Opinião

PECs que buscam instituir o parlamentarismo são inconstitucionais

Autor

  • Luiz Alberto dos Santos

    é advogado consultor legislativo do Senado mestre em Administração doutor em Ciências Sociais professor colaborador da Ebape/FGV e ex-subchefe de análise e acompanhamento de políticas governamentais da Casa Civil-PR (2003-2014)

28 de março de 2016, 16h42

Tramitam no Senado Federal três propostas de emenda à Constituição (PECs) com o propósito de introduzir, no Brasil, o sistema parlamentarista de governo.

A PEC 32, de 2015, do senador Fernando Collor (PTB-AL), cria a figura do presidente do Conselho de Ministros, indicado pelo presidente e submetido à aprovação da Câmara, sujeito ao voto de desconfiança, responsável pela indicação dos ministros de Estado, pelo envio ao Congresso de proposições legislativas e pela edição de medidas provisórias. Vigoraria apenas a partir do início do mandato presidencial subsequente à sua promulgação.

A PEC 102, de 2015, do senador Antonio Carlos Valadares (PSB-SE), cria o cargo de primeiro-ministro, que passa a ser o titular da iniciativa legislativa hoje conferida ao presidente da República. Também será responsável pela indicação dos ministros, deverá ser aprovado pela Câmara e está sujeito ao voto de desconfiança por essa Casa. A vigência da emenda fica condicionada à aprovação em referendo (que não poderá ser realizado no último ano de governo) antes da realização de eleição para presidente da República. Aprovada, sua implantação somente ocorrerá a partir da posse do presidente eleito e após a realização de referendo.

A PEC 9, de 2016, apresentada em 8 de março, tem como primeiro signatário o senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP) e, das três, é a mais abrangente. Institui a figura do primeiro-ministro, com prerrogativa de editar medidas provisórias e leis delegadas e iniciativa privativa em matérias legislativas atualmente atribuídas ao presidente, que teria competência genérica para enviar proposições ao Congresso, como chefe de Estado e comandante supremo das Forças Armadas, sem responsabilidades executivas no governo. O primeiro ministro seria nomeado pelo presidente, mediante consulta aos partidos que compõem a maioria na Câmara, e preferencialmente entre membros do Congresso. Se recusada a indicação por três vezes, caberá ao Senado indicar o primeiro-ministro. Ocorre a sua demissão em caso de moção de censura ou não aprovação de voto de confiança. A emenda preserva o atual mandado presidencial, mas fica de imediato criado o cargo de ministro-coordenador, de livre nomeação e exoneração do presidente, cuja escolha deverá recair, preferencialmente, sobre um membro do Congresso Nacional, cabendo-lhe a articulação político-administrativa do Governo, coordenar os ministérios, sob a orientação do presidente da República, e presidir reuniões ministeriais, na sua ausência. A Câmara poderá, pela maioria absoluta de seus membros, solicitar ao presidente da República o afastamento do ministro-coordenador. Não há previsão de referendo como condição para sua validade.

Em qualquer caso, as propostas ferem o disposto no artigo 60, § 4º, III da Constituição, segundo o qual não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir a separação dos Poderes.

A tese da inconstitucionalidade da apreciação pelo Congresso Nacional de PEC orientada a instituir o parlamentarismo já foi submetida ao Supremo Tribunal Federal quando, em 1997, os então deputados federais Jaques Wagner, Hélio Bicudo, Arlindo Chinaglia, Sandra Starling e Miguel Rosseto impetraram o Mandado de Segurança 22.972.

Com a aprovação da admissibilidade da  PEC 20-A/95, de autoria do deputado Eduardo Jorge (PV) e outros, que buscava instituir o Parlamentarismo no país, pela Comissão de Constituição e Justiça e de Redação da Câmara em 20 de agosto de 1996, e da criação, em 7 de outubro de 1997, pelo presidente da Câmara dos Deputados, da Comissão Especial para analisar a referida proposta, os autores recorreram ao STF para impedir a continuidade do processo, alegando ofensa ao direito líquido e certo de não serem forçados a deliberar sobre matéria que infringisse o comando petrificador do princípio da separação de poderes.

Alegavam, assim, serem tais atos lesivos ao seu direito líquido e certo, “como deputados legitimamente eleitos e legalmente investidos de mandatos ainda em vigor, de ver respeitada a Constituição Federal no que pertine aos Poderes de Emenda atribuídos aos legisladores derivados e à própria estabilidade das cláusulas erigidas pela ordem constitucional como imutáveis, pétreas”.

