Opinião

A ilegalidade das reiteradas prisões preventivas

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  • é mestrando em Direito pela Universidade Federal do Estado de Mato Grosso (UFMT) pós-graduado em Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst) pós-graduado em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra em parceria com o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) e advogado.

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  • é advogado do Valber Melo Advogados Associados. Membro Associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).

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27 de março de 2016, 8h30

Consoante dispõe o art. 5º, caput, da Constituição Federal, a liberdade é um direito fundamental de primeira dimensão, cláusula pétrea que não pode ser suprimida ou mitigada. Destarte, tendo em vista o princípio da presunção de inocência, em regra, ninguém pode ser preso antes de sentença penal condenatória transitada em julgado.

Entretanto, mesmo com status de direito fundamental, o direito a liberdade não possui caráter absoluto, visto que em determinadas situações, mesmo em conflito com a presunção de inocência, é possível que um sujeito de direito tenha seu status libertatis tolhido. Afinal, como sabiamente pondera J. J. Gomes Canotilho, “se o princípio for visto de uma forma radical, nenhuma medida cautelar poderá ser aplicada ao acusado, o que, sem dúvida, acaba por inviabilizar o processo penal.”[1]

Com efeito, no direto brasileiro tem a prisão duas naturezas distintas, quais sejam:

a) prisão-pena, que decorre de sentença penal condenatória transitada em julgado e que visa, em sintonia com art. 59, do CP, retribuir, com o mal — a prisão , o mal causado, mas também prevenir que novos delitos venham a ser cometidos função retributivo-preventiva; e a

b) prisão cautelar, provisória, processual ou sem pena, que tem como subespécies a prisão preventiva e temporária. Nesta situação prisão processual há segregação já na persecução penal, antes mesmo de haver a formação da culpa; portanto, somente pode ser admitida em casos de exacerbada excepcionalidade.

Feito este introito, adentremos no mérito do presente artigo que se restringirá a temas inerentes à prisão processual, analisados a luz da lida cotidiana com processos penais onde referida espécie de prisão se tornou regra.

Pois bem, tendo em vista que a prisão processual atendo-se, aqui, mais especificamente à prisão preventiva se confronta com o princípio da presunção de inocência, deve ser vista como medida excepcional, quando não houver outra medida cautelar diversa da prisão menos gravosa, capaz de alcançar o mesmo fim desejado (art. 319, Código de Processo Penal).

Para que haja, portanto, a [legítima] decretação de prisão cautelar, alguns pressupostos devem ser preenchidos, sob pena de se macular o decreto pela pecha da ilegalidade, devendo ser a prisão, nestes casos, relaxada. Nessa esteira, dois são os requisitos gerais de cabimento das cautelares: necessidade e adequação, nos termos do artigo 282, inciso I e II, do Código de Processo Penal.

No que tange especificamente a prisão preventiva, ultrapassada a fase dos requisitos gerais, é preciso analisar os requisitos específicos da prisão preventiva, onde deve estar preenchido o fumus comissi delict, que se traduziria na “fumaça do cometimento do delito”. Vale dizer, há necessidade de fortes indícios de que o agente tenha cometido um crime.

Mas não é só, a decretação da prisão preventiva pressupõe prova da existência do crime [materialidade delitiva] mais indícios suficientes de autoria; todavia, por mais gravosa que seja a imputação e por mais robusta que seja a prova de autoria, esses pressupostos, por si sós, não são suficientes para justificar o encarceramento preventivo.

Destarte, não basta somente essa “fumaça do cometimento do delito”, há que se verificar, em cada caso, se o investigado/indiciado/acusado oferece risco à eficácia do processo. Vale dizer, deve-se vislumbrar, ainda, o conhecido periculum libertatis, que, segundo Aury Lopes Jr., “decorre do estado de liberdade do imputado”.[2]

De modo geral, consoante dispõe o Código de Processo Penal, em seu art. 312, o perigo da liberdade consubstancia-se em atos que possam evidenciar riscos à ordem pública, à ordem econômica, atitudes do imputado que embaracem a conveniência da instrução criminal ou, ainda, comportamentos concretos, por parte do acusado, que revelem uma intenção de fuga, colocando em xeque, assim, a própria aplicação da lei penal. 

Assim sendo, o magistrado, quando da expedição de um decreto de prisão cautelar, deve se ater à existência de um fato criminoso cumulada ao perigo que o acusado, caso aguarde o tramitar processual em liberdade, possa causar à eficácia do processo. Com efeito, estando presentes o fumus comissi delict e o periculum libertatis pode-se decretar [legitimamente] a constrição processual da liberdade.

Contudo, o que tem causado estranheza, é a decretação sucessiva e reiterada da prisão preventiva, a um mesmo acusado, pelo mesmo magistrado, com supedâneo nos mesmo fundamentos utilizados para expedir o primeiro mandado prisional.

Ora, não existe qualquer lógica jurídica nisto!

