Diário de Classe

Judiciário deve ser ponto de equilíbrio, não instigador da ira na política

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19 de março de 2016, 8h05

Spacca
“O poder judicial, pela natureza de suas funções, será sempre o menos perigoso para os direitos políticos da Constituição, porque será o menos capaz de molestá-los ou de lhes causar danos. O Executivo não só distribui as honrarias, mas empunha a espada da comunidade. A legislatura não só comanda a bolsa, mas prescreve as normas pelas quais se devem regular os deveres e os direitos de todos os cidadãos. O judicial, pelo contrário, não tem nenhuma influência sobre a espada ou sobre a bolsa; e não pode tomar nenhuma resolução activa, seja ela qual for. Pode ser dito com verdade que não tem Força nem Vontade, mas apenas juízos.[1]

O trecho acima foi extraído do federalista 78, cuja autoria é atribuída a Alexander Hamilton, cultuado nos Estados Unidos como um de seus “pais fundadores”. Achei conveniente transcrevê-lo na íntegra para que os leitores deste Diário de Classe pudessem ter pleno contato com a premissa básica da minha coluna de hoje. De sua leitura é possível notar, de plano, que o momento político vivenciado por todos nós, brasileiros, estaria a indicar um erro de avaliação no argumento de Hamilton, considerando que ele pudesse ser aplicado à nossa realidade atual. De fato, é possível afirmar que os eventos da última semana revelaram que a politização do Poder Judiciário atingiu um novo paroxismo. Note-se que estou falando em politização do Judiciário, e não em judicialização da política. Isso quer dizer que o fato para o qual quero apontar não diz respeito à procura do Judiciário para responder a demandas que deveriam, em tese, ser implementadas pelos demais poderes, mas, sim, para um movimento observado em algumas decisões judiciais que aponta para a conclusão de que a força ou a vontade foram colocadas num lugar onde só poderia (ou deveria?!) haver juízos.

É verdade que, mesmo na experiência estadunidense, é possível encontrar elementos que colocariam em xeque as afirmações feitas por Hamilton neste trecho do federalista 78. Como se sabe, esse argumento de Hamilton pavimentou o terreno para a construção posterior da judicial review (gérmen de nosso controle difuso de constitucionalidade), algo que desde sempre foi objeto de resistência por parte de outros “pais fundadores” cujo caso mais emblemático é, certamente, o de Thomas Jefferson. Para Jefferson, o judiciário não era um poder “menos perigoso”. Ao contrário, dar a ele a guarda da Constituição com a possibilidade de sustar atos do governo e do congresso representaria uma doutrina muito perigosa e que colocaria a república então nascente sob o despotismo de uma oligarquia. Num trecho de uma carta a um colega de partido, Jefferson afirmou: “Nossos juízes são tão honestos quanto quaisquer outros homens e nada mais. Eles possuem, como qualquer outro, as mesmas paixões por partidos, poder, e privilégios de suas corporações (…) Seu poder é perigoso porque passam a vida em escritórios e não são responsáveis diante do eleitor, como outros funcionários são”[2]. Quem pensa que essa discussão só interessa a historiadores, deveria procurar a farta bibliografia por lá produzida a respeito de uma (possível e/ou provável) supremacia judicial e a sempre acirrada discussão acerca do papel da jurisdição na relação com os demais poderes constituídos. Some-se a isso, ainda, que Merrick Garland, recentemente indicado por Barack Obama para compor a Suprema Corte, afirmou, em seu pronunciamento oficial, ter consciência de que a função de um ministro da Suprema Corte é seguir leis, e não fazê-las (para mais detalhes, clique aqui).

Voltando para o Brasil, a decisão de retirar o sigilo das interceptações telefônicas que envolvia o ex-presidente Lula pode ser analisada dentro desse horizonte discursivo. Ou seja, dentro da construção hamiltoniana, a decisão está mais para a vontade e para força ou pode ser enquadrada como um típico juízo jurisdicional?