O pedido fundava-se na jurisprudência do próprio STF (MS 20.257), segundo a qual seria cabível o mandamus para obstar a deliberação do Congresso sob a alegação de ofensa a cláusula pétrea, por se tratar de vedação constitucional que se dirige ao próprio processamento da lei ou da emenda, vedando a sua apresentação ou a sua deliberação, ou seja, a inconstitucionalidade diz respeito ao próprio andamento do processo legislativo. Conforme o voto do ministro redator para o acórdão, Moreira Alves,

“Aqui, a inconstitucionalidade diz respeito ao próprio andamento do processo legislativo, e isso porque a Constituição não quer – em face da gravidade dessas deliberações, se consumadas – que sequer se chegue à deliberação, proibindo-a taxativamente. A inconstitucionalidade, neste caso, já existe antes de o projeto ou de a proposta se transformarem em lei ou em emenda constitucional, porque o próprio processamento já desrespeita, frontalmente, a Constituição. E cabe ao Poder Judiciário – nos sistemas em que o controle da constitucionalidade lhe é outorgado – impedir que se desrespeite a Constituição. Na guarda da observância desta, está ele acima dos demais Poderes, não havendo, pois, que se falar, a esse respeito, em independência de Poderes. Não fora assim e não poderia ele exercer a função que a própria Constituição, para a preservação dela, lhe outorga.” (MS 20.527, Voto Min. Moreira Alves).

A tese arguida pelos parlamentares sustentava que o artigo 2º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) já havia conferido, ao eleitorado, a oportunidade de se manifestar sobre a possibilidade de adoção do Parlamentarismo no país, sem a afronta às cláusulas pétreas. Assim, vitoriosa a manutenção do Presidencialismo, estaria subtraída, em definitivo, ao poder de reforma constitucional a decisão sobre a forma de governo (República ou Monarquia) e sistema de governo (parlamentarismo ou presidencialismo). Dessa forma, não poderia ser reformada pelo legislador constituinte derivado.

A apreciar o pedido de liminar, o então relator, ministro Neri da Silveira, atestou que, embora presente a relevância no fundamento do pedido, a continuidade da tramitação da PEC em exame não conduziria à ineficácia do mandado de segurança, caso deferido, visto que o presidente da Câmara ou do Senado ainda poderiam, liminarmente, rejeitar a proposta de emenda que ofendesse clausula pétrea, impedindo a sua deliberação. Dessa forma, afirmava o relator,

“(…) não restará prejudicado, mesmo se antes de seu julgamento, sobrevier a deliberação, ora impugnada, do Congresso Nacional sobre a matéria. (…)

10. Estando certo, dessa maneira, que não restará ineficaz a medida, na hipótese de deferimento da impetração, concorre, ainda, para o não-deferimento da liminar, a conveniência de o Supremo Tribunal Federal não interferir no regular e ordinário funcionamento dos outros Poderes, salvo quando houver de impedir se consume definitivamente ofensa à Constituição, cuja guarda constitui sua competência precípua,e, para tanto, for convocado.”

Desde então, concluíram-se os trabalhos da Comissão Especial na Câmara dos Deputados, em outubro de 2001, e em duas ocasiões foi requerida, pelo deputado Luiz Carlos Hauly (2001 e 2015) a sua inclusão na Ordem do Dia.

Tais movimentos revelam interesse casuístico na mudança constitucional.

Em 2001,  ao coincidir com o término do mandato presidencial de Fernando Henrique Cardoso, dado o “risco” de eleição do então pré-candidato Luiz Inácio Lula da Silva, articulava-se, de pronto, um movimento político para que, se viesse a ser eleito presidente, não gozasse dos poderes presidenciais plenos.

Em 2015, volta o tema à baila, não mais como proposta de legislar apenas para o futuro, mas de interferir de imediato nas prerrogativas da atual presidente. Em 2016, sob a forma de nova proposta, retorna, sob o mesmo viés, a ser debatido no Congresso Nacional, com o apoio, segundo amplamente noticiado, do presidente do Senado Federal[1].

Sob a perspectiva de implementação de um “semi-presidencialismo”, o que têm em comum a PEC 20-A/95, na forma do substitutivo aprovado pela Comissão Especial, pronto para a Ordem do Dia da Câmara, e a PEC 9/2016, do senador Aloysio Nunes Ferreira, é a noção de que seria possível transferir, de imediato, o efetivo poder de governar o país do presidente da República para um “ministro-coordenador”, cuja escolha e manutenção no cargo dependeriam do juízo do Congresso, e, futuramente, para o primeiro-ministro (nomeado entre membros do Congresso Nacional) deixando o presidente, assim, de ter prerrogativas efetivas de Poder Executivo.