Para melhor ilustrar, tomemos como premissa um caso hipotético: Digamos que um magistrado decrete a prisão preventiva de determinada pessoa alegando a necessidade de resguardo da ordem pública e que o mesmo poderia atrapalhar a conveniência da instrução criminal.

No transcorrer do processo, quando diversas medidas de combate ao referido decreto prisional estão pendentes de análise por Tribunais Superiores, esse mesmo magistrado, no bojo de outra ação penal, decreta a prisão preventiva do mesmo acusado, com base em fatos diversos, mas com fundamentação idêntica, de que a prisão é necessária para resguardo da ordem pública e por conveniência da instrução criminal.

A ilegalidade da segunda prisão é patente haja vista que não há qualquer possibilidade de se caracterizar o periculum libertatis de uma pessoa que já se encontra presa! A toda evidência, não há fundamento jurídico para tal atividade, porquanto a primeira prisão exclui, consectariamente, os fundamentos da segunda.

Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal, no bojo do habeas corpus 128.278/PR, de relatoria Eminente Ministro Teori Zavascki, analisando a matéria, consignou que:

1. Na superveniência de fatos novos, nada impede o decreto de nova prisão preventiva, como prevê, aliás, o art. 316 do Código de Processo Penal. Todavia, é indispensável que eventual superveniência de novo ato constritivo não concorra nem mesmo involuntariamente para limitar o exercício da competência do Supremo Tribunal Federal na apreciação de habeas corpus impetrado contra o primeiro decreto de prisão.

2. A preservação da integridade da competência do Supremo Tribunal Federal recomenda que, ressalvada a hipótese excepcional de autonomia plena entre os atos atacados, se considere desde logo incluído nos limites da cognição da Suprema Corte o controle jurisdicional de ambos os decretos prisionais, com as cautelas de colher das autoridades impetradas as informações indispensáveis a esse julgamento conjunto.

3. A perda de objeto do habeas corpus somente se justifica quando o novo título prisional invocar fundamentos induvidosamente diversos do decreto de prisão originário. Precedentes.

Na mesma direção, no julgamento do HC 130.254/PR, novamente ressaltou o Ministro Teori que “é preciso avaliar com cautela situações como a presente, de superveniência de um segundo decreto de prisão preventiva às vésperas de julgamento de habeas corpus relativo ao decreto prisional anterior, a fim de que não sirva um fato assim, voluntária ou involuntariamente, de empecilho ou de limitação ao regular exercício da competência jurisdicional desta Suprema Corte”.

Esses precedentes versam sobre prisões ocorridas no bojo da famigerada operação "lava jato”, cuja repercussão é nacional. O que preocupa é que a imensa repercussão dessa causa e das reiteradas e sucessivas prisões preventivas lá decretadas, tem orientado diversos juízes que passaram a também decretar prisões a esmo como se regram fossem no processo e em evidente limitação de competência dos Tribunais Superiores!

É preciso tomar cuidado para que o magistrado de primeiro grau não se apaixone pela causa e perca a necessária imparcialidade, deixando de ser magistrado, para se tornar um estrategista inquisidor. Vale aqui destacar trecho do voto do Ministro Celso de Mello, no bojo do HC 95518/PR, que consignou que “O interesse pessoal que o magistrado revela em determinado procedimento persecutório, adotando medidas que fogem à ortodoxia dos meios que o ordenamento positivo coloca à disposição do poder público, transformando-se a atividade do magistrado numa atividade de verdadeira investigação penal. É o magistrado investigador.”

Referido acórdão, em parte, restou assim ementado:

2. Atos abusivos e reiteração de prisões. São inaceitáveis os comportamentos em que se vislumbra resistência ou inconformismo do magistrado, quando contrariado por decisão de instância superior. Atua com inequívoco desserviço e desrespeito ao sistema jurisdicional e ao Estado de Direito o juiz que se irroga de autoridade ímpar, absolutista, acima da própria Justiça, conduzindo o processo ao seu livre arbítrio, bradando sua independência funcional. Revelam-se abusivas as reiterações de prisões desconstituídas por instâncias superiores e as medidas excessivas tomadas para sua efetivação, principalmente o monitoramento dos patronos da defesa, sendo passíveis inclusive de sanção administrativa.

Com efeito, é evidente a ilegalidade das reiteradas e sucessivas prisões cujo objetivo é perpetuar a prisão, em clara hipótese de antecipação de pena, e tornar dificultoso o trabalho da defesa que, ao lograr êxito nos Tribunais Superiores, é forçada a novamente busca-los, para combater nova prisão que impede o acautelado de ver-se livre do cárcere.

Esse cenário releva que o iter processual se torna verdadeira chicana e tortura, daquele que aguarda, ansioso, a revogação de uma prisão, muitas vezes, totalmente desfundamentada.


[1] Constituição da República portuguesa anotada. 3ª ed. Coimbra: Ed. Coimbra, 1993. p. 203.

[2] LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 590.

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