investigados. Negar ao delegado de polícia a legitimidade em celebrar tais acordos é, para além de ilegal, negar qualquer racionalidade lógica ao sistema de investigação criminal.


[1] Informações extraídas da https://it.wikipedia.org/wiki/Mani_pulite. Acesso em 28.mar.2016.
[2] STF. Informativo 796, de 24 a 28 de agosto de 2015. Disponível em <http://www.stf.jus.br//arquivo/informativo/documento/informativo796.htm>
[3] Em que pese a manifestação pela inconstitucionalidade do dispositivo, vale ressaltar que não há qualquer decisão nesse sentido no âmbito do Supremo Tribunal Federal ou sequer notícia de propositura de ação questionando sua constitucionalidade.
[4] MENDONÇA, Andrey Borges de. A colaboração premiada a e a nova lei do crime organizado. Custos Legis,  v. 4, 2013.

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