Não obstante não tenha o STF acatado em 1997 a tese que lhe foi submetida, permitindo a continuidade do processo legislativo na Câmara dos Deputados, o que pode sugerir que o mesmo entendimento possa vir a ser adotado pelo Plenário da Corte, em ocasião posterior o tema voltou a ser examinado, conforme o decidido em 20 de junho de 2013, no Mandado de Segurança 32.033, redator para o acórdão o ministro Teori Zavascki:

“Ementa: CONSTITUCIONAL. MANDADO DE SEGURANÇA. CONTROLE PREVENTIVO DE CONSTITUCIONALIDADE MATERIAL DE PROJETO DE LEI. INVIABILIDADE.

1. Não se admite, no sistema brasileiro, o controle jurisdicional de constitucionalidade material de projetos de lei (controle preventivo de normas em curso de formação). O que a jurisprudência do STF tem admitido, como exceção, é “a legitimidade do parlamentar – e somente do parlamentar – para impetrar mandado de segurança com a finalidade de coibir atos praticados no processo de aprovação de lei ou emenda constitucional incompatíveis com disposições constitucionais que disciplinam o processo legislativo” (MS 24.667, Pleno, Min. Carlos Velloso, DJ de 23.04.04). Nessas excepcionais situações, em que o vício de inconstitucionalidade está diretamente relacionado a aspectos formais e procedimentais da atuação legislativa, a impetração de segurança é admissível, segundo a jurisprudência do STF, porque visa a corrigir vício já efetivamente concretizado no próprio curso do processo de formação da norma, antes mesmo e independentemente de sua final aprovação ou não.

(…)

3. A prematura intervenção do Judiciário em domínio jurídico e político de formação dos atos normativos em curso no Parlamento, além de universalizar um sistema de controle preventivo não admitido pela Constituição, subtrairia dos outros Poderes da República, sem justificação plausível, a prerrogativa constitucional que detém de debater e aperfeiçoar os projetos, inclusive para sanar seus eventuais vícios de inconstitucionalidade. Quanto mais evidente e grotesca possa ser a inconstitucionalidade material de projetos de leis, menos ainda se deverá duvidar do exercício responsável do papel do Legislativo, de negar-lhe aprovação, e do Executivo, de apor-lhe veto, se for o caso. Partir da suposição contrária significaria menosprezar a seriedade e o senso de responsabilidade desses dois Poderes do Estado. E se, eventualmente, um projeto assim se transformar em lei, sempre haverá a possibilidade de provocar o controle repressivo pelo Judiciário, para negar-lhe validade, retirando-a do ordenamento jurídico.

4. Mandado de segurança indeferido.”

Nessa linha de raciocínio, por ser projeto de lei sujeito ao crivo constitucional de duas casas congressuais, e estando ainda sujeito ao exame final do Poder Executivo, quando da sanção ou veto, o Supremo Tribunal Federal optou por abordagem cautelosa, em proveito do processo legislativo e suas possibilidades de autocorreção.

Contudo, como demonstra o extenso e profundo voto do relator original da matéria, ministro Gilmar Mendes, e em aspecto corroborado pela jurisprudência da corte e homenageado pelo autor do voto-condutor, e redator para o acórdão, em se tratando de proposta de emenda à Constituição, a própria Carta Magna fixa os meios a serem respeitados para a validade de sua modificação. Dizia o ministro Gilmar Mendes:

“O Supremo Tribunal deixava claro que a legitimidade para a impetração de mandado de segurança como instrumento de controle prévio de constitucionalidade de proposições legislativas tendentes a abolir cláusulas pétreas (art. 60, § 4º, CF) é exclusiva dos parlamentares, os quais possuem o direito de não se submeterem à deliberação de propostas desse viés.”

Note-se que em seu voto, o ministro Teori Zavascki — que é o atual Relator do MS 22.972 — reforçou a tese de que seria cabível, com fundamento exclusivo no artigo 60, § 4º da CF, a intervenção do Poder Judiciário para sustar a tramitação de proposta de emenda à Constituição ofensiva a cláusula pétrea da Constituição:

“Somente em duas situações a jurisprudência do STF abre exceção a essa regra: a primeira, quando se trata de Proposta de Emenda à Constituição – PEC que seja manifestamente ofensiva a cláusula pétrea; e a segunda, em relação a projeto de lei ou de PEC em cuja tramitação for verificada manifesta ofensa a alguma das cláusulas constitucionais que disciplinam o correspondente processo legislativo. Nos dois casos, as justificativas para excepcionar a regra estão claramente definidas na jurisprudência do Tribunal: em ambos, o vício de inconstitucionalidade está diretamente relacionado a aspectos formais e procedimentais da atuação legislativa. Assim, a impetração de segurança é admissível, segundo essa jurisprudência, porque visa a corrigir vício já efetivamente concretizado no próprio curso do processo de formação da norma, antes mesmo e independentemente de sua final aprovação ou não.”  