Independentemente de avaliar se as consequências da decisão serão boas ou ruins, penso que todos os indícios estão a apontar para um esquecimento daquele que deveria ser o lugar da jurisdição. Tão difícil quanto justificar os atos reprováveis de Lula, e que estão vindo à tona numa avalanche informativa, é dizer que não houve nenhum cálculo político por parte do juiz Sergio Moro para proferir sua decisão. Igualmente difícil é justificar, juridicamente, que não houve por parte da decisão nenhuma violação ao artigo 9º da Lei 9.296/1996, que determina que a gravação que não interessar como prova será inutilizada. Para quem acha que os fins justificam os meios, é bom lembrar que essa frase está no contexto de como o príncipe deve agir para preservar, conquistar ou aumentar seu poder. Quem estaria na condição equivalente à do príncipe na hipótese vertente?

Por outro lado, as decisões da Justiça Federal do Distrito Federal e do Rio de Janeiro que “sustaram” e/ou “suspenderam os efeitos” (seja lá o que isso queira dizer) da nomeação de Lula para a Casa Civil também estão mais para a força e para a vontade do que para o juízo. No nosso sistema, é possível que qualquer órgão do Poder Judiciário deixe de aplicar a casos concretos atos normativos do Congresso ou do governo que estejam em desacordo com a Constituição. Isso no exercício do que nós chamamos de controle difuso de constitucionalidade. Note-se, porém, que não foi — e nem poderia ser — esse o caso. São decisões liminares, tomadas no calor dos acontecimentos e que se anteciparam à análise do Supremo Tribunal Federal, que já havia sido provocado para analisar a matéria.

Em um dos casos, o juízo chegou a afirmar que vislumbrava, na hipótese, o cometimento de crime de responsabilidade. Isso até pode ser verdadeiro, não quero discutir isso. No entanto, o que me causa espanto é que o juiz natural para julgamento de crimes de responsabilidade do presidente da República não é a 22ª Vara da Justiça Federal do Distrito Federal, mas o Senado, nos termos dos artigos 52, parágrafo único e 86, caput da Constituição de 1988. Todos sabem disso. Inclusive o juiz que proferiu a decisão. O problema, porém, é que estava presente ali o cálculo político, que não deve ser o espaço do Judiciário em um sistema constitucional, pautado pelo equilíbrio dos poderes e pelo respeito às regras do jogo.

Frise-se: não estou dizendo que a nomeação de Lula para a Casa Civil seja um ato acertado da presidente e totalmente protegido pela lei e pela Constituição. Estou apenas afirmando que, em um Estado de Direito, há ritos para serem seguidos. Há competências constitucionais que devem ser preservadas. E isso não é “mera formalidade”. É o que nos separa da barbárie e de uma espécie atualizada de “vingança privada”. No contexto do Direito moderno, o processo serve, entre outras coisas, para legitimar o que virá a ser decidido. Decisão que deverá ser racional, e não passional.

Para concluir, quero lembrar aqui de um ensaio de Peter Sloterdijk chamado Ira e Tempo. Nele, Sloterdijk lembra-nos de que o “cultivo político da Justiça” representa uma ruptura completa com a cultura antiga da vingança e do destino. A Justiça, nesse contexto, deve ter sua sede em tribunais, que são espaços públicos de julgamentos, equilibrados e racionais. A vingança continua presente na ira política, mas deve estar afastada dos julgamentos nos tribunais. Na verdade, os tribunais operam uma verdadeira gestão da ira, garantindo a estabilidade institucional em tempos de ira agigantada. Assim, torcemos para que, daqui por diante, o Judiciário deixe de ser o principal agente da ira e retorne ao seu devido lugar, que é ser o fiel da balança. Os símbolos, às vezes, são tão precisos quanto as palavras.


[1] HAMILTON, Alexander. O Federalista 78 – O Departamento Judicial. In: O Federalista. Hamilton, Madson e Jay. 2 ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011, p. 683.
[2] Jefferson, Thomas. Writings of Thomas Jefferson. Nova York: Derby and Jackson, 1854, p. 178. Disponível online, em texto integral

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