Também o ministro Ricardo Lewandowski reiterou a jurisprudência da Corte quanto à possibilidade de intervenção ao caso de propostas de emenda à Constituição, ressaltando haver a Constituição de 1988 “ampliado o rol de matérias que não podem ser objeto de deliberação por emenda constitucional, as chamadas cláusulas pétreas, versadas no artigo 60, § 4º”, autorizando, assim, o controle de constitucionalidade prévio no caso de descumprimento por parte do poder constituinte derivado.

Essa fundamentação, assim, permanece válida e coloca sob o juízo da Suprema Corte, a ser proferido proximamente, o exame da possibilidade de que uma PEC venha a alterar o conjunto de atribuições e prerrogativas asseguradas ao Chefe do Poder Executivo pela Carta de 1988, mitigando a separação entre os Poderes estabelecida pelo Constituinte Originário.

Vale dizer: a implementação do Parlamentarismo — ou semi-presidencialismo, como querem agora designá-lo — implica ou não ofensa ao artigo 60, § 4º, III da Constituição? Ela infringe ou não o princípio da separação de Poderes?

Parece evidente que sim. Ao retirar prerrogativas executivas do presidente da República e transferi-las para um “ministro-coordenador” ou “primeiro ministro”, o qual deverá ser membro do Congresso, e sujeito a sua aprovação ou reprovação, torna o Poder Executivo uma “filial” do Legislativo, submetendo-o, dessa forma, ao Legislativo, e permite a este interferir diretamente da formação e funcionamento daquele, provocando uma intromissão, uma imbricação que é inerente aos sistemas parlamentaristas. Esvaziam-se, por meio de uma “emenda constitucional”, as prerrogativas do chefe do Executivo, que passa a ser “chefe de Estado”, mas com limitações que lhe retiram atribuições, ou as submetem ao crivo de outro Poder.

Nesse sentido, por mais graves que sejam as crises políticas, os desgastes na relação Executivo-Legislativo, e até mesmo as dificuldades que tenha o presidente da República de preservar as condições de governabilidade que são essenciais ao seu mandato — o apoio do Congresso, a materialização do seu programa de governo, o apoio dos meios de comunicação e de setores importantes da sociedade — alterar casuisticamente a Constituição para solapar as prerrogativas de autoridade do chefe do Executivo não é meio válido para que se obtenha resultado diferente daquele que surgiu das urnas na eleição presidencial.

Diferentes caminhos podem levar à superação da atual crise política. Cabe aos que foram legitimamente eleitos — presidente e parlamentares — buscarem no âmbito de suas competências constitucionais, e de suas habilidades políticas, escolher qual desses caminhos é o mais seguro, o mais eficiente, e que a longo prazo consolida as nossas instituições políticas e administrativas.

A PEC do Parlamentarismo, em qualquer de suas vertentes, porém, é um “desvio” que, certamente, nos conduz a mais uma aventura como a que, em 1961, foi construída — sem a proteção do artigo 60, § 4º, em sua forma atual — para permitir a posse do vice-presidente João Goulart em face da renúncia de Jânio Quadros. O parlamentarismo de então, repleto de instabilidades, foi de curta duração e não deixou saudades.

O golpe de 1964, como reação ao retorno do presidencialismo em 1963, após a realização de plebiscito, foi uma demonstração de que faltaram à classe política de então a clareza de propósitos e o bom senso necessários para encontrar uma solução efetiva para a instabilidade que a cada momento se aprofundava.

Se, como então, a opção pelo parlamentarismo for apenas uma forma de tentar impedir a continuidade do mandato presidencial, substitutiva do impeachment ou da decisão do Tribunal Superior Eleitoral em processo de impugnação do resultado eleitoral, estará apenas sendo aprofundada uma crise, com a adoção de solução ilegítima e inconstitucional, além de casuística. A história, então, poderá se repetir como farsa.

Autores

  • Brave

    é advogado, especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (Enap) e mestre em Administração e Doutor em Ciências Sociais (UnB). Consultor Legislativo do Senado Federal. Ex-subchefe de Análise e Acompanhamento de Políticas Governamentais da Casa Civil da Presidência da República.